sexta-feira, 18 de maio de 2012

Escravidão sem fim



Enquanto os deputados se recusam a votar a lei que pune o 

trabalho escravo, novos casos de abuso se repetem no País. O 

último envolve a rede Gregory de moda feminina

Natália Martino
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FLAGRA
Fiscais fecham uma das oficinas terceirizadas da 
Gregory: situação de trabalho degradante
Na semana passada, a Câmara dos Deputados mostrou que sua sintonia com a sociedade não está bem afinada. Pela segunda vez em menos de 15 dias, parlamentares de todas as matizes políticas adiaram a votação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 438, já aprovada pelo Senado. Trata-se da lei que prevê a expropriação de imóveis rurais e urbanos, cujos donos sejam flagrados usando trabalho escravo. Para procurar justificar os seguidos adiamentos, líderes de vários partidos dizem que a dificuldade está em definir o que é trabalho escravo. Um discurso que não encontra respaldo na realidade. O Ministério do Trabalho e Emprego tem regras muito claras que determinam como deve ser a relação entre empregadores e empregados. Ao fugirem do tema, os deputados parecem ignorar que, em pleno século XXI, ainda existe no Brasil situação de escravidão. E não são apenas casos isolados nos rincões do País. As fiscalizações do Ministério têm encontrado esse tipo de prática em grandes centros urbanos e a serviço de fortes grupos econômicos. Este mês, os fiscais encontraram 12 trabalhadores submetidos a condições semelhantes às da escravidão em São Paulo e em Itaquaquecetuba, no interior paulista. São bolivianos que produziam peças para a marca de roupas femininas Gregory, presente nos principais shopping centers do País.
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GRIFE
Roupas da rede feminina espalhadas pelo barracão: R$ 3 por peça
De acordo com o relatório da fiscalização da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego em São Paulo (SRTE-SP), os 12 trabalhadores bolivianos eram mantidos em condições precárias de segurança e saúde, com ausência de pagamento justo e cerceamento de liberdade. Sem a aprovação da PEC, os responsáveis por casos como esse estão sujeitos ao pagamento de verbas trabalhistas e indenizações. Na esfera criminal, a pena é de dois a oito anos de prisão, o que em geral é substituído por doação de cesta básica ou prestação de serviço comunitário. A fiscalização que flagrou a Gregory se deparou, em barracões precários, com situações como a de uma imigrante amamentando seu filho de um mês e meio enquanto trabalhava. Em uma das oficinas, o armário de alimentos ficava trancado. Em outra, os trabalhadores precisavam de autorização para sair, que nem sempre era concedida. Em todos os casos, iluminação precária, cadeiras improvisadas e jornadas de trabalho de 12 horas.

De acordo com Andrea Duca, diretora de marketing da rede fundada em 1981, que possui 80 lojas em 21 Estados brasileiros, a empresa não tinha conhecimento prévio sobre a situação e não possui o controle sobre o que acontece dentro das oficinas dos seus fornecedores, que são terceirizadas. “A fiscalização fez uma associação indevida do nosso nome ao problema”, afirma. O relatório, porém, é incisivo ao afirmar que a empresa “é inteiramente responsável pela situação encontrada”. De acordo com o documento, as notas fiscais das oficinas eram emitidas em nome de um CNPJ artificial como estratégia para eximir a Gregory de responsabilidades pela forma como a produção era conduzida. Essa não é a primeira vez que a grife se vê envolvida em denúncias. Em 2011, durante investigação que flagrou trabalho escravo a serviço da Zara, também foram encontradas etiquetas da Gregory nas oficinas fechadas pela fiscalização.
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AÇÃO 
Artistas e líderes de movimentos sociais entregam manifesto 
em Brasília a favor da PEC do trabalho escravo
“A empresa define o que vai ser produzido e o preço que vai pagar: apenas R$ 3 por peça, a ser dividido entre os donos das oficinas e os trabalhadores. É ela que efetivamente lucra com a exploração, não os intermediários”, diz Luis Alexandre de Faria, auditor da SRTE-SP. Os fiscais agora aguardam que a Gregory assine um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para regularizar o trabalho dos seus fornecedores. A rede assegura que resolverá o problema com o fim das compras de material de fornecedores que terceirizam o trabalho. 

Os trabalhadores resgatados já receberam as verbas trabalhistas devidas, quase R$ 55 mil, mas ainda resta a incerteza sobre o futuro. “O Brasil tem que avançar muito no pós-resgate. Se a si­tuação de vulnerabilidade não acaba, o trabalhador é aliciado de novo”, diz Luiz Machado, coordenador do projeto de combate ao trabalho forçado no Brasil da Organização Internacional do Trabalho (OIT). “Temos que lembrar que o fato de a vida dessas pessoas ser precária não é argumento para que o trabalho seja uma continuidade dessa condição”, afirma Leonardo Sakamoto, coordenador-geral da Repórter Brasil, ONG que atua no combate ao trabalho escravo. 

Das áreas rurais, onde as denúncias costumam envolver tortura física e falta de acesso a água potável, vem as maiores críticas em relação à PEC. O adiamento da votação é encabeçado pela bancada ruralista no Legislativo. De acordo com o deputado Moreira Mendes (PSD- RO), um dos integrantes dessa bancada, falta uma definição do que é escravidão. “As denúncias costumam ser um exagero absoluto”, afirma o deputado. Atualmente, os fiscais seguem as normas do Ministério do Trabalho e Emprego e o artigo 149 do Código Penal, que criminaliza o cerceamento de liberdade, trabalho degradante e as jornadas exaustivas. “Trabalho escravo é aquele que coisifica a pessoa e tira dela a dignidade. Não é irregularidade trabalhista, é afronta aos direitos humanos”, diz Luiz Camargo, procurador-geral do trabalho. Foram esses argumentos que tomaram conta da Câmara dos Deputados no dia 8 de maio, quando a PEC deveria ser votada. A data havia sido escolhida por se tratar da semana de 13 de maio, data em que a Lei Áurea foi assinada há mais de um século. A PEC seria uma nova abolição da escravatura no Brasil. Mas não foi desta vez. Agora os deputados afirmam que voltarão a falar sobre o assunto na terça-feira 22.
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