segunda-feira, 28 de abril de 2014

A LIBERDADE DE OPRESSÃO DOS ABERTAMENTE PRECONCEITUOSOS


Sentindo-se confortável no meio da rua?

Foi vendo o documentário O Riso dos Outros (para o qual tive a honra de ser entrevistada), de Pedro Arantes, que descobri que Preta Gil é (ou era? Será que não é mais?) uma muleta no humor brasileiro. Parece que, quando a noite de um comediante de stand-up não está rendendo e o público não ri, o humorista faz uma piadinha falando que a Preta Gil é gorda e feia, e o pessoal gargalha.
Tem gente que adora chamar negro de macaco, mulher de vadia gorda, homossexual de viado, e faz desse tipo de “humor” uma bandeira contra o politicamente correto. Pra essa gente, a pior praga que tem neste planeta não é a fome, a violência, o estupro -- é o politicamente correto.
No ano passado, um desconhecido comediante britânico, Michael J. Dolan, publicou um artigo chamado “Eu fui um comediante misógino”. Ele diz que lançou uma gravação independente com seu show e recebeu duas críticas, uma positiva e outra negativa, esta última declarando que suas piadas eram misóginas. Quando ele perguntou a uma amiga feminista o que ela achava, ela confirmou o machismo dos chistes. Após um pouco de reflexão, ele concordou, e chocou-se como aquilo havia passado batido para ele, o autor do roteiro. Ele escreve no artigo:
"A verdade é que a misoginia está em alta no cenário britânico do stand-up atual. Vá a qualquer clube de comédia e veja o quanto demora até que um dos atos chame uma mulher do público de vadia em troca de uma risada fácil. Veja quantas piadas giram em torno do humorista exercendo alguma violência sobre uma garota imaginária, e espante-se que essas piadas sejam tão bem recebidas. Ou apenas conte as piadas de estupro. Só haverá algumas, mas quase sempre haverá uma ou duas.
Exceto que não são só uma ou duas. A defesa usada com frequência é que são só piadas. Não devem ser levadas literalmente, e nós logicamente não estamos falando sério. Mas você raramente ouvirá um ato contemporâneo tentar justificar o racismo dessa maneira. [Nota da autora: Dolan precisa conhecer alguns humoristas brasileiros]. 
Sabemos que numa cultura racista toda piada racista contribui para essa cultura, e nenhuma delas é aceitável. Com a misoginia não é diferente. Na nossa cultura de misoginia, de violência contra as mulheres, toda piada misógina contribui. [...]
Os comediantes racistas de antigamente foram deixados pra trás quando o resto do mundo avançou. Alguns se recusaram a mudar, alguns foram incapazes de perceber o que havia de errado no que faziam. Uma nova geração de comediantes está prestes a ser deixada pra trás. Aqueles traficando misoginia, homofobia ou outras variedades de ódio para bêbados sem discernimento vão logo ficar sem amigos." (minha tradução).

Seria ótimo se a profecia de Dolan se tornasse realidade. E seria ótimo se muitos dos comediantes que temos no Brasil fizessem essa autocrítica que ele faz. Assim como podemos, na educação, fazer a pergunta "Pra que(m) serve o teu conhecimento?", também podemos perguntar: "Pra que(m) serve a tua piada?" Para ajudar a derrubar preconceitos, ou para perpetuá-los? Para empoderar grupos historicamente oprimidos, ou para oprimi-los mais uma vez?
Infelizmente, muitos humoristas parecem se achar semi-deuses, imunes a críticas, acima do bem e do mal. A cada nova discussão, esses comediantes costumam bradar “Censura!” Eles reclamam que há uma “patrulha”, uma “ditadura do politicamente correto” que não permite que realizem seu trabalho, que, dizem eles, é apenas o de fazer rir. Mas emprego é o que não falta pra eles. 
Existe uma inversão de valores, já consolidada pelo senso comum. Enquanto vários comediantes são vistos como modernos e despojados -- apesar das palavras reacionárias que saem de suas bocas -–, as pessoas que lutam por mudanças na sociedade são consideradas caretas e atrasadas. O resultado é que hoje politicamente incorreto virou eufemismo para abertamente preconceituoso.
O humor pode sim ser transgressor. Mas o que esse pessoal que ataca minorias pra fazer piada precisa entender é que eles não estão transgredindo nada. Seus tataravôs já eram preconceituosos. 
Certamente eles já comparavam negros com macacos, já faziam gracinhas sobre a sorte que uma moça feia tem em ser estuprada. Quem ainda adota essas piadas no século 21 não está sendo ousado ou criativo, só está seguindo uma tradição. Ousadia é querer mudar o mundo, começando pela forma que falamos. Não há nada de novo ou de rebelde ou de engraçado em eternizar velhos preconceitos.
Piadas não são neutras. São armas que podem ferir, destruir, perpetuar preconceitos, e também derrubá-los. O humor é um discurso como outro qualquer, não está acima da lei. Querer que o humor se responsabilize pelo que diz não é censura -– é também liberdade de expressão. Mas muitos humoristas parecem querer manter, a qualquer custo, a liberdade de opressão.
 
http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/2014/04/a-liberdade-de-opressao-dos-abertamente.html

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