terça-feira, 7 de outubro de 2014

Por que a crise da água não impactou a eleição para o governo de SP?


Dispositivos da blindagem: Por que a crise da água não impactou a eleição para o governo de SP?
Apesar de conviver com a mais grave crise de abastecimento da história, Geraldo Alckmin conseguiu aquela que foi, provavelmente, a vitória eleitoral mais tranquila da história do PSDB em São Paulo. Com mais de 57% dos votos em todo o Estado, o atual governador conseguiu uma votação expressiva até mesmo na cidade de São Paulo, tendo aí alcançado quase 52% da preferência popular. A crise hídrica poderia ter sido, de um ponto de vista político, a maior oportunidade de criação de contexto para a alternância de poder em São Paulo após duas décadas de domínio irrestrito do tucanato. No entanto, em que pese sua abordagem pelos candidatos, o cidadão paulista (e o paulistano, em específico, por ser o mais afetado pelo problema) não conectou o problema ao seu responsável.
Para além de todas as considerações já feitas à existência de um renitente antipetismo no Estado e de graves falhas na macroestratégia de campanha conduzida pelo PT no Estado, o fato é que nenhuma candidatura conseguiu colar a imagem de Alckmin às torneiras reiteradamente vazias das casas dos milhares de cidadãos afetados pelo problema. Um primeiro fator explicativo para tanto está na relativa aridez do tema: apesar da falta d’água ser uma questão absolutamente concreta e atentar tão dramaticamente contra a cidadania das pessoas, a sua percepção como um problema de gestão (seja ele de responsabilidade do prefeito, do governador ou da presidenta) não é, na prática, um processo automático. É possível notar uma consistente mitologia popular que conecta, de forma linear, o desabastecimento à seca, uma lógica que é tautológica (potencialmente falaciosa, portanto).
Essa insensibilidade, no entanto, não é imponderável. Em que pese o reconhecido antipetismo do eleitor médio – que o levaria, mais facilmente, a notar o problema como de responsabilidade do governador caso este fosse petista –, não é possível afirmar que o ônus pelo problema jamais poderia ser associado a Alckmin (conforme aventado por alguns analistas). Teria sido necessário que os meios de comunicação tivessem realizado esse papel informativo e crítico. Obviamente, contudo, não o performaram. Pelo contrário, foram dispositivos essenciais para a blindagem do governador.
Desde quando começamos a tratar da crise, em Abril, notamos que o tema foi, sim, abordado pelos principais jornais. Vez ou outra, com algum grau de criticidade. Em geral, contudo, a ideia básica transmitida foi a exata associação entre os recordes de estiagem e a redução dos níveis dos reservatórios (correlação que é, conforme vários artigos já publicados aqui, apenas parcialmente verdadeira, e a qual jamais pode deixar de responsabilizar um gestor). Ou seja, nenhum passo foi dado para além do mais simplório senso comum do cidadão médio, que tende a não possui os instrumentos para promover um julgamento técnico da questão, por razões óbvias.
Aqui cabe a reflexão de que a blindagem funciona não apenas quando um problema público não é abordado, mas também – e principalmente – a partir da forma e do momento em que ele é abordado. Com relação a esse segundo aspecto, por sinal, notamos outras razões relevantes para explicar o descolamento entre Alckmin e a crise hídrica. Primeiramente, vale citar o “editorial Pôncio Pilatos” da Folha de São Paulo de Domingo, dia da eleição, cujo título era “Estelionato Eleitoral”. O termo, por nós utilizado desde pelo menos o mês de Maio, foi adotado pela primeira vez, explicitamente, pelo jornal. A linguagem, que denunciaria com conteúdo ético a extensão dos problemas em curso e o seu escamoteamento pelo Governo de São Paulo, talvez soaria para alguns como um sinal de “independência” do jornal perante seu candidato.
Ao ter sido feito apenas na manhã das eleições, contudo, nada mais foi do que um “lavar de mãos” do jornal, que foi o campeão da abordagem da crise do ponto de vista da estiagem. Por certo, ao dela tratar nesse tom apenas na manhã das eleições, cumpriu meramente um ritual protocolar, de aliviamento das consciências de seus próprios editorialistas diante de todo o tratamento condescendente dado à crise desde o começo do ano.  Apenas no momento em que ela aparece como “insuperável” é que realizam essa manifestação, a qual não possuiria, jamais, qualquer condão de conscientização ao ser realizada apenas no dia do pleito. Servirá no futuro, contudo, como argumento de defesa do jornal diante de seus eventuais críticos, como uma espécie de “eu disse”, ainda que absolutamente extemporâneo.
Pior, contudo, foi o tratamento dado pela Rede Globo. Isso porque, apesar de o tema merecer pelo menos umas duas edições do “Globo Repórter”, jamais passou de ter algumas dezenas de segundos nos jornais locais. O mais significativo, contudo, sempre foi a tônica de sua já escassa cobertura: falar sobre a seca como um fim em si mesmo, contar a respeito do sucesso do bônus e criticar o desperdício “da dona de casa”, por vezes com um tom indignado. Nada mais distante de um entendimento sistêmico da questão. A manifestação mais espetacular dessa lógica, contudo, ocorreu APÓS as eleições, na edição de Domingo à noite do Fantástico (com Alckmin já reeleito).
A matéria, intitulada “Paulistanos criam os ‘fiscais da água’ contra o desperdício” (disponível aqui: http://globotv.globo.com/rede-globo/fantastico/v/paulistanos-criam-os-fiscais-da-agua-contra-o-desperdicio/3676024/) é uma síntese excelente do que foi o tratamento dado pela mídia à crise. Em uma matéria de 6 minutos (que contou, inclusive, com diminutos trechos daqueles vídeos postados no Youtube pelo Dú Dias, os quais trouxe para o blog há cerca de 3 semanas), desempenham um show do ponto de vista de como uma questão pode ser abordada a partir de uma perspectiva meramente liberal: 1) exaltam três indivíduos “conscientes”, que decidiram lutar contra o desperdício; 2) associam a extensa crise a longos takes de funcionários lavando calçadas; 3) mostram cidadãos das regiões do entorno dos reservatórios clamando por ajuda divina; 4) exibem uma das únicas filmagens impactantes da gravidade do problema como simples “passeio de motoqueiros” (e nós sabemos que o autor do vídeo critica o governo em várias oportunidades); 5) convocam cidadãos para também se “engajarem” na causa.
A reportagem é fantástica (sem trocadilho) porque ela é um case sobre como cobrir um problema público a partir de uma perspectiva eminentemente individual: 1) o problema central da crise está no desperdício (não o que ocorre por parte da SABESP, antes de a água chegar nas casas, mas sim dos funcionários “esbanjadores” – crítica a qual, evidentemente, possui até mesmo um componente de classe); 2) os “fiscais da água” são cidadãos (e nada é falado sobre a responsabilidade da SABESP quanto a isso); 3) a resolução do problema, mais amplamente, é pautada a partir de um clamor metafísico; 4) a cobrança – moralista – dos jornalistas é feita aos próprios cidadãos, para que resolvam o problema; 5) o engajamento é definido como um feito singular (sendo que, há apenas duas semanas, 5 mil pessoas realizaram uma grande manifestação em frente à sede da SABESP); 6) o tratamento da água como “propriedade privada” (no caso da mulher que declara ter adquirido um caminhão-pipa) sequer é confrontado, pois colide com um fundamento da práxis liberal defendida, subsidiariamente, pelo próprio programa de TV; 7) a questão da multa pelo desperdício (que seria o ponto alto enquanto resposta liberal ao próprio problema levantado) é apresentada com extremo cuidado pela emissora em um trecho de menos de 10 segundos da reportagem, mais uma vez sem citar o governo (que não adotou a medida, sabemos, por impactar suas pretensões eleitorais).
Temos, então a consagração de uma curiosíssima modalidade de controle social: o accountability por sobre o próprio povo, um “outro” que é o “real” culpado pela crise. É absolutamente evidente que o desperdício – mesmo esse, singelo, de quem está lavando a rua de casa – é uma questão que precisa ser endereçada, é um elemento que precisa ser trabalhado do ponto de vista da mudança da cultura cívica sobre o uso da água. Tratá-la, no entanto, como o fundamento central do seu aprofundamento só poderia ocorrer a partir de uma perspectiva de análise que estivesse absolutamente propensa a não ser sistêmica – uma marca do pensamento reificado, alienado. É essa a postura da mídia, que se pode ser vislumbrada, como uma articulação azeitada, com aquele “especial” que a Folha fez sobre a crise hídrica mostrando-a como decorrente do “excesso de pessoas” (quando sabemos que o crescimento da população na região metropolitana de São Paulo, nos últimos 10 anos, foi vegetativo e aquém das previsões da própria SABESP). A blindagem, então, cerca o governo como uma ilha, e a partir dessa eficiente operação sobram apenas o próprio povo e São Pedro como decorrências.
Um outro elemento que justifica a impermeabilidade de Alckmin (perdão por outro trocadilho) é a omissão de autoridades legalmente responsáveis. Na ausência de um órgão capaz de fazer o controle interno da gestão do Estado (algo que o PSDB teve 20 anos para fazer e ainda não o fez) e na circunstância de o Tribunal de Contas do Estado funcionar como uma aposentadoria gloriosa para ex-servidores do próprio governo (incluindo-se aí Robson Marinho), caberia ao Ministério Público a terceira possibilidade de pressão institucional. A atuação do órgão – seja o estadual, seja o federal – foi extremamente tímida, contudo, ao longo de todo o processo. De forma absolutamente curiosa, o MP veio a se manifestar ontem, um dia após o término das eleições, no sentido de buscar vetar o uso integral da segunda cota do volume morto do Cantareira. Diria que o timing da intervenção é uma comprovação irrefutável da lamentável vocação desse órgão para contribuir à efetiva blindagem de Geraldo Alckmin.
Quando temos tantas frentes importantes de proteção a um governante e quando a sua oposição fracassa em adotar estratégias de articulação para conscientizar a população sobre aquele que é – juntamente com os ataques do PCC em 2006 – o maior marco da crise institucional do Estado em duas décadas, temos, enfim, o sucesso eleitoral retumbante de Alckmin. Diante da falência das instituições de controle e fiscalização, não há como não ficarmos céticos sobre o que ocorrerá quando a água começar a faltar 24 horas por dia nas casas dos cidadãos. Não duvido, infelizmente, que os crimes de improbidade administrativa e ambiental sejam deslocados da figura fundamental pela crise – Geraldo Alckmin – e imputados (se imputados) a servidores de segundo e terceiro escalão do governo. A conferir.
Vale dizer, enfim, que apesar de tudo, a crise hídrica ainda pode impactar nas eleições presidenciais, conforme matéria da própria Folha de hoje – um indício do quão próximos estamos do abismo, considerando-se que o pleito estadual acabou de ser finalizado. Aparentemente, Alckmin teme adotar medidas impopulares agora, ao longo do 2º turno presidencial, o que potencialmente levaria à derrocada de Aécio em São Paulo. Pelo visto, a SABESP terá de apertar os cintos até o final de Outubro e prosseguir na “luta” diária pela extração das poças de água remanescentes nos reservatórios. Uma hora, contudo, mesmo as melhores soluções improvisadas de engenharia não conseguirão dar conta da crise, a cada instante mais complexa.
Nesse momento (Terça-feira, 15:40), a captação de água pelas bombas está em apenas pouco mais de 13 m³/s (sendo que a média tem estado em mais de 18 m³/s). Com isso, a represa de passagem, Paiva Castro, está com menos de 50 cm de cota pela primeira vez na história (suas vazões de entrada, assim como as dos demais reservatórios, estão extremamente baixas, e não estão sendo compensadas pelo aumento da captação das outras represas, pelo contrário – um indício de que a SABESP está com muitas dificuldades para retirar o final da primeira cota tanto do Atibainha como do Jaguari, levando também ao colapso a represa mencionada e a Cachoeira). Se a Estação de Tratamento continuar mandando 20-21 m³/s como fez ao longo dos últimos meses, teremos a interrupção do fluxo de água em 3 dias. Isso mesmo, 3 dias. Se a ETA diminuir sua produção para equalizar os 13 m³/s, teremos, inevitavelmente, um racionamento. Não sabemos se há problemas nas bombas ou outros fatores, mas os números não mentem, mesmo que contornados por ora: o Governo de São Paulo está no fio da navalha para o colapso do abastecimento de água. As eleições estaduais foram vencidas, mas o custo desse êxito terá sido um dos mais elevados da República.
Ps: quem ainda não conhece, há um projeto de financiamento coletivo de um documentário, chamado Volume Vivo, que pretende abordar a crise hídrica em São Paulo:http://www.sibite.com.br/campaigns/volume-vivo . Hoje foram publicadas fotos bastante interessantes do Jaguari-Jacareí: https://www.facebook.com/media/set/?set=a.1477131702564624.1073741830.1441932942751167&type=1 . O autor do documentário fez o excelente “Entre Rios” (https://www.youtube.com/watch?v=DrITdOscioQ)
Ps2: registros interessantíssimos da crise hídrica também podem ser encontrados emhttp://aguasp.tumblr.com/, perfil tocado pelo Instituto Sociambiental (http://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/sobrevoo-mostra-situacao-das-principais-represas-que-abastecem-a-grande-sao-paulo)
Ps3: há ainda a coleção de fotos das represas do Cantareira que está sendo consolidada pelo Instituto Ipê (projeto “De Olho no Cantareira”):http://ipe.org.br/semeandoagua/index.php/nggallery/page/3?page_id=288
http://jornalggn.com.br/blog/sergiorgreis/sergio-reis-por-que-a-crise-da-agua-nao-impactou-a-eleicao-para-o-governo-de-sp

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