Os assaltantes
Os queixosos contribuintes brasileiros, apoiados pela "grande" imprensa, deveriam mirar-se no exemplo
da França, da Alemanha, da Suécia... Até dos EUA
Alguns ingratos brasileiros consideram
impiedosamente que a chamada “grande” imprensa e a tevê nacional são
afetadas pela ausência de pluralismo e por atitudes de descriminação
racial. Em particular, os três principais jornais do País expressariam
exclusivamente “um pensamento de direita”, ou seja, conservador ou
reacionário.
Este colunista não pode deixar de
compartilhar as perplexidades de tais minorias inquietas. De fato,
encontro dificuldade em adquirir informação imparcial sobre a realidade
nacional através das principais mídias, as quais tendem à exaltação de
notícias que interessam aos próprios donos e chegam ao obscurantismo de
censurar as que são incômodas à categoria. Mas, ao contrário dos
detratores indômitos, devo confessar sincero reconhecimento ao maior
jornal do Rio de Janeiro, por ser fonte inesgotável de inspiração para
as minhas colunas quinzenais.
Em temporada de declaração de renda, por
exemplo, ouvir em bares e botequins conversas estapafúrdias sobre a
insuportável carga do Fisco, é quase normal no mundo inteiro. Em geral,
para os alterados fregueses, sejam alemães ou argentinos, o Fisco pior é
sempre o próprio. Mas no Brasil constatamos maior originalidade: é
possível ler comentários similares na “grande” imprensa. É o que me
aconteceu dias atrás ao folhear O Globo: uma ampla crônica escrita por
badalada comentarista foi dedicada a descrever o “desgosto” por ter de
declarar o Imposto de Renda, descrito, com riqueza de detalhes, como
“pior que um assalto”. Depois de minuciosos paralelos com bandidagem
comum e agudas descrições psicossomáticas da “violência que praticamos
contra nós mesmos” ao preencher o IR, chega-se às inevitáveis queixas
sobre os péssimos serviços e as roubalheiras públicas (neste aspeto,
concordamos, é óbvio). As conclusões da crônica, não particularmente
originais, são que no Brasil se pagam “impostos suecos por serviços
dignos do Afeganistão”. Com toda franqueza, fosse eu afegão, ficaria
ofendido, mas, como observador internacional, limito-me a algumas
observações críticas sobre o que li.
Difundir na opinião pública ideias e
sentimentos tão radicalmente hostis ao difícil dever cívico de pagar
impostos é fato muito grave em si, em qualquer parte do mundo, e
prescinde de qualquer atenuante: estimula egoísmo e incivilidade. Tal
atitude é, sobretudo, lastimável da parte de quem pertence à classe
privilegiada brasileira, ou seja, aquela que paga menos impostos do que
os outros.
A carga tributária, ou
seja, a relação porcentual entre o somatório de todos os impostos e a
riqueza produzida por um país, é no Brasil muito menor que em outras
economias de destaque. Em 2012, foi de 36%, mas na Europa tal relação
transita hoje tranquilamente acima de 40%, tocando 45% na França e 46%
na Alemanha, até chegar a 55% no caso da Suécia, citada pelo O Globo na
ridícula comparação com o Brasil. Na potência econômica onde
aparentemente se pagam menos impostos, os EUA, com carga tributária de
28%, é preciso aperfeiçoar a análise para evidenciar outro dado
importante: a contribuição fiscal per capita. Assim, se constatará que
cada cidadão americano paga, em média, 13.550 dólares de impostos ao
ano, quando o brasileiro se limita a 4.000.
É notório, enfim, que a taxação progressiva
e direta constitui elemento de equidade democrática e redistribuição de
renda. O Brasil, ao contrário, é um dos países com os impostos mais
regressivos do mundo, ou seja, onde os pobres, através dos prevalentes
impostos indiretos (no consumo e produção), pagam muito mais do que os
ricos. Qualquer jornalista de média cultura deveria conhecer essa
realidade e o fato de ignorá-la explica-se só com grande ignorância ou
profundo preconceito. No caso dos donos do poder, não: trata-se de pura
má-fé.
O Estado brasileiro é patentemente refém
desses patrões, que, controlando o Parlamento, impedem qualquer reforma
fiscal mais equilibrada e democratizante. Como se sabe, o destinatário
dos impostos é o Estado e não o governo vigente, como a comentarista
carioca afirma levianamente. Parafraseando-a, vem espontâneo o
comentário de que certos brasileiros pretenderiam serviços públicos
franceses pagando impostos de república bananeira.
Então, fique claro: os verdadeiros assaltantes do bem-estar social são os ricos, em prejuízo dos pobres.
http://www.cartacapital.com.br/revista/749/os-assaltantes
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