Entreouvido na Vila Vudu, ao final da leitura desse artigo:“Nooooossa! O cara é comunista e novaiorquino... E nem o aiatolá-lá diria melhor! Só falta, agora, então, o pessoal-lá encher a Praça Tahrir-Únion-lá-deles, e não arredar pé! Inch’Allah!”
Aqui estamos hoje, ante os portões de um dos nossos templos das finanças. É templo no qual se cultuam o lucro e a ganância, onde o valor de cada um se determina pela habilidade para acumular dinheiro e poder à custa dos outros, onde se reescrevem, manipulam e desrespeitam-se as leis, onde o progresso humano é definido como um moinho sem fim de consumo, onde o crime e a fraude são ferramentas usuais dos negócios.
As duas forças mais destrutivas que há na natureza humana – a ganância e a cobiça – movem os financistas, os banqueiros, os mandarins corporativos e os líderes dos dois principais partidos políticos dos EUA, os quais, ambos, se beneficiam dos lucros que obtêm desse mesmo sistema. Os dois partidos se autocolocam no centro da criação. Os dois partidos desdenham o clamor que sobe dos que estão abaixo, humilhados e calados. Nos roubaram nossos direitos, nossa capacidade e esterilizaram nossa capacidade de resistir. Querem nos converter em prisioneiros em nossa própria terra. Veem os seres humanos e o mundo natural como commodities, como bens a serem explorados até a exaustão ou o colapso. O sofrimento humano, as guerras, a mudança no clima, a miséria, tudo isso é o preço que estamos pagando para preservar os lucros das finanças planetárias. Nada é sagrado. O Deus do Lucro é o Deus da Morte.
Os fariseus da alta finança, que nos veem aqui, espiando de seus cubículos e cantos de corredores fingem virtude. O único sentido da vida, para eles, é o benefício próprio. O sofrimento dos pobres não os preocupa. As seis milhões de famílias norte-americanas lançadas ao relento, arrancadas de casa, não os preocupa. As dezenas de milhões de aposentados cujas economias para a velhice foram varridas do mundo por causa da fraude e da desonestidade em Wall Street, não os preocupa. O fracasso da contenção das emissões de carbono não os preocupa. Nenhuma justiça lhes tira o sono. A verdade não os preocupa. Crianças com fome não os preocupam.
Raskolnikof, personagem de Dostoyevsky em “Crime e Castigo” entendia que o mal radical que vive nos anseios humanos não seria vulgar, mas superior, extraordinário, a ambição que arrasta homens e mulheres a servir a sistemas de autoglorificação e à mais nua ganância. Raskolnikov no romance acredita – como os que vivem nesse templo das finanças – que a humanidade dividir-se-ia em dois grupos. No primeiro, gente comum. E gente comum seria submissa e covarde. Pouco faria, a gente comum, além de reproduzir-se e gerar mais gente comum, condenada a trabalhar, envelhecer e morrer. E Raskolnikov despreza essa gente, que vê como formas inferiores da humanidade.
No segundo grupo, para Raskolnikov, estariam os seres extraordinários. Para ele, seriam os Napoleões do mundo, os que rompem leis e costumes, os que rasgam as convenções e as tradições e fazem avançar o mundo, o qual, depois deles, seria melhor, mais glorioso. Raskolnikov diz que, embora vivamos nesse mundo, podemos nos libertar das consequências de viver entre gente vulgar, consequências que nem sempre nos favorecerão. Os Raskolnikovs do mundo investem a mais absoluta, total, absoluta fé no intelecto. Veem com o mais absoluto desdém os atributos da compaixão, da empatia, da justiça, do amor à verdade. E essa visão ensandecida do que sejam os homens e as mulheres leva Raskolnikov a matar uma velha usurária e roubar-lhe seu dinheiro.
Os sacerdotes desses templos corporativos, em nome do lucro, matam com crueldade muito maior que Raskolnikov. As corporações mataram 50 mil pessoas, ano passado, porque não podiam pagar para ter assistência médica adequada.
Mataram centenas de milhares de iraquianos, afegãos, palestinos e paquistaneses, e viram, entusiasmados, multiplicar-se por quatro o valor das ações de empresas que fabricam e vendem armas.
Fizeram do câncer epidemia, nos campos de carvão de West Virginia, onde as famílias respiram ar poluído, bebem água envenenada e assistem à destruição das Montanhas Apalache, convertidas em deserto pelas empresas de exploração de carvão, que ganham bilhões.
E depois de saquearem o Tesouro dos EUA, as mesmas corporações exigem, em nome da contenção de gastos, que o país destrua os programas de comida para crianças, de calefação e assistência médica para os idosos e doentes, e que se ponha fim à educação pública nos EUA, ainda excelente. Exigem que toleremos que convertam os EUA em nação de desnutridos, que deixemos milhões sem emprego, que condenemos dezenas de milhões de norte-americanos à miséria e abandonemos nossos doentes mentais ao sofrimento, à degradação e à morte. Todos esses, nos EUA, gente comum, foram condenados pelos sacerdotes do lucro e da ganância, como se fossem refugo. Assim exige o deus Mercado.
Quando Dante entra na “cidade dos danados”, último degrau antes de entrar no Inferno, ouve os gemidos e gritos dos que “viveram sem jamais ter merecido nem louvor, nem censura infamadora”[1], os rejeitados pelo Paraíso e pelo Inferno, que dedicaram a vida exclusivamente a si mesmos, a procurar a felicidade só para eles mesmos. São os “normais”, talvez “boas pessoas”, os que jamais fizeram outra coisa além de procurar o prazer e a própria segurança, muitas vezes sem perturbar os demais, mas orientados só para eles mesmos. Gente que jamais defendeu causa alguma, que jamais arriscou coisa alguma, que ‘seguiu vivendo a vida’. Gente que jamais pensou sobre a própria vida, jamais sentiu a ânsia de pensar sobre o mundo à volta, que não olhou e não viu o mundo à volta. A esses, Dante reserva o castigo eterno de jamais sair de onde está, em dor perene, nem no inferno nem no paraíso, nem cá nem lá.
Os que vivem à caça dos arco-íris de purpurina da sociedade de consumo, que compram sem questionar a pervertida ideologia do consumo, são, como ensina Dante, moralmente covardes. São doutrinados pelos sistemas corporativos de informação e permanecem passivos, enquanto os que fazem leis, os que aplicam as leis e os que fazem tudo isso funcionar – o legislativo, o judiciário e o executivo dos governos dos EUA – nos roubam toda a capacidade para resistir. Democratas ou Republicanos. Liberais ou conservadores. Nada faz diferença alguma, nesse lado do mundo.
Barack Obama serve aos interesses da finança e das corporações com a mesma dedicação e assiduidade com que George W. Bush serviu àqueles mesmos patrões. E investir nossa energia e nossa fé num desses partidos políticos, ou esperar seja o que for das instituições que há nos EUA, como se fossem instrumentos de reforma, é nos deixar iludir pelas sombras dos píxels das telas de televisão, que vemos, reproduzidas, como se estivéssemos na caverna de Platão.
Temos de enfrentar o canto de sereia da cultura do consumo e reencontrar, e repor no centro das nossas vidas os valores da compaixão e da justiça. Para isso é preciso coragem, não só coragem física, mas também coragem moral, para conseguir ouvir o que nos diga nossa consciência.
Se estamos aqui para salvar os EUA, o planeta, nossa casa e nossa vida, temos de aprender a não exaltar valores de individualismo e temos de aprender a ver a vida do nosso vizinho, do nosso próximo. O autossacrifício vence a doença da ideologia corporativa. O autossacrifício põe abaixo os ídolos da ganância e da cobiça. O autossacrifício exige que nos levantemos contra o abuso, as guerras, a injustiça imposta a nós pelos mandarins do poder corporativo. Há profunda verdade no alerta bíblico: “Quem se agarra à própria vida a perderá” (João 12:25).
Quem diz “vida” não diz “minha vida e só”. Nunca haverá justiça no mundo, se nosso vizinho sofrer injustiça. E ninguém terá de volta a liberdade, até que nos disponhamos a sacrificar nosso conforto e abracemos a plena rebelião.
Obama desertou e nos abandonou. O Congresso desertou e nos abandonou. A Suprema Corte desertou e nos abandonou. A imprensa desertou e nos abandonou. A universidade desertou e nos abandonou. A democracia eleitoral desertou e nos abandonou. Nenhuma estrutura, nenhuma instituição da sociedade dos EUA sobreviveu a salvo da contaminação pelas grandes corporações das finanças. O que significa que, agora, depende só de nós. Desobediência civil, que trará dias difíceis e sofrimento, que trará dias muito difíceis, mas esse é o espírito do autossacrifício pelo bem de todos. Desobediência civil é a única via que nos restou.
Os banqueiros e gerentes financeiros, as elites corporativas e governamentais, são a versão moderna dos judeus bíblicos que se prostraram ante o bezerro de ouro. A faísca de qualquer dinheiro os hipnotiza, os arrasta cada vez mais depressa rumo à destruição. E eles querem nos prender ao altar deles. Querem que nos ajoelhemos ante os altares deles. Enquanto nos deixarmos inspirar pela ganância, pela cobiça, continuaremos como até aqui, cúmplices silenciosos dos gananciosos, dos que cobiçam só para eles a riqueza que é de todos.
Mas se nos levantarmos contra a religião do lucro e do capital, se exigirmos que a sociedade e os governos atendam às carências e necessidades dos cidadãos e do mundo que nos cerca, muito mais do que às carências e necessidades do Deus Mercado, se aprendermos a falar em tom renovadamente simples, se aprendermos a ser simples e a desejar vida simples, se amarmos o nosso próximo como amamos nós mesmos, romperemos as cadeias que hoje nos prendem e faremos visível, outra vez, a esperança.