quinta-feira, 22 de setembro de 2011

A humilhação de Barack Obama



Robert Grenier

20/9/2011, Robert Grenier, Al-Jazeera, Qatar
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Robert Grenier, hoje aposentado, serviu por 27 anos como analista do Serviço Secreto da CIA. De 2004 a 2006, dirigiu, na Agência, o Centro de Contraterrorismo.




Mais cedo ou mais tarde, acontecerá. Talvez aconteça pouco antes do primeiro encontro de chefes de estado em New York. Talvez aconteça pouco antes do primeiro encontro de coxia com Binyamin Netanyahu. Ou, também, pode acontecer como reação cumulativa, depois de uma série de encontros embaraçosos com outros chefes de estado. Mas acontecerá. 

O Primeiro Ministro israelense Netanyahu (foto) rejeitou sem qualquer escrúpulo o discurso do Presidente Barack Obama

Em algum momento dessa semana, durante a visita à Assembleia Geral da ONU, para a abertura dos trabalhos, o presidente Obama há de sentir um impulso, um irresistível desejo. Vai decidir levantar-se, livrar-se das correias que o manipulam e da onipresente burocracia que tenta ditar-lhe cada movimento e submeter até sua dignidade pessoal e, então, ele dirá “Basta”. 

Em abril de 1995, o presidente Clinton recebeu a então primeira-ministra do Paquistão Benazir Bhutto. As relações EUA-Paquistão estavam em queda livre. Poucos anos antes, os EUA haviam começado a aplicar sanções autorizadas pela então chamada “Emenda Pressler”, segundo a qual o Paquistão teria de ser punido com suspensão total de qualquer ajuda e impedido de fazer negócios de compra e venda de equipamentos militares, se se constatasse que buscava construir capacidade nuclear. O primeiro presidente Bush descobrira a coisa, e, naquele momento, os laços entre os dois países estavam sendo progressivamente cortados.

No cerne do crescente mal-estar entre as duas nações estava o cancelamento da venda de 28 jatos F-16. Os paquistaneses sabiam, desde quando assinaram o compromisso de compra, que o negócio poderia ser cancelado, se se invocasse a Emenda Pressler. Então, havendo a lei, e o presidente Bush já tendo declarado a culpa dos Paquistaneses, já nem se cogitava de entregar os aviões. Mas havia outra dificuldade. 

Os paquistaneses já haviam pago enorme quantidade de dinheiro, com enorme sacrifício, a título de adiantamento, na compra dos jatos. E naquele momento, segundo os EUA, os paquistaneses não poderiam receber os aviões nem poderiam ser reembolsados do que já haviam pago. Claro. O problema é que já não havia dinheiro para devolver; a empresa que recebera, gastara. Os aviões estavam construídos. Não havia meio legal, na legislação norte-americana, para fazer surgir o dinheiro para reembolsar os paquistaneses. 

Talvez, sim, vender os F-16s a outro país e, com o dinheiro assim havido, reembolsava-se os paquistaneses, mas essa via também teria de ser aprovada nos EUA por um Congresso hostil, e dificilmente se viabilizaria. Em resumo, não havia o que fazer. E, como que acrescentando insulto à injúria, os paquistaneses também estavam sendo forçados a pagar uma pesada taxa anual pela armazenagem de cada avião – cada avião que não podiam receber.

Defender o indefensável 

Obama será forçado a humilhar-se na ONU, enquanto
 tenta explicar por que ele deve singularmente vetar 
a proposta para criação do Estado palestino
Quando todo o aparelho de segurança nacional e da política externa dos EUA se move numa mesma direção, é visão impressionante. Vasto aparato da burocracia movia-se para elaborar longos argumentos que levassem a concluir a favor de uma decisão já tomada. E aqueles argumentos eram hipnoticamente repetidos de dúzias de diferentes maneiras, para uso em diferentes fóruns. Virou caso clássico. 

Via-me do lado de dentro da burocracia do Departamento de Estado, onde estava trabalhando à época. Fabricavam-se justificativas para o patentemente injustificável, que chegavam aos paquistaneses em todos os níveis. Saiam pela boca dos porta-vozes do Departamento de Estado e da Casa Branca, eram repetidos em depoimentos ao Congresso, distribuídos para a imprensa em diferentes enquadramentos, elaborados em respostas escritas a serem repetidas por deputados e senadores, e ao público em geral, para nem falar dos comunicados internos que circulavam dentro do Executivo.

Todo aquele ímpeto burocrático alcançou o clímax quando o presidente Clinton estava prestes a ter de repetir a mesma mensagem, pessoalmente, à primeira-ministra Bhutto.

Os preparativos para esse tipo de encontro também são muito impressionantes. Preparam-se grossos volumes de briefings que exigem, cada um, centenas de homens/hora de trabalho. São contextualizações, enquadramentos históricos e prospectivos e elaboradíssimas justificativas políticas, apoiados todos em memorandos e pareceres de especialistas em leis, organizados em tabelas em ordem alfabética, acompanhados de esmiuçamento de cada mínimo detalhe, um conjunto de dados e pareceres e informes organizados para converter o presidente em virtual boneco de ventríloquo. E então a coisa toda passa pelo crivo do sistema e, liberado, chega, através do secretário de Estado e do Conselho de Segurança Nacional, ao presidente em pessoa.

Aconteceu também naquele caso. Mas naquele caso, no final, depois de ter cuidadosamente estudado todo aquele nonsense codificado, aquele monumento à inércia burocrática, e pouco antes de andar na direção da ministra Bhutto, quando o presidente teria de olhar olho no olho da ministra, e defender o que era patentemente indefensável, Clinton fez o que ninguém – ninguém – na burocracia jamais imaginou ou teria imaginado.

Com o senso comum, o inato senso de justiça com que Deus dotou quase todas as crianças de cinco anos de idade, Clinton disse, simplesmente: “Mas isso não é justo”. E então, maravilha das maravilhas, entrou na sala e repetiu exatamente as mesmas palavras à ministra Bhutto.

Eis as palavras de Clinton, gravadas poucos instantes depois, quando os dois líderes apareceram ante a imprensa: “Já lhe disse claramente, e creio que nenhum presidente dos EUA jamais disse isso antes: não está certo que os EUA fiquemos com o dinheiro e com o equipamento. Não está certo. E vou tentar encontrar um modo de resolver o problema.” 

Se você jamais trabalhou dentro da burocracia da política internacional dos EUA, se nunca viu aquilo por dentro, você não conseguirá imaginar o efeito dessas palavras – uma posição política completamente construída, ali, publicamente descartada pelo presidente, completa e inesperadamente descartada, no último instante, e em palanque planetário. Deve ter sido maravilhoso. Infelizmente, tendo assistido à toda a preparação, não assisti ao desfecho, porque, então, já trabalhava noutro emprego. Daria qualquer coisa para ter assistido ao vivo.

Pode acontecer outra vez?

Mas aquela questão era comparativamente muito menor, acompanhada só por uns poucos, e só nos círculos políticos do sul da Ásia. Imaginem então, se puderem, acontecer algo parecido, essa semana, na Assembleia Geral da ONU, quando o presidente Obama terá de explicar a atual política dos EUA sobre o pedido dos palestinos, que solicitam reconhecimento internacional para um novo estado. 

Todos sabemos o que os EUA andam dizendo: que o que o presidente Mahmoud Abbas (Abu Mazen) está fazendo é contraproducente, que implica repudiar os acordos de Oslo, que é tentativa de negar a necessidade de uma solução negociada com os israelenses. Vimos o aparato-monstro da política dos EUA em movimento, com os mesmos argumentos repetidos pelos enviados dos EUA aos palestinos e ao Quarteto, publicamente elaborados pela secretária de Estado e pelo porta-voz da Casa Branca, e repetidos em dúzias de outros fóruns, dos maiores, aos menores.
Abbas deve ter a impressão de que Obama é caso de múltiplas personalidades – professa apoio à solução dos dois estados e, ao mesmo tempo, veta a resolução que possibilitaria aquela solução 

Mas repetir sempre a mesma coisa, em tom alto e insistente, não converte nonsense em argumento consistente. O presidente Obama sabe muito bem disso. Ele compreende as idas e vindas da questão Israel-palestinos. Ele sabe que o processo de paz chegou a um beco sem saída.

No início do governo, o presidente tentou reviver as negociações, ordenando completo congelamento das construções na Cisjordânia. Só conseguiu que o primeiro-ministro de Israel Netanyahu, para grande embaraço de todos, o forçasse a desdizer-se. Quando, em maio passado, Obama cometeu a temeridade de dizer publicamente aos israelenses que a atual política de Israel para os palestinos é impossível e insustentável, e modestamente sugeriu que negociassem uma fórmula para sair do impasse, foi publicamente castigado por Netanyahu e teve de passar pela humilhação de ver líderes do Congresso dos EUA, de seu próprio partido, repudiarem o presidente e manifestarem-se a favor do primeiro-ministro israelense.

Em resposta, embora não possa admiti-lo, Obama lavou as mãos e afastou-se da questão palestina. Sabe que não pode fazer mais nada. Nem por isso o problema diminuiu ou moveu-se, um passo que fosse. 

Agora, outra vez, Obama está sendo obrigado a apoiar publicamente uma posição política israelense fundamentalmente oposta à sua posição pessoal. Obama sabe perfeitamente bem que Netanyahu não tem qualquer intenção de permitir que se forme um estado palestino viável, e que os palestinos têm pouca chance de sucesso, no caminho que escolheram seguir na ONU.

Também entende que o apoio solitário dos EUA a Israel e o inevitável veto ao pedido dos palestinos que requerem o reconhecimento como estado membro das Nações Unidas, minarão, talvez irremediavelmente, a posição dos EUA no Oriente Médio em democratização e exporão, como fraude, o apoio apenas nominal dos EUA aos direitos populares dos árabes.

A dimensão humana 

Tudo isso está bem entendido. Já se pode ver o que acontecerá. Mas sempre esquecemos a dimensão humana. 

Para o presidente de uma grande nação, em alguns momentos, o que é público se torna pessoal, como aconteceu com Bill Clinton naquele dia de abril de 1995. Não conheço pessoalmente o presidente Obama, mas tenho a impressão de que é homem orgulhoso, que não se vê como político ordinário, mas como líder que transforma. Obama tentou autocentradamente, esculpir um papel desse tipo para si mesmo, no contexto das relações dos EUA com o mundo muçulmano, mas foi repetidamente bloqueado, publicamente e muito feiamente.

Uma coisa é sacrificar princípios ante a realidade política. Todos os políticos são forçados a isso, em diferentes momentos. Mas outra coisa é fazê-lo oficial e publicamente, ver-se obrigado a dizer o que o mundo sabe que são mentiras, em encontro frente a frente, com outros líderes mundiais, que sabem o que ouvem e que, como resultado, verão, no presidente dos EUA, o personagem degradado. 

Eis o que está guardado para o presidente Obama, na ONU. E ele sabe disso.

É verdade que, por mais ocupado que seja o presidente dos EUA, há vias de escape, muitos meios para evitar o que desagrade. Mas, em algum momento, quando o presidente estiver sozinho com seu livro de informes em New York, acontecerá. Ele sentirá um calor, um aperto no peito, e será tomado pelo impulso de pegar o livro encadernado em plástico e jogá-lo na cabeça de alguém. Então, sairá e dirá o que realmente pensa.

Todos sabemos que o presidente não fará nada disso. Ele sufocará o impulso, porque não sufocá-lo seria suicídio político. Não. O presidente engolirá em seco e fará o que é obrigado a fazer. 

Mas, sim, bem valeria a pena dedicar alguma consideração à ideia de fugir do script, porque os EUA mais uma vez estão minando a própria segurança e a própria posição global, sem motivo algum, gratuitamente, para nada, em obediência cega e servil a um aliado mal-agradecido e autodestrutivo, e que, dessa vez, terá conseguido mais, algo mais pessoal: a mortificação pública de Barack Hussein Obama. 

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