sexta-feira, 12 de setembro de 2014

O jogo político por trás do conceito de BC independente, por J. Carlos de Assis



O homem comum deve encarar como discussão bizantina a controvérsia em torno da proposta de independência do Banco Central defendida por Marina e Aécio, e rejeitada por Dilma. Acredito que, dentre os 202 milhões de brasileiros, não menos que 201 milhões não têm a menor ideia do que se trata. Claro, ninguém é obrigado a conhecer Física Quântica para concluir que a energia nuclear é, em certas circunstâncias, um risco. Os economistas do BC independente atuam como alguns físicos que defendem ou atacam a energia nuclear: recorrem ao argumento da autoridade. Em certos casos, para forçar o argumento, apelam para o puro charlatanismo.
O debate sobre o BC independente está permeado de desinformação. Reflete em seus aspectos fundamentais a dominação do poder econômico camuflada de sabedoria técnica. Muitos economistas se prestam a esse jogo a fim de atender a interesses próprios ou de políticos, enquanto políticos fazem o jogo do poder econômico e ganham com isso apoio financeiro para o exercício de seu poder específico. Diante desse quadro  sujeito a tantas manipulações, eu, na qualidade de economista político, vou tentar esclarecer a política que está sob a operação de um BC independente, e a economia que se pretende assegurar com a proposta de independência do BC.
Primeiro vamos às operações básicas. O banco recebe de você 100 reais em depósito e os empresta  com taxa de juros de 50. O tomador, passado um tempo, paga o principal e os juros, 150. O banco então devolve os seus 100 e embolsa 50. Eis aí o primeiro fenômeno da política monetária: a criação de moeda do nada que se torna lucro e patrimônio do banco. Essa operação não é absolutamente garantida. Pode haver calote. Diante disso, o banco pega parte dos depósitos que você faz nele e coloca como reservas próprias no BC para usar numa emergência. Claro, o BC remunera o banco, como se fosse dinheiro dele, e não seu. Daí o segundo fenômeno da política monetária: o BC cria dinheiro para doar a os bancos particulares na remuneração das reservas.
Vamos agora a um fenômeno paralelo, a emissão monetária. O BC estabelece a taxa de juros básica para remunerar as reservas bancárias: é a chamada Selic. A definição dessa taxa resulta da solução de uma complexa equação que indica, com a força do oráculo de Delfos, a fração exata que põe a inflação na meta estabelecida nominalmente pelo Conselho Monetário - mas, na verdade, pelo próprio BC. Entretanto, a taxa Selic tem que ser “defendida” pelo BC, pois se ela flutuar a inflação, dizem, sai do controle. Pode haver o caso em que os bancos desaguem muito dinheiro nas reservas, pressionando para baixo a taxa Selic; ou, ao contrário, que os bancos pressionem para o alto a taxa tomando dinheiro emprestado das reservas. No primeiro caso, o BC “enxuga” as reservas; no segundo, emite dinheiro para aumentar o volume de reservas disponíveis para os bancos. Eis aí o terceiro milagre da política monetária, a destruição e criação de moeda pelo BC para “defender” uma determinada taxa básica de juros.
Até aqui não tratei de independência ou autonomia do BC. A distinção entre as duas é simplesmente semântica. Admite-se que autonomia operacional é a prerrogativa do BC de atuar dentro de determinados parâmetros “técnicos”, a saber, a institucionalidade exposta acima. Independência, nesse caso, seria a prerrogativa de alterar os próprios parâmetros operacionais. Entretanto, um BC realmente a serviço da economia, e não a serviço exclusivamente dos bancos, opera em direta articulação com o Tesouro: e esta é a questão central que vamos examinar agora. Por isso, não pode ser independente.
Tomarei inicialmente como exemplo o FED, o banco central norte-americano, que opera   sob óbvia influência de Wall Street mas que responde simultaneamente ao Governo. Portanto, não é um BC independente. Como opera? Desde 2008 o Tesouro norte-americano opera em déficit de mais de 1 trilhão de dólares anuais. O Tesouro toma esse dinheiro emprestado anualmente do mercado. Entretanto, se o mercado tentar pedir uma taxa de juros muito alta, pressionando a dívida pública, o Tesouro entra em contato com o FED e o FED reduz a taxa de juros, como fez, para quase zero por cento, facilitando a colocação dos títulos. Se necessário, para respaldar a taxa de juros mais baixa, o FED emite dinheiro barato para disponibilizá-lo aos bancos e estes o repassarem ao mercado produtivo. (É dessa forma, e não rodando uma suposta guitarra, como ficou vulgarizado por Milton Friedman, que se injeta dinheiro na economia americana.)
Agora, vejamos o que acontece na Europa. O Banco Central Europeu é o modelo do banco central independente, pois não há nenhuma conexão entre ele e os tesouros nacionais dos países do euro. Se um país, por exemplo, Portugal, quer captar dinheiro no mercado privado, que é o único que ele tem, está totalmente à mercê da ganância de juros. O BCE não se move para facilitar a vida dos  tesouros nacionais. Ao contrário, exige que os tesouros nacionais vão ao mercado para captar dinheiro exclusivamente com o fim de pagar dívida pública, neutralizando qualquer possibilidade de política fiscal expansiva.Eis um BC efetivamente independente, um poder acima das soberanias nacionais, não obstante taxas de desemprego de depressão em toda a Europa.
Bom, comparemos os dois sistemas. Nos Estados Unidos, a partir de 2010, o Partido Republicano impediu que Obama fizesse um segundo programa de política fiscal de estímulo à economia. Contudo, como dito acima, o déficit fiscal continuou. E o FED entrou pesado com a política de “facilitação monetária” para inundar a economia de liquidez. Não se pode dizer que essas políticas fiscais e monetárias combinadas tiveram êxito pleno, pois a recuperação americana não se firma: cresceu bastante no último trimestre, mas depois de uma forte contração no segundo, e ainda não se sabe o que acontecerá no terceiro. De qualquer forma, é uma performance, sobretudo na área do emprego, infinitamente superior à da Europa.
É que o BCE mergulhou a Europa do euro na situação que Keynes descreveu como “armadilha de liquidez”. Inicialmente, não obstante a brutalidade da crise, ele resistiu em ampliar a liquidez. Depois, diante da evidência da tragédia econômica europeia, ele reduziu para nível negativo (-0,01%) a remuneração das reservas bancárias e colocou à disposição dos bancos para emprestarem ao mercado 400 bilhões de euros a taxas simbólicas. Acontece que não há tomadores para o dinheiro. As corporações investem quando têm mercado e perspectiva de lucro, não porque têm crédito barato. Ninguém produz para prateleiras. Em suma, o problema europeu não é de política monetária, mas fiscal. E o BCE, junto com a Comissão Europeia e o FMI, se tornaram carrascos fiscais da área do euro, pois não se permite aos governos tomar crédito para gastar.
Portanto, a presença de um Banco Central independente, o BCE, é a tragédia da Europa do euro. Sem articulação entre BC e Tesouro não é possível fazer políticas fiscais expansivas, e sem políticas fiscais expansivas não há a mais remota possibilidade de recuperação da economia europeia – exceto por uma explosão de exportações mediante acordos de livre comércio que sufocariam em manufaturas países como o Brasil de Aécio ou de Marina. Creio que a proposta de Marina e de Aécio por um BC independente no Brasil, junto com a proposta de livre comércio com a Europa e os Estados Unidos, é fruto da ingenuidade e do desconhecimento; mas Armínio Fraga e Gianeti, creio eu, sabem o que estão falando.
J. Carlos de Assis - Economista, doutor em Engenharia de Produção pela Coppe-UFRJ, professor de Economia Internacional na UEPB, autor de “O Universo Neoliberal em Desencanto”, com Antonio Doria.
http://jornalggn.com.br/noticia/o-jogo-politico-por-tras-do-conceito-de-bc-independente-por-j-carlos-de-assis

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