segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

O Supremo e a noite escura do Brasil, por Márcio Sotello


Do Justificando


Marcio Sotelo Felippe

Quando Chico Buarque de Holanda não conseguia passar pela censura da ditadura militar qualquer música que assinasse, inventou um personagem. Deu-lhe o nome de Julinho da Adelaide, que “compôs” o samba Chama o ladrão. Aprovada pela censura, obteve grande sucesso. “Julinho da Adelaide” deu até entrevista para Mario Prata contando a história de sua vida e de sua mãe Adelaide... [i]

A letra era uma denúncia satírica da delinquência repressiva da ditadura militar. Assinada por Chico, evidente a natureza política. Mas por alguém com o nome de sambista do morro terá sido talvez entendida como a história de um malandro fugindo da polícia. Dizia “acorda amor/eu tive um pesadelo agora/sonhei que tinha gente lá fora/batendo no portão, que aflição/era a dura, numa muito escura viatura/minha nossa santa criatura/chame, chame, chame o ladrão/chame, chame o ladrão, chame o ladrão”. No final, o eu lírico de Julinho da Adelaide percebe que não era pesadelo coisa nenhuma. Era a dura mesmo. Ou a ditadura.
 
Escrevo na manhã de quinta, 18 de fevereiro e ao acordar, naquela perturbada zona limítrofe entre sono e vigília, pensei ter tido pesadelo, como na letra de Julinho da Adelaide. Pensei ter sonhado que no dia anterior o STF havia decidido que onde estava escrito na Constituição Federal “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória” devia-se ler “ninguém será considerado inocente até o trânsito em julgado da sentença penal absolutória”. Era um pesadelo: o STF voltava aos tempos pré-iluministas, aos tempos do Santo Ofício, em que a acusação era suficiente para que alguém fosse presumido culpado e que Deus providenciasse uma prova da inocência por uma ordália.
 
Pensei ter sonhado que o celebrado constitucionalista Barroso, ora ministro do STF, que tanto escreveu sobre como princípios deveriam moldar o ordenamento, havia dito que era preciso reestabelecer o “prestígio e a autoridade das instâncias ordinárias” e que em certos casos até após apenas a decisão condenatória em primeira instância a prisão poderia caber, e deu como exemplo o júri.
 
Porque, afinal de contas, somente em pesadelo um ministro do STF tido como moderno poderia dizer tal coisa em um país em que a população carcerária cresce em proporções geométricas, submetida a condições absolutamente degradantes, sub-humanas e em que, como Celso de Mello lembrou na mesma sessão, 25% das condenações são revertidas no STF.
 
Mas não era pesadelo.
 
Corri para o computador para verificar o acórdão do STF no HC 84.078, que fez valer a presunção constitucional de inocência em 2009.  Porque poderia se dar que eu tivesse sonhado a sua existência. Mas não. Também era real. E nele, exatamente nele, no acórdão que sete ministros do STF pisotearam no dia 17 de fevereiro, cita-se uma frase do maior dos advogados brasileiros, também um dia ministro do STF, Evandro Lins e Silva: “na realidade, quem está desejando punir demais, no fundo, no fundo, está querendo fazer o mal, se equipara um pouco ao próprio delinquente”.
 
Chama o ladrão?
 
Nada disso era sonho, mas também não amanheceu. Há algum tempo que são 3 horas da madrugada no Brasil, a hora mais trevosa da noite, a hora que secular tradição diz ser a hora do demônio.
 
Na noite escura do Brasil, sob uma Constituição democrática na qual o princípio da dignidade humana é basilar, cresce a repressão do Estado, hipertrofia-se o Direito Penal, mais e mais gente abarrota cadeias em nome da “ordem” e há uma criminosa omissão de parte da sociedade e de autoridades diante dos homicídios cometidos pelas Polícias Militares. São jovens, negros e pobres das periferias que morrem nessa hora mais escura e jamais verão os raios da aurora. E diante de seus cadáveres há omissão ou às vezes festejos.     
 
Na noite escura do Brasil torturadores confessos dos tempos da ditadura zombam de nós, impunes e sob o beneplácito do Estado. São enterrados com honras militares A impunidade dos perpetradores dos crimes de lesa humanidade ecoa hoje nos porões das delegacias.
 
Na noite escura do Brasil juízes se veem como agentes da segurança pública e fiscais de (seletiva) moralidade pública, pequenos torquemadas, e não como garantidores de direitos. Prendem para obter confissões e são festejados como heróis.
 
Na noite escura do Brasil magistrado que cumprir a Constituição e libertar pessoas presas além do tempo da pena pode ser punido pelos seus pares.
 
Na noite escura do Brasil zumbis vestidos de amarelo pedem a volta da ditadura e sorriem felizes em fotos com soldados armados.
 
Na noite escura do Brasil dizem que tudo isto está muito bem porque é preciso manter a ordem, prender corruptos e “higienizar” a sociedade, seja matando, seja amontoado pessoas como ratos em presídios imundos, seja pisoteando garantias fundamentais.
 
Na noite escura do Brasil é desordem defender direitos, é desordem dar eficácia aos preceitos democráticos da Constituição, é desordem garantir a dignidade humana. É desordem até mesmo libertar presos que já cumpriram pena.
 
Mas esta “ordem” é, como dizia com a contundência e a coragem dos grandes advogados Evandro Lins e Silva, a vontade do mal. Como se defender se o mal veste majestosas togas cheias de pompa e circunstância e é proferido por pessoas que ali estão, supostamente, para guardar a Constituição? Chama o ladrão?
 
O velho e sábio mestre da Filosofia do Direito Goffredo da Silva Telles fulminava a ideia de “ordem” dizendo que tudo pode ser ordem ou desordem. Usamos essas palavras quando a disposição das coisas nos convém. E elas podem nos convir como seres éticos ou convir para aqueles que, no fundo, “equiparam-se um pouco” a quem delinque e podem fazê-lo, insciente ou não do mal, em nome do Estado. E isto não sou eu que digo. Foi um ex-ministro do STF, citado pelo próprio STF, que disse.
 
As palavras “norma”, “interpretação da norma” “decisão judicial”, “poder”, “autoridade” e outras tantas tem a capacidade de suspender juízos lógicos e morais. Elas proporcionam um salto para o pensamento mágico. Basta a palavra para que se perca o sentido de mal e bem.
 
Na noite escura do Brasil pune-se.
 
Marcio Sotelo Felippe é pós-graduado em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Procurador do Estado, exerceu o cargo de Procurador-Geral do Estado de 1995 a 2000. Membro da Comissão da Verdade da OAB Federal.
 
http://www.jornalggn.com.br/noticia/o-supremo-e-a-noite-escura-do-brasil-por-marcio-sotello

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