terça-feira, 19 de abril de 2011
Mas... E ninguém nunca percebeu nada?!
Paraísos fiscais e desregulação
David Runciman
David Runciman, London Review of Books, vol. 33, n. 8, abril-2011, pp. 20-23Didn’t they notice?Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Resenha de:
Entreouvido na Vila Vudu, hoje:
“Impressionante, mesmo, é que nem esse brilhantíssimo professor de ciência e teoria política da Universidade de Cambridge (a inglesa!) consiga ver o papel da imprensa-empresa em todos os processos políticos que tenham a ver com eleitores e votos. Se ele, que é ele e é intelectual brilhantíssimo e é até visconde, não consegue ou não sabe ou não quer ver o que a imprensa-empresa faz na direção de desinformar os eleitores nas democracias contemporâneas... como conseguiremos nós, cidadãos comuns, desesperadamente ocupados em ganhar a vida todos os dias e em não nos deixar matar pelos EUA-OTAN por exemplo,porque aí se fala da Líbia –, votar melhor?! Acorde, ô visconde! Tome é tento! A culpa é mais sua, do que nossa! Vá se catá, visconde!Mas, sim, sim, o ensaio do visconde é SEN-SA-C-I-O-NAL, pelo menos, no que diz. O resto, só a luta ensina. Leiam aí. Pau na máquina”._____________________________________________
Como se compõem e integram o personagem de Saif al-Islam Gaddafi, figura emblemática de nosso tempo – com doutorado na London School of Economics (“O Papel da Sociedade Civil na Democratização das Instituições de Governança Global”), suas fundações de caridade, sua extensa relação de propriedades, o estilo play-boy de levar a vida, a coroada e brilhantíssima coleção de amigos (Peter Mandelson, Nat Rothschild, Príncipe Andrew), seu acesso livre ao fundo soberano da Líbia – e sua recentemente enunciada disposição para eliminar os inimigos do regime de seu pai, “um tiro em cada um”? É hipócrita, provavelmente, mas isso não explica grande coisa. Também, para alguns, seria vítima: seu infeliz orientador acadêmico e mentor na LSE, David Held, descreveu em termos de “coisa shakespeareana”, o cataclismo cerebral pelo qual o reformador neoliberal Saif teria passado para sobreviver, depois que o povo de seu pai revoltou-se em armas. Mas isso também não nos leva a qualquer discussão mais consistente.
É provável que seja bandido-gentleman, que muitos observadores online identificaram ao bandido de fala suave e empresário elegante “Stringer” Bell, personagem do seriado The Wire [1] . Mas as palavras que mais bem capturam Saif Gaddafi aparecem no impressionante comentário que Nicholas Shaxson construiu em seu livro, do papel que os paraísos fiscais cumprem hoje nas finanças internacionais.
Shaxson não discute os próprios Gaddafis, mas pinta um quadro mundial no qual o jovem Gaddafi, até bem recentemente, vivia perfeitamente à vontade. É o mundo do ‘offshore’ [ing. literalmente “ao largo”, “em mar alto”; por extensão, designa os chamados paraísos fiscais, muitos deles localizados em ilhas; mas a expressão aparece também em “petróleo offshore”, para designar petróleo submarino; e em “pesca offshore”, pesca de alto mar (NTs)]. No que aqui interessa, é o mundo dos paraísos fiscais, da deslocalização do dinheiro para fora de fronteiras territoriais continentais das grandes potências. Shaxson não se limita ao significado técnico do termo, de designação de jurisdições privadas que existem para permitir que os muito ricos não paguem impostos. Usa a palavra ‘deslocalizado’, ‘ao largo’, offshore, tanto para pessoas como para lugares, e tanto para qualificar um meio de vida, como para qualificar um estado mental. Assim definido, o adjetivo “deslocalizado” passa a ser palavra utilíssima. Saif Gaddafi é sujeito global deslocalizado, dos que vivem no mundo deslocalizado do dinheiro offshore.
A essência seja de pessoas seja de empresas globais no mundo global deslocalizado, do offshore, é parecerem todas respeitabilíssimas, ao mesmo tempo em que existem para permitir que quantidades muito grandes de dinheiro circulem com a mínima marola possível. Fugir de pagar impostos deixou de ser atividade clandestina. Os paraísos fiscais existem precisamente para que os muito ricos possam canalizar o próprio dinheiro de modo que escape das autoridades. Mas o dinheiro tem de continuar existindo, tem de manter-se acessível. E tem de ser líquido. Por isso tudo, os muito ricos preferem os paraísos fiscais onde podem conduzir os próprios negócios de modo relativamente exposto. Claro: as mais bem sucedidas instituições e empresas deslocalizadas offshore são as que fazem e respondem menos perguntas e, correspondentemente, mentem menos.
A expressão memorável, definitiva, que Shaxson cunhou para tudo isso é “o teatro da probidade”. Os suíços sempre foram mestres nessa arte, com suas maneiras formais e papelada mínima, gerida com perfeição. Mas outro dos campeões mundiais dessa arte são os britânicos. O livro de Shaxson explica como e por que Londres tornou-se o centro do que o autor chama de “teia de aranha de atividades deslocalizadas offshore” (e que, no processo, passou a oferecer lar confortável para os Saif Gaddafis do mundo). Porque a deslocalização offshore é movimento típico de impérios em declínio. Faz perfeito sentido e adapta-se muito bem a país que tem aparência de opulência e grandeza e de viver segundo padrões muito altos, mas que, por baixo dos panos, vive desesperadamente precisado de arranjar sempre e sempre mais e mais dinheiro.
Como Shaxson demonstra, muitos dos mais bem sucedidos paraísos fiscais do planeta são ex-entrepostos comerciais ou entrepostos comerciais ainda ativos, do império britânico. Entre esses, Hong Kong, as ilhas Channel e territórios britânicos remanescentes do ultramar, como as ilhas Cayman. Esses locais oferecem regimes muito limitados ou inexistentes de impostos, regulação nenhuma, política local fraca, mas todas as manifestações cenográficas de respeitabilidade ética e de transparência democrática.
Os depositantes podem, sem qualquer comichão “ética”, depositar o próprio dinheiro em locais que sentem como “jurisdição britânica”, mesmo que, de fato, não sejam submetidos a nenhuma lei ou regulação britânica (e a nenhuma lei de impostos britânica). As ilhas Cayman, ou Jersey, fazem uso pleno de suas conexões britânicas, para assegurar aos muito ricos que seu dinheiro esteja em total segurança (o hino nacional de Cayman ainda é “God Save the Queen”), mas se alguém reclama às autoridades britânicas, de que aquelas ilhas estão sendo usadas por criminosos e ditadores para lavar dinheiro, o reclamante é informado de que são governos democráticos independentes, sobre os quais a Grã-Bretanha não tem qualquer poder.
É o papel que Hong Kong desempenhou antes de ser devolvida à China em 1997: podia ser apresentada ao mundo exterior como local onde reinavam valores britânicos, mas sem a funesta tendência dos britânicos de aumentar impostos e impor padrões regulatórios às finanças, por ação de pressões políticas. Desempenha hoje o mesmo papel, agora para a China. Depois de 1997, a China preservou Hong Kong como uma ‘zona administrativa especial’ autônoma do continente em todos os campos, exceto no que tenha a ver com relações internacionais e defesa.
Nas palavras de Shaxson, “As semelhanças com o laço ambíguo que liga a Grã-Bretanha e as ilhas Jersey, ou Grã-Bretanha-Cayman, não são coincidência. As elites chinesas querem ter seu próprio centro deslocalizado, offshore, com controle político à parte e separação jurídica”. O que sugere que os centros de finanças deslocalizados, offshore, também prestam bom serviço a impérios em ascensão.
Outro traço comum à maioria desses postos é que são ilhas. Ilhas são ótimas para receber paraísos fiscais, e não só porque estão topograficamente separadas, mas porque estão distanciadas das pressões políticas sempre muito ativas no centro. Além disso, constituem comunidades muito coesas, nas quais todos sabem o que acontece, mas ninguém vê qualquer vantagem em qualquer ‘revelação’ do que não é segredo para ninguém. E, além do mais, sobre todos pesa a ameaça do ostracismo. São como “aquários”, nas palavras de Shaxson, o que serve muito bem à forma mental do mundo do dinheiro deslocalizado, porque aquários são convincentemente transparentes. Vê-se através do aquário e não há “ponto cego”. Portanto, quanto mais você examina o aquário, mais você se convence da transparência dele, até convencer-se de que, ali, nada se poderia esconder. Jersey é caso exemplar: local agradável, de pessoas gentis, com forte senso de responsabilidade civil e cheio de oportunidades para qualquer empreendedor, inclusive para o Estado empreendedor, com eleições para todos os cargos públicos (senadores, deputados, xerifes e policiais de quarteirão), mas com partidos políticos muito fracos, com eleições gerais quase só formais e sem que jamais, ali, tenha havido alguma alternância nos postos eletivos. “Os incomodados mudam-se daqui” é a lei jamais desmentida da política transparente das ilhas Jersey.
Evidentemente a diferença de opinião não foi completamente abolida, como seria sob ditadura (e motivo pelo qual as ditaduras dão péssimos paraísos fiscais: sob ditadura, ninguém jamais sabe quando a coisa toda voará pelos ares). Ali, apenas se dá tempo ao tempo, e todas as diferenças de opinião esvaziam-se. Acontece exatamente o mesmo nas Ilhas Cayman, com população mínima (cerca de 55 mil habitantes), deputados e senadores eleitos e governador-geral nomeado por Londres, que toma todas as decisões, mas, sempre, depois de ouvir a população local, democraticamente. Como disse um ex-governador-geral de Cayman, “acho que vivemos aqui no mundo da semântica. Quantos mais caymanenses sejam nomeados para postos de poder, melhor. Os nativos servem como faróis condutores, esclarecendo os pontos obscuros, sempre que há divergência de opinião no plano político”.
Essa é a teia, mas onde está a aranha? No coração do ensaio de Shaxson e da história que expõe, está sempre a City de Londres, ela própria uma espécie de ilha dentro do estado britânico. Outra vez, o crescimento da City como local preferido dos estrangeiros que tenham dinheiro para guardar, não importa quem sejam ou de onde venham, está associado ao declínio o império.
Depois da 2ª Guerra Mundial, a libra esterlina ainda financiava grande parte do comércio global, mas a economia britânica já não tinha como defender o valor da pound contra o dólar. Depois de Suez, que provocou uma corrida para a pound, o governo tentou impor limitações aos empréstimos externos feitos por bancos comerciais londrinos. A resposta dos bancos, com a conivência do Bank of England, foi transferir seus empréstimos internacionais para o dólar. O resultado foi que assim se criou o chamado “mercado do eurodólar” – que sempre foi um muito efetivo paraíso fiscal, deslocalizado, offshore. Porque as trocas comerciais estavam acontecendo em dólares, os britânicos entenderam que não era preciso impor regulação alguma; e, porque estava acontecendo em Londres, os americanos não tinham meios para taxar aquelas trocas ou regulá-las, fosse como fosse.
Entre os primeiros a perceber as vantagens do novo sistema estavam os soviéticos, que precisavam de lugar seguro para guardar seus dólares fora dos EUA, de modo que os americanos não pudessem congelá-los, no caso de as relações entre os dois países se deteriorarem. Pouco depois, os próprios americanos acompanharam o movimento de “deslocalização”, offshore, dos soviéticos rumo a Londres; não todos os cidadãos norte-americanos, claro: só os bancos norte-americanos e os indivíduos muito ricos – que viram o mercado londrino como alguém com quem podiam negociar, perfeitamente protegidos das garras das autoridades tributárias dos EUA. O dinheiro começou a chegar a Londres em pilhas e pilhas e pilhas.
O Banco de Londres vivia feliz: Londres era novamente o centro nervoso (e rico) da finança internacional. O governo dos EUA, como se pode adivinhar, não vivia igualmente muito feliz: temiam uma crise da balança de pagamentos. Mas quando, em 1963, o presidente Kennedy tentou conter os fluxos de dinheiro para fora do país e taxou o lucro de seguros estrangeiros, num esforço para conter a exportação de dólares para mercados exteriores mais lucrativos, obteve resultado exatamente oposto ao que almejava e produziu o que Shaxson chama de “estouro da boiada rumo ao mercado londrino offshore, deslocalizado, livre de impostos e regulações de qualquer tipo”. Os estrategistas da economia dos EUA estavam, pois, ante um dilema. Podiam tentar enfrentar a ameaça do mercado deslocalizado, ou com maiores juros domésticos, ou com controles ainda mais apertados contra a saída de dinheiro e regime regulatório mais rígido que exigisse dos bancos dos EUA que prestassem informações ao fisco nos EUA sobre suas atividades no mercado offshore londrino. E os EUA podiam ainda copiar Londres e criar seu próprio offshore doméstico, mais perto de casa: em outras palavras, se você não pode derrotá-los, alie-se a eles.
A segunda via era a via de menor resistência – dentre outras coisas, seria meio útil para fortalecer a posição do dólar como moeda global de reserva; e, ao longo do tempo, os EUA escolheram essa via. Lentamente, a partir do final dos anos 1960s, ao longo dos anos 1970s e, depois, muito mais rapidamente nos anos 1980s e 1990s, os EUA desregularam todos os controles financeiros e deixaram que o dinheiro se movimentasse daqui para lá, com cada vez menos perguntas, controles e limitações, na esperança de que, no fluxo, mais dinheiro acabaria deixado pelo caminho, grudado nos dutos.
Nos EUA, iniciado o processo, criou-se uma onda de competição entre os estados dos EUA (“guerra fiscal”, como se chama no Brasil), com cada estado da federação tentando oferecer o ambiente menos regulado, mais hospitaleiro, menos intrusivo, para atrair empresas para seus respectivos territórios. O estado líder nesse movimento foi o pequeno Delaware, que sempre tentara compensar o território reduzido, com abertura para todos os negócios. Desde os anos 1980s, muitas e muitas corporações mudaram-se para o estado de Delaware, em busca dos benefícios de laissez-faire extremo com que Delaware tratava os direitos de acionistas e empregados, contra os interesses das gerências corporativas.
Se você mudasse seu negócio para o Delaware (o que custava, apenas, o trabalho de mobiliar um escritório-sede e preencher alguns formulários), praticamente ninguém ou quase ninguém conseguiria provar coisa alguma contra você, porque as cortes de justiça do Delaware viviam sob a firme crença de que o que você fizesse era problema seu, não delas. Outra vez, os demais estados enfrentaram um dilema: podiam tentar isolar o Delaware, apertando cada vez mais os seus próprios padrões regulatórios, ou abriam uma disputa pela partilha do botim. Vários estados dos EUA decidiram competir e buscar a sua parte naquele latifúndio de desregulação. O que começara deslocalizado para longe, passou a ser deslocalizado aqui mesmo. O offshore atracou.
Quando os funcionários de Delaware viajaram pelo mundo, no final de 1980s para divulgar seus serviços (e esperando, dentre outras coisas, atrair para seu paraísooffshore estadual deslocalizado e atracado todo o dinheiro quentíssimo que se esperava que escapasse de Hong Kong no processo da devolução à China), divulgavam o slogan “Em Delaware, seu dinheiro está protegido contra todas as políticas”.
Shaxson define um paraíso fiscal sem taxas e impostos, como “local que procura atrair negócios oferecendo estabilidade política, para ajudar pessoas e empresas a escapar de regras, regulações e jurisdições de que o resto do mundo vive cheio”. E é aí que está o xis.
Que fim deram à política? Por que esses movimentos do grande dinheiro não geraram instabilidade política, ou, no mínimo, alguma discussão política? No caso do Delaware, como em outras comunidades-aquário, o tamanho provavelmente explica alguma coisa (por longo tempo, toda a política estadual do Delaware foi modelada pela ação da família Du Pont, cujas vastas operações, na indústria química, dominavam a economia local). Mas no caso, digamos, de Washington, onde a mudança para uma forma de pensar de deslocalização ampla, de desatracamento, de offshore amplo geral e irrestrito do grande dinheiro deveria, no mínimo, ter gerado discussão social e, no mínimo, alguma oposição política empenhada?
O que aconteceu aos representantes eleitos de todas as multidões de norte-americanos que não têm milhões e milhões a defender, que não têm dólares a deslocalizar nem que quisessem deslocalizar-se um pouco, e que tem, isso sim, interesse amplo geral e irrestrito em criar e defender sistema justo, amplo, progressista e progressivo de impostos, e que seja eficiente em termos de arrecadação? Não viram o que estava acontecendo?! Mas... mas... ninguém nunca percebeu nada?!
Essa é a questão que ocupa Jacob Hacker e Paul Pierson, em seu novo livro “A Política do Vencedor Leva Tudo”. Não consomem muito tempo explicando os mistérios do offshore e da deslocalização do grande dinheiro, mas o argumento que constroem é impressionantemente próximo do argumento exposto por Shaxson. Segundo Sahxson, um dos modos pelos quais se pode identificar um ambiente favorável a dinheiro deslocalizado, e sem conflito político, é verificar se, no local considerado, a política local foi capturada pelos serviços financeiros. Nesse sentido, Washington é perfeito para acolher paraísos fiscais, dinheiro grosso deslocalizado: a política, em Washington foi completa e absolutamente capturada pelos interesses de um grupo muito pequeno de indivíduos extremamente ricos – a maioria dos quais são o próprio mundo da grande finança.
Para Hacker e Pierson isso, mais que qualquer outro fator, explica por que os muito ricos ficaram tão mais ricos ao longo dos últimos 30 anos. Quando dizem “ricos”, não dizem “ricos em geral”: falam dos super-ricos. Os verdadeiros beneficiários da explosão dos ganhos dos mais ricos desde os anos 1970s não foram os 1% mais ricos, mas, sim, os 0,1% mais ricos da população total. Desde 1974, os 0,1% mais ricos dos EUA viram sua renda passar de 2,7 para 12,3% do total da renda nacional, o que parece ser o caso mais espantoso de desigualdade na distribuição nacional, entre os que têm e os que não têm. Quem são essa gente?
Como Hacker e Pierson observam, não são necessariamente superestrelas e celebridades do mundo da arte, entretenimento ou esportes. Nem são herdeiros ricos que vivem de fortuna acumulada nas famílias, como se via acontecer no início do século passado.
Hoje, parcela significativa dos super-ricos são executivos e gerentes, muitos deles, executivos e gerentes de empresas financeiras.
Hacker e Pierson creem que a política deva ser culpada por isso. Aconteceu porque os políticos e os funcionários públicos deixaram que acontecesse; não aconteceu por causa de mercados internacionais, nem por causa da globalização ou por diferenças nas oportunidades educacionais ou de vida em geral.
O que aconteceu foi construído, por pressão de lobbystas e de outras organizações para criar ambiente amigável para os super-ricos, que satisfaça suas necessidades. E se trata, de fato, de uma espécie muito particular de política, e de uma espécie muito específica de escolha. Não é resultado de conspiração, dado que aconteceu aí, à vista de todos. Mas não é movimento político do tipo de política que se vê nas ruas, com comícios, discursos e triunfos eleitorais,
A política que deixou que acontecesse o que aconteceu com o grande dinheiro planetário deslocalizado depende em grande parte do que Hacker e Pierson chamam de “um movimento de deriva”: “fracassos sistemáticos, prolongados de sucessivos governos responderam à deriva de um movimento econômico. Os políticos e decisores, com grande frequência, foram persuadidos a não resistir, a nada fazer, a deixar que as coisas se acomodassem, que andassem para onde quisessem andar, que o dinheiro corresse pelo mundo, para cima e para baixo, à vontade, até que o dinheiro se acumulou na ponta mais alta da pirâmide.
Essa ideia faz eco ao que Shaxson diz sobre como o sistema de deslocalização do grande dinheiro foi deixado livre, leve, solto, sem qualquer controle, ao longo dos últimos 40 anos. E nem se fala de conspiração, porque ninguém precisou conspirar. De fato, o que aconteceu aconteceu porque “ninguém estava prestando atenção ao grande dinheiro”.
Uma das reclamações de Hacker e Pierson sobre o modo como nós em geral vemos a política é que não vemos o que realmente acontece, porque só vemos o showeleitoral e as disputas partidárias. É o teatro da política eleitoral, que se desenrola ao lado do teatro da probidade.
Muito frequentemente, dizem eles, reduzimos a política ao plano do esporte: “Isso, sem dúvida, é o que explica que a política eleitoral seja tão atraente, como tema, para a mídia: é excitante e é simples. Os torcedores memorizam as jogadas características de seus atletas preferidos ou se tornam especialistas em grandes pelejas passadas. Mas todos sempre podem gozar o apaixonante espetáculo oferecido por duas equipes altamente motivadas disputando a palma.”
Aqui, tenho de fazer um mea culpa. Já várias vezes me surpreendi pensando se me interesso por política pelo mesmo motivo que me interesso por esportes, e várias vezes senti-me vagamente culpado. Desconfio que a culpa se explique porque, de fato, não sei, a fundo, o que acontece nem num caso nem no outro. Eleições são eventos fascinantes, aqueles dias são vividos de modo tão radical, que com certeza ali nada se vê do que seja a verdadeira política: os grupos de pressão – dinheiro, lobbyes, ameaças – operam nesses dias para arrancar o melhor dos candidatos, sejam quem for, para influenciar a modelagem das políticas futuras. Eleições são também falsos pontos de virada histórica.
Seria fácil aceitar que, se os ricos têm vencido nas últimas décadas, o processo começou com a eleição do grande agente pró-big business e antigoverno que foi Ronald Reagan em 1980 (e, concomitantemente, de Margaret Thatcher na Grã-Bretanha em 1979). Mas Hacker e Pierson dizem que o verdadeiro ponto de virada aconteceu antes, em 1978, ainda durante a presidência de Jimmy Carter.
Nesse ano, os lobbyistas e outros grupos organizados, que trabalhavam para implantar na opinião pública os discursos pró-desregulação e execravam o “peso dos impostos e regras” sobre os mais ricos e os interesses das grandes corporações, descobriram que ninguém labutava na resistência contra seus planos.
Apesar de o Partido Democrata controlar a Casa Branca e as duas Casas do Congresso, 1978 assistiu à derrota de todas as tentativas para aprovar reformas progressistas no campo tributário e para fortalecer a posição legal dos sindicatos. Em vez disso, aprovaram-se leis para reduzir a carga tributária das empresas e aumentar a carga tributária dos empregados (leis que autorizam desconto de impostos na fonte, que são leis conservadoras). Tudo isso aconteceu, porque os políticos seguiram a via de menor resistência – como sempre fazem os políticos eleitos – e a resistência mais bem organizada e mais bem abastecida de dinheiro veio dos representantes do big business, não das forças trabalhistas organizadas.
O que aconteceu nos EUA nos anos 1980s foi, portanto uma extensão dos anos Carter, não alguma virada em relação a eles. O processo de desregulação e redistribuição rumo à concentração do dinheiro no pico da pirâmide foi acelerado nos anos Reagan, que era amplamente simpático a essa concentração. Mas não aconteceu por Reagan ser simpático ao processo, mas porque suas simpatias encontraram ambiente político favorável para correr com rédea solta, ambiente no qual a oposição manteve-se muda e a esperada coalizão de interesses populares jamais se materializou no campo contrário. Afinal de contas, como Hacker e Pierson observam, Richard Nixon, do qual se poderia esperar que partilhasse várias das simpatias de Reagan, uma década antes, havia labutado na direção oposta e acolhera o marco legal do estado de bem-estar e mantivera um sistema tributário amplamente progressista. (Processo semelhante acontecera na Grã-Bretanha, com Edward Heath.)
Nixon agiu como agiu, não por suas simpatias estarem num lado ou noutro, mas porque não teve escolha: a pressão organizada para impedir que se aprovassem leis de concentração da riqueza ali estava, atenta, e muito mais forte que a pressão a favor dos interesses dos muito ricos. Só durante os anos Carter é que essa pressão enfraqueceu, e enfraqueceu muito mais do que se poderia esperar que enfraquecesse. Os políticos da revolução Reagan/Tatcher fizeram o que fizeram porque eram ideólogos comprometidos, determinados a não ceder um palmo de seus princípios. Fizeram o que fizeram, porque perceberam que não seriam presos nem seriam eleitoralmente derrotados.
Mas... e que fim levou a resistência contra os interesses da elite de super-ricos? Esse é o verdadeiro enigma, a cuja elucidação Hacker e Pierson dedicam-se empenhadamente, porque levam a democracia a sério – apesar de serem doentiamente obcecados na defesa de eleições.
Democracia implica favorecer os interesses da maioria, em detrimento dos interesses da minoria. Nas palavras de Hacker e Pierson, “A democracia talvez não preste em muitos pontos. Mas se supõe que seja eficaz para solucionar problemas que afetam maiorias amplas.” Será que a maioria realmente não se incomodou com estar perdendo tanto, a favor dos interesses de uma pequena elite de super-ricos?
No caso dos EUA, a ideia geral é que os eleitores permitiram que tudo acontecesse porque vivem preocupados com outras coisas: religião, cultura, aborto, armas etc. Quem pense assim entende que os norte-americanos comuns assinaram uma espécie de pacto faustiano com o Partido Republicano, pelo qual os ricos ficariam com o dinheiro e os pobres receberiam apoio e respeito aos valores culturais que lhes eram caros. Hacker e Pierson rejeitam essa ideia, mas não só porque não acreditam que o processo que analisam dependa de haver um Republicano na Casa Branca.
Os autores veem fortes evidências de que o público eleitor norte-americano continua a desejar um sistema tributário mais justo e entende que não é trabalho dos políticos proteger os interesses dos mais pobres contra os interesses da alta finança. O problema parece ser que os eleitores simplesmente não sabem o que os políticos fazem. O eleitor não é adequadamente informado sobre como as leis foram sendo consistentemente alteradas na direção que mais prejudicava o maior número de pessoas. “Os norte-americanos também são igualitaristas no que tenha a ver com o que entendem como mundo ideal” – escrevem Hacker e Pierson. “Mas têm opiniões muito menos claras, menos acuradas, quando se trata do mundo real”.
Por que ninguém estava prestando atenção ao que estava acontecendo? A culpa talvez seja da Internet, que torna cada vez mais difícil que alguém pense sobre alguma coisa, por tempo suficiente. Mas chama a atenção, de fato, que o argumento de Hacker e Pierson implica retorno a uma crítica muito antiga da democracia, uma crítica que floresceu nos anos 1920s e 1930s, mas foi suplantada, no período do pós-guerra, pela convicção de que os eleitores seriam competentes para manifestar comportamento racional em massa.
Essa crítica tradicional não vê qualquer fragilidade na democracia, no sentido de supor que os eleitores desejem coisas erradas, ou que não saibam o que querem. O eleitor sabe o que quer, mas não sabe como consegui-lo. As pessoas não são idiotas, mas, no que tenha a ver com política e votos, são ignorantes, preguiçosas, deixam-se satisfazer rapidamente por qualquer resposta de ocasião, construída para acalmá-las e calá-las. Hacker e Pierson reconhecem que hoje já se vê como ‘politicamente incorreto’ dizer tais coisas, mesmo nos discursos políticos sérios. Mas ainda é plena verdade.
“A maioria dos cidadãos dá pouca atenção à política, o que se vê pelas ruas. Generosidade política, hoje, seria, precisamente, chamar a atenção dos eleitores para seus vícios.” A solução tradicional que se encontrou para esse problema tem sido suprir a ignorância dos eleitores com opiniões de especialistas, que se apresentam como dispostos a reformar todo o sistema, na direção do melhor interesse dos eleitores. A dificuldade é que, quanto mais falam esses especialistas, menos os eleitores manifestam interesse em informar-se mais sobre o que se passa no mundo.
É onde Hacker e Pierson identificam o xis do problema da política democrática: para combater o que acontece fora do radar dos eleitores, é preciso que a luta continue a acontecer nos espaços que o eleitor vê. A esperança progressista é que, assim sendo, o leitor eventualmente acorde para as lutas e decida engajar-se nelas. Nas palavras de Hacker e Pierson: “Os reformadores políticos têm de aprender a discutir política pequena e para poucos, em milhões e milhões de fronts, a política de eixo longo e transmissão complexa.” O que exige muito tempo.
Mas tempo parece ser uma das coisas que os reformadores não têm. Como Shaxson aponta, em seu estudo de como nasceram os paraísos fiscais, uma das causas pelas quais a deriva andou na direção da desregulação é que a resistência política demorou demais para constituir-se como resistência. E aqui, outra vez, aparece mais uma das críticas tradicionais que se fez à democracia: enquanto os democratas bons e decentes organizam-se para fazer do mundo lugar mais acolhedor, o mundo a ser transformado já se transformou.
Em ambiente de altas finanças, cada vez mais rápido, é sempre mais fácil reunir uma coalizão de vontades a favor de cada vez menos regulações e regras, que reunir gente para trabalhar a favor de mais regulações ou leis mais apertadas. Assim também, é sempre mais fácil não aplicar leis que haja, do que fazê-las valer: não aplicar leis é trabalho instantâneo – basta fechar os olhos, exige o tempo de uma piscadela – mas aplicar leis é processo lento e laborioso.
Shaxson, como tantos de nós, parece ter construído a arapuca na qual se vê preso. Por um lado, entende que a chave para resistir ao poder do dinheiro deslocalizado, global, offshore, super concentrado no topo da pirâmide, é construir sistema mais transparente, baseado no que chama de “troca automática de informação, em plataformas multilaterais”. Mas, isso, é o mesmo que entregar o timão aos especialistas (que, cada dia mais, falam sozinhos, ou só entre eles).
Por outro lado, Shaxson quer governos nacionais mais ativos, dinâmicos, que respondam mais e melhor aos cidadãos. Mas, nesse caso, supervalorizam-se os governos nacionais e se enfraquece qualquer governança global, cuja coordenação é indispensável a qualquer sistema que se queira transparente. Se as políticas nacionais forem reforçadas, mais difícil será implantar qualquer coordenação no plano internacional. Essa é a arapuca-total em que se meteu a globalização.
Shaxson ilustra o problema, ao final de seu livro, quando lista propostas para mudar a cultura da grande finança deslocalizada global offshore. Um dos exemplos que oferece de como se pode fazer, vem dos EUA onde, em 2001, o Congresso afinal aprovou leis mais duras contra a lavagem de dinheiro e impediu a proliferação de bancos offshore que se ocultam sob delegados e acionistas cujos verdadeiros nomes ninguém conhece e que são os verdadeiros proprietários daqueles bancos. Mas, aí, é preciso considerar a data: todas essas leis foram incluídas no “pacote” do Patriot Act, e só foram aprovadas porque todos os deputados e senadores estavam paralisados pelo 11/9. Além do mais, ninguém, em sã consciência, dirá que daquelas leis resultou mundo mais bem integrado ou mais transparente, ou alguma revitalização da política nos EUA.
Shaxson recomenda também que os governos se dediquem mais a manter ‘em casa’ o dinheiro da grande finança. Uma das forças motrizes do mundo da grande finança deslocalizada global offshore, diz ele, são “as marés de dinheiro sujo do petróleo que escorrem para dentro do sistema offshore global, e distorcem, nesse processo, toda a economia global.” Solução radical para manter as riquezas minerais dos países longe das mãos dos poucos indivíduos hiper-ricos e nas mãos de cidadãos comuns, é redistribuir o dinheiro, internamente, diretamente para os cidadãos. Parece irrealista, mas já se faz assim em vários lugares do mundo, por exemplo, na Líbia e no Alaska. Mas Shaxson não deixa que sua análise avance até a revelação dos nomes dos políticos governantes que fazem isso: Muammar Gaddafi, na Líbia; e Sarah Palin, no Alasca.
Assim sendo, sim, políticos ágeis, socialmente sensíveis, democráticos ou não, podem fazer grande diferença; mas não se conclui daí que, de suas políticas, resultem melhor compreensão entre os povos, nem, sequer, alguma paz. Esses dois ensaios brilhantes que resenhamos aqui acertam, ao sugerir que a política seja parte da questão. Mas a política (e a democracia) continuam a ser, também, sempre, parte do problema.
Nota de tradução:[1] Sobre o seriado ver em: “Stringer” Bell (em inglês).
Mas... E ninguém nunca percebeu nada?!
Paraísos fiscais e desregulação
David Runciman
David Runciman, London Review of Books, vol. 33, n. 8, abril-2011, pp. 20-23Didn’t they notice?Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Resenha de:
Entreouvido na Vila Vudu, hoje:
“Impressionante, mesmo, é que nem esse brilhantíssimo professor de ciência e teoria política da Universidade de Cambridge (a inglesa!) consiga ver o papel da imprensa-empresa em todos os processos políticos que tenham a ver com eleitores e votos. Se ele, que é ele e é intelectual brilhantíssimo e é até visconde, não consegue ou não sabe ou não quer ver o que a imprensa-empresa faz na direção de desinformar os eleitores nas democracias contemporâneas... como conseguiremos nós, cidadãos comuns, desesperadamente ocupados em ganhar a vida todos os dias e em não nos deixar matar pelos EUA-OTAN por exemplo,porque aí se fala da Líbia –, votar melhor?! Acorde, ô visconde! Tome é tento! A culpa é mais sua, do que nossa! Vá se catá, visconde!Mas, sim, sim, o ensaio do visconde é SEN-SA-C-I-O-NAL, pelo menos, no que diz. O resto, só a luta ensina. Leiam aí. Pau na máquina”._____________________________________________
Como se compõem e integram o personagem de Saif al-Islam Gaddafi, figura emblemática de nosso tempo – com doutorado na London School of Economics (“O Papel da Sociedade Civil na Democratização das Instituições de Governança Global”), suas fundações de caridade, sua extensa relação de propriedades, o estilo play-boy de levar a vida, a coroada e brilhantíssima coleção de amigos (Peter Mandelson, Nat Rothschild, Príncipe Andrew), seu acesso livre ao fundo soberano da Líbia – e sua recentemente enunciada disposição para eliminar os inimigos do regime de seu pai, “um tiro em cada um”? É hipócrita, provavelmente, mas isso não explica grande coisa. Também, para alguns, seria vítima: seu infeliz orientador acadêmico e mentor na LSE, David Held, descreveu em termos de “coisa shakespeareana”, o cataclismo cerebral pelo qual o reformador neoliberal Saif teria passado para sobreviver, depois que o povo de seu pai revoltou-se em armas. Mas isso também não nos leva a qualquer discussão mais consistente.
É provável que seja bandido-gentleman, que muitos observadores online identificaram ao bandido de fala suave e empresário elegante “Stringer” Bell, personagem do seriado The Wire [1] . Mas as palavras que mais bem capturam Saif Gaddafi aparecem no impressionante comentário que Nicholas Shaxson construiu em seu livro, do papel que os paraísos fiscais cumprem hoje nas finanças internacionais.
Shaxson não discute os próprios Gaddafis, mas pinta um quadro mundial no qual o jovem Gaddafi, até bem recentemente, vivia perfeitamente à vontade. É o mundo do ‘offshore’ [ing. literalmente “ao largo”, “em mar alto”; por extensão, designa os chamados paraísos fiscais, muitos deles localizados em ilhas; mas a expressão aparece também em “petróleo offshore”, para designar petróleo submarino; e em “pesca offshore”, pesca de alto mar (NTs)]. No que aqui interessa, é o mundo dos paraísos fiscais, da deslocalização do dinheiro para fora de fronteiras territoriais continentais das grandes potências. Shaxson não se limita ao significado técnico do termo, de designação de jurisdições privadas que existem para permitir que os muito ricos não paguem impostos. Usa a palavra ‘deslocalizado’, ‘ao largo’, offshore, tanto para pessoas como para lugares, e tanto para qualificar um meio de vida, como para qualificar um estado mental. Assim definido, o adjetivo “deslocalizado” passa a ser palavra utilíssima. Saif Gaddafi é sujeito global deslocalizado, dos que vivem no mundo deslocalizado do dinheiro offshore.
A essência seja de pessoas seja de empresas globais no mundo global deslocalizado, do offshore, é parecerem todas respeitabilíssimas, ao mesmo tempo em que existem para permitir que quantidades muito grandes de dinheiro circulem com a mínima marola possível. Fugir de pagar impostos deixou de ser atividade clandestina. Os paraísos fiscais existem precisamente para que os muito ricos possam canalizar o próprio dinheiro de modo que escape das autoridades. Mas o dinheiro tem de continuar existindo, tem de manter-se acessível. E tem de ser líquido. Por isso tudo, os muito ricos preferem os paraísos fiscais onde podem conduzir os próprios negócios de modo relativamente exposto. Claro: as mais bem sucedidas instituições e empresas deslocalizadas offshore são as que fazem e respondem menos perguntas e, correspondentemente, mentem menos.
A expressão memorável, definitiva, que Shaxson cunhou para tudo isso é “o teatro da probidade”. Os suíços sempre foram mestres nessa arte, com suas maneiras formais e papelada mínima, gerida com perfeição. Mas outro dos campeões mundiais dessa arte são os britânicos. O livro de Shaxson explica como e por que Londres tornou-se o centro do que o autor chama de “teia de aranha de atividades deslocalizadas offshore” (e que, no processo, passou a oferecer lar confortável para os Saif Gaddafis do mundo). Porque a deslocalização offshore é movimento típico de impérios em declínio. Faz perfeito sentido e adapta-se muito bem a país que tem aparência de opulência e grandeza e de viver segundo padrões muito altos, mas que, por baixo dos panos, vive desesperadamente precisado de arranjar sempre e sempre mais e mais dinheiro.
Como Shaxson demonstra, muitos dos mais bem sucedidos paraísos fiscais do planeta são ex-entrepostos comerciais ou entrepostos comerciais ainda ativos, do império britânico. Entre esses, Hong Kong, as ilhas Channel e territórios britânicos remanescentes do ultramar, como as ilhas Cayman. Esses locais oferecem regimes muito limitados ou inexistentes de impostos, regulação nenhuma, política local fraca, mas todas as manifestações cenográficas de respeitabilidade ética e de transparência democrática.
Os depositantes podem, sem qualquer comichão “ética”, depositar o próprio dinheiro em locais que sentem como “jurisdição britânica”, mesmo que, de fato, não sejam submetidos a nenhuma lei ou regulação britânica (e a nenhuma lei de impostos britânica). As ilhas Cayman, ou Jersey, fazem uso pleno de suas conexões britânicas, para assegurar aos muito ricos que seu dinheiro esteja em total segurança (o hino nacional de Cayman ainda é “God Save the Queen”), mas se alguém reclama às autoridades britânicas, de que aquelas ilhas estão sendo usadas por criminosos e ditadores para lavar dinheiro, o reclamante é informado de que são governos democráticos independentes, sobre os quais a Grã-Bretanha não tem qualquer poder.
É o papel que Hong Kong desempenhou antes de ser devolvida à China em 1997: podia ser apresentada ao mundo exterior como local onde reinavam valores britânicos, mas sem a funesta tendência dos britânicos de aumentar impostos e impor padrões regulatórios às finanças, por ação de pressões políticas. Desempenha hoje o mesmo papel, agora para a China. Depois de 1997, a China preservou Hong Kong como uma ‘zona administrativa especial’ autônoma do continente em todos os campos, exceto no que tenha a ver com relações internacionais e defesa.
Nas palavras de Shaxson, “As semelhanças com o laço ambíguo que liga a Grã-Bretanha e as ilhas Jersey, ou Grã-Bretanha-Cayman, não são coincidência. As elites chinesas querem ter seu próprio centro deslocalizado, offshore, com controle político à parte e separação jurídica”. O que sugere que os centros de finanças deslocalizados, offshore, também prestam bom serviço a impérios em ascensão.
Outro traço comum à maioria desses postos é que são ilhas. Ilhas são ótimas para receber paraísos fiscais, e não só porque estão topograficamente separadas, mas porque estão distanciadas das pressões políticas sempre muito ativas no centro. Além disso, constituem comunidades muito coesas, nas quais todos sabem o que acontece, mas ninguém vê qualquer vantagem em qualquer ‘revelação’ do que não é segredo para ninguém. E, além do mais, sobre todos pesa a ameaça do ostracismo. São como “aquários”, nas palavras de Shaxson, o que serve muito bem à forma mental do mundo do dinheiro deslocalizado, porque aquários são convincentemente transparentes. Vê-se através do aquário e não há “ponto cego”. Portanto, quanto mais você examina o aquário, mais você se convence da transparência dele, até convencer-se de que, ali, nada se poderia esconder. Jersey é caso exemplar: local agradável, de pessoas gentis, com forte senso de responsabilidade civil e cheio de oportunidades para qualquer empreendedor, inclusive para o Estado empreendedor, com eleições para todos os cargos públicos (senadores, deputados, xerifes e policiais de quarteirão), mas com partidos políticos muito fracos, com eleições gerais quase só formais e sem que jamais, ali, tenha havido alguma alternância nos postos eletivos. “Os incomodados mudam-se daqui” é a lei jamais desmentida da política transparente das ilhas Jersey.
Evidentemente a diferença de opinião não foi completamente abolida, como seria sob ditadura (e motivo pelo qual as ditaduras dão péssimos paraísos fiscais: sob ditadura, ninguém jamais sabe quando a coisa toda voará pelos ares). Ali, apenas se dá tempo ao tempo, e todas as diferenças de opinião esvaziam-se. Acontece exatamente o mesmo nas Ilhas Cayman, com população mínima (cerca de 55 mil habitantes), deputados e senadores eleitos e governador-geral nomeado por Londres, que toma todas as decisões, mas, sempre, depois de ouvir a população local, democraticamente. Como disse um ex-governador-geral de Cayman, “acho que vivemos aqui no mundo da semântica. Quantos mais caymanenses sejam nomeados para postos de poder, melhor. Os nativos servem como faróis condutores, esclarecendo os pontos obscuros, sempre que há divergência de opinião no plano político”.
Essa é a teia, mas onde está a aranha? No coração do ensaio de Shaxson e da história que expõe, está sempre a City de Londres, ela própria uma espécie de ilha dentro do estado britânico. Outra vez, o crescimento da City como local preferido dos estrangeiros que tenham dinheiro para guardar, não importa quem sejam ou de onde venham, está associado ao declínio o império.
Depois da 2ª Guerra Mundial, a libra esterlina ainda financiava grande parte do comércio global, mas a economia britânica já não tinha como defender o valor da pound contra o dólar. Depois de Suez, que provocou uma corrida para a pound, o governo tentou impor limitações aos empréstimos externos feitos por bancos comerciais londrinos. A resposta dos bancos, com a conivência do Bank of England, foi transferir seus empréstimos internacionais para o dólar. O resultado foi que assim se criou o chamado “mercado do eurodólar” – que sempre foi um muito efetivo paraíso fiscal, deslocalizado, offshore. Porque as trocas comerciais estavam acontecendo em dólares, os britânicos entenderam que não era preciso impor regulação alguma; e, porque estava acontecendo em Londres, os americanos não tinham meios para taxar aquelas trocas ou regulá-las, fosse como fosse.
Entre os primeiros a perceber as vantagens do novo sistema estavam os soviéticos, que precisavam de lugar seguro para guardar seus dólares fora dos EUA, de modo que os americanos não pudessem congelá-los, no caso de as relações entre os dois países se deteriorarem. Pouco depois, os próprios americanos acompanharam o movimento de “deslocalização”, offshore, dos soviéticos rumo a Londres; não todos os cidadãos norte-americanos, claro: só os bancos norte-americanos e os indivíduos muito ricos – que viram o mercado londrino como alguém com quem podiam negociar, perfeitamente protegidos das garras das autoridades tributárias dos EUA. O dinheiro começou a chegar a Londres em pilhas e pilhas e pilhas.
O Banco de Londres vivia feliz: Londres era novamente o centro nervoso (e rico) da finança internacional. O governo dos EUA, como se pode adivinhar, não vivia igualmente muito feliz: temiam uma crise da balança de pagamentos. Mas quando, em 1963, o presidente Kennedy tentou conter os fluxos de dinheiro para fora do país e taxou o lucro de seguros estrangeiros, num esforço para conter a exportação de dólares para mercados exteriores mais lucrativos, obteve resultado exatamente oposto ao que almejava e produziu o que Shaxson chama de “estouro da boiada rumo ao mercado londrino offshore, deslocalizado, livre de impostos e regulações de qualquer tipo”. Os estrategistas da economia dos EUA estavam, pois, ante um dilema. Podiam tentar enfrentar a ameaça do mercado deslocalizado, ou com maiores juros domésticos, ou com controles ainda mais apertados contra a saída de dinheiro e regime regulatório mais rígido que exigisse dos bancos dos EUA que prestassem informações ao fisco nos EUA sobre suas atividades no mercado offshore londrino. E os EUA podiam ainda copiar Londres e criar seu próprio offshore doméstico, mais perto de casa: em outras palavras, se você não pode derrotá-los, alie-se a eles.
A segunda via era a via de menor resistência – dentre outras coisas, seria meio útil para fortalecer a posição do dólar como moeda global de reserva; e, ao longo do tempo, os EUA escolheram essa via. Lentamente, a partir do final dos anos 1960s, ao longo dos anos 1970s e, depois, muito mais rapidamente nos anos 1980s e 1990s, os EUA desregularam todos os controles financeiros e deixaram que o dinheiro se movimentasse daqui para lá, com cada vez menos perguntas, controles e limitações, na esperança de que, no fluxo, mais dinheiro acabaria deixado pelo caminho, grudado nos dutos.
Nos EUA, iniciado o processo, criou-se uma onda de competição entre os estados dos EUA (“guerra fiscal”, como se chama no Brasil), com cada estado da federação tentando oferecer o ambiente menos regulado, mais hospitaleiro, menos intrusivo, para atrair empresas para seus respectivos territórios. O estado líder nesse movimento foi o pequeno Delaware, que sempre tentara compensar o território reduzido, com abertura para todos os negócios. Desde os anos 1980s, muitas e muitas corporações mudaram-se para o estado de Delaware, em busca dos benefícios de laissez-faire extremo com que Delaware tratava os direitos de acionistas e empregados, contra os interesses das gerências corporativas.
Se você mudasse seu negócio para o Delaware (o que custava, apenas, o trabalho de mobiliar um escritório-sede e preencher alguns formulários), praticamente ninguém ou quase ninguém conseguiria provar coisa alguma contra você, porque as cortes de justiça do Delaware viviam sob a firme crença de que o que você fizesse era problema seu, não delas. Outra vez, os demais estados enfrentaram um dilema: podiam tentar isolar o Delaware, apertando cada vez mais os seus próprios padrões regulatórios, ou abriam uma disputa pela partilha do botim. Vários estados dos EUA decidiram competir e buscar a sua parte naquele latifúndio de desregulação. O que começara deslocalizado para longe, passou a ser deslocalizado aqui mesmo. O offshore atracou.
Quando os funcionários de Delaware viajaram pelo mundo, no final de 1980s para divulgar seus serviços (e esperando, dentre outras coisas, atrair para seu paraísooffshore estadual deslocalizado e atracado todo o dinheiro quentíssimo que se esperava que escapasse de Hong Kong no processo da devolução à China), divulgavam o slogan “Em Delaware, seu dinheiro está protegido contra todas as políticas”.
Shaxson define um paraíso fiscal sem taxas e impostos, como “local que procura atrair negócios oferecendo estabilidade política, para ajudar pessoas e empresas a escapar de regras, regulações e jurisdições de que o resto do mundo vive cheio”. E é aí que está o xis.
Que fim deram à política? Por que esses movimentos do grande dinheiro não geraram instabilidade política, ou, no mínimo, alguma discussão política? No caso do Delaware, como em outras comunidades-aquário, o tamanho provavelmente explica alguma coisa (por longo tempo, toda a política estadual do Delaware foi modelada pela ação da família Du Pont, cujas vastas operações, na indústria química, dominavam a economia local). Mas no caso, digamos, de Washington, onde a mudança para uma forma de pensar de deslocalização ampla, de desatracamento, de offshore amplo geral e irrestrito do grande dinheiro deveria, no mínimo, ter gerado discussão social e, no mínimo, alguma oposição política empenhada?
O que aconteceu aos representantes eleitos de todas as multidões de norte-americanos que não têm milhões e milhões a defender, que não têm dólares a deslocalizar nem que quisessem deslocalizar-se um pouco, e que tem, isso sim, interesse amplo geral e irrestrito em criar e defender sistema justo, amplo, progressista e progressivo de impostos, e que seja eficiente em termos de arrecadação? Não viram o que estava acontecendo?! Mas... mas... ninguém nunca percebeu nada?!
Essa é a questão que ocupa Jacob Hacker e Paul Pierson, em seu novo livro “A Política do Vencedor Leva Tudo”. Não consomem muito tempo explicando os mistérios do offshore e da deslocalização do grande dinheiro, mas o argumento que constroem é impressionantemente próximo do argumento exposto por Shaxson. Segundo Sahxson, um dos modos pelos quais se pode identificar um ambiente favorável a dinheiro deslocalizado, e sem conflito político, é verificar se, no local considerado, a política local foi capturada pelos serviços financeiros. Nesse sentido, Washington é perfeito para acolher paraísos fiscais, dinheiro grosso deslocalizado: a política, em Washington foi completa e absolutamente capturada pelos interesses de um grupo muito pequeno de indivíduos extremamente ricos – a maioria dos quais são o próprio mundo da grande finança.
Para Hacker e Pierson isso, mais que qualquer outro fator, explica por que os muito ricos ficaram tão mais ricos ao longo dos últimos 30 anos. Quando dizem “ricos”, não dizem “ricos em geral”: falam dos super-ricos. Os verdadeiros beneficiários da explosão dos ganhos dos mais ricos desde os anos 1970s não foram os 1% mais ricos, mas, sim, os 0,1% mais ricos da população total. Desde 1974, os 0,1% mais ricos dos EUA viram sua renda passar de 2,7 para 12,3% do total da renda nacional, o que parece ser o caso mais espantoso de desigualdade na distribuição nacional, entre os que têm e os que não têm. Quem são essa gente?
Como Hacker e Pierson observam, não são necessariamente superestrelas e celebridades do mundo da arte, entretenimento ou esportes. Nem são herdeiros ricos que vivem de fortuna acumulada nas famílias, como se via acontecer no início do século passado.
Hoje, parcela significativa dos super-ricos são executivos e gerentes, muitos deles, executivos e gerentes de empresas financeiras.
Hacker e Pierson creem que a política deva ser culpada por isso. Aconteceu porque os políticos e os funcionários públicos deixaram que acontecesse; não aconteceu por causa de mercados internacionais, nem por causa da globalização ou por diferenças nas oportunidades educacionais ou de vida em geral.
O que aconteceu foi construído, por pressão de lobbystas e de outras organizações para criar ambiente amigável para os super-ricos, que satisfaça suas necessidades. E se trata, de fato, de uma espécie muito particular de política, e de uma espécie muito específica de escolha. Não é resultado de conspiração, dado que aconteceu aí, à vista de todos. Mas não é movimento político do tipo de política que se vê nas ruas, com comícios, discursos e triunfos eleitorais,
A política que deixou que acontecesse o que aconteceu com o grande dinheiro planetário deslocalizado depende em grande parte do que Hacker e Pierson chamam de “um movimento de deriva”: “fracassos sistemáticos, prolongados de sucessivos governos responderam à deriva de um movimento econômico. Os políticos e decisores, com grande frequência, foram persuadidos a não resistir, a nada fazer, a deixar que as coisas se acomodassem, que andassem para onde quisessem andar, que o dinheiro corresse pelo mundo, para cima e para baixo, à vontade, até que o dinheiro se acumulou na ponta mais alta da pirâmide.
Essa ideia faz eco ao que Shaxson diz sobre como o sistema de deslocalização do grande dinheiro foi deixado livre, leve, solto, sem qualquer controle, ao longo dos últimos 40 anos. E nem se fala de conspiração, porque ninguém precisou conspirar. De fato, o que aconteceu aconteceu porque “ninguém estava prestando atenção ao grande dinheiro”.
Uma das reclamações de Hacker e Pierson sobre o modo como nós em geral vemos a política é que não vemos o que realmente acontece, porque só vemos o showeleitoral e as disputas partidárias. É o teatro da política eleitoral, que se desenrola ao lado do teatro da probidade.
Muito frequentemente, dizem eles, reduzimos a política ao plano do esporte: “Isso, sem dúvida, é o que explica que a política eleitoral seja tão atraente, como tema, para a mídia: é excitante e é simples. Os torcedores memorizam as jogadas características de seus atletas preferidos ou se tornam especialistas em grandes pelejas passadas. Mas todos sempre podem gozar o apaixonante espetáculo oferecido por duas equipes altamente motivadas disputando a palma.”
Aqui, tenho de fazer um mea culpa. Já várias vezes me surpreendi pensando se me interesso por política pelo mesmo motivo que me interesso por esportes, e várias vezes senti-me vagamente culpado. Desconfio que a culpa se explique porque, de fato, não sei, a fundo, o que acontece nem num caso nem no outro. Eleições são eventos fascinantes, aqueles dias são vividos de modo tão radical, que com certeza ali nada se vê do que seja a verdadeira política: os grupos de pressão – dinheiro, lobbyes, ameaças – operam nesses dias para arrancar o melhor dos candidatos, sejam quem for, para influenciar a modelagem das políticas futuras. Eleições são também falsos pontos de virada histórica.
Seria fácil aceitar que, se os ricos têm vencido nas últimas décadas, o processo começou com a eleição do grande agente pró-big business e antigoverno que foi Ronald Reagan em 1980 (e, concomitantemente, de Margaret Thatcher na Grã-Bretanha em 1979). Mas Hacker e Pierson dizem que o verdadeiro ponto de virada aconteceu antes, em 1978, ainda durante a presidência de Jimmy Carter.
Nesse ano, os lobbyistas e outros grupos organizados, que trabalhavam para implantar na opinião pública os discursos pró-desregulação e execravam o “peso dos impostos e regras” sobre os mais ricos e os interesses das grandes corporações, descobriram que ninguém labutava na resistência contra seus planos.
Apesar de o Partido Democrata controlar a Casa Branca e as duas Casas do Congresso, 1978 assistiu à derrota de todas as tentativas para aprovar reformas progressistas no campo tributário e para fortalecer a posição legal dos sindicatos. Em vez disso, aprovaram-se leis para reduzir a carga tributária das empresas e aumentar a carga tributária dos empregados (leis que autorizam desconto de impostos na fonte, que são leis conservadoras). Tudo isso aconteceu, porque os políticos seguiram a via de menor resistência – como sempre fazem os políticos eleitos – e a resistência mais bem organizada e mais bem abastecida de dinheiro veio dos representantes do big business, não das forças trabalhistas organizadas.
O que aconteceu nos EUA nos anos 1980s foi, portanto uma extensão dos anos Carter, não alguma virada em relação a eles. O processo de desregulação e redistribuição rumo à concentração do dinheiro no pico da pirâmide foi acelerado nos anos Reagan, que era amplamente simpático a essa concentração. Mas não aconteceu por Reagan ser simpático ao processo, mas porque suas simpatias encontraram ambiente político favorável para correr com rédea solta, ambiente no qual a oposição manteve-se muda e a esperada coalizão de interesses populares jamais se materializou no campo contrário. Afinal de contas, como Hacker e Pierson observam, Richard Nixon, do qual se poderia esperar que partilhasse várias das simpatias de Reagan, uma década antes, havia labutado na direção oposta e acolhera o marco legal do estado de bem-estar e mantivera um sistema tributário amplamente progressista. (Processo semelhante acontecera na Grã-Bretanha, com Edward Heath.)
Nixon agiu como agiu, não por suas simpatias estarem num lado ou noutro, mas porque não teve escolha: a pressão organizada para impedir que se aprovassem leis de concentração da riqueza ali estava, atenta, e muito mais forte que a pressão a favor dos interesses dos muito ricos. Só durante os anos Carter é que essa pressão enfraqueceu, e enfraqueceu muito mais do que se poderia esperar que enfraquecesse. Os políticos da revolução Reagan/Tatcher fizeram o que fizeram porque eram ideólogos comprometidos, determinados a não ceder um palmo de seus princípios. Fizeram o que fizeram, porque perceberam que não seriam presos nem seriam eleitoralmente derrotados.
Mas... e que fim levou a resistência contra os interesses da elite de super-ricos? Esse é o verdadeiro enigma, a cuja elucidação Hacker e Pierson dedicam-se empenhadamente, porque levam a democracia a sério – apesar de serem doentiamente obcecados na defesa de eleições.
Democracia implica favorecer os interesses da maioria, em detrimento dos interesses da minoria. Nas palavras de Hacker e Pierson, “A democracia talvez não preste em muitos pontos. Mas se supõe que seja eficaz para solucionar problemas que afetam maiorias amplas.” Será que a maioria realmente não se incomodou com estar perdendo tanto, a favor dos interesses de uma pequena elite de super-ricos?
No caso dos EUA, a ideia geral é que os eleitores permitiram que tudo acontecesse porque vivem preocupados com outras coisas: religião, cultura, aborto, armas etc. Quem pense assim entende que os norte-americanos comuns assinaram uma espécie de pacto faustiano com o Partido Republicano, pelo qual os ricos ficariam com o dinheiro e os pobres receberiam apoio e respeito aos valores culturais que lhes eram caros. Hacker e Pierson rejeitam essa ideia, mas não só porque não acreditam que o processo que analisam dependa de haver um Republicano na Casa Branca.
Os autores veem fortes evidências de que o público eleitor norte-americano continua a desejar um sistema tributário mais justo e entende que não é trabalho dos políticos proteger os interesses dos mais pobres contra os interesses da alta finança. O problema parece ser que os eleitores simplesmente não sabem o que os políticos fazem. O eleitor não é adequadamente informado sobre como as leis foram sendo consistentemente alteradas na direção que mais prejudicava o maior número de pessoas. “Os norte-americanos também são igualitaristas no que tenha a ver com o que entendem como mundo ideal” – escrevem Hacker e Pierson. “Mas têm opiniões muito menos claras, menos acuradas, quando se trata do mundo real”.
Por que ninguém estava prestando atenção ao que estava acontecendo? A culpa talvez seja da Internet, que torna cada vez mais difícil que alguém pense sobre alguma coisa, por tempo suficiente. Mas chama a atenção, de fato, que o argumento de Hacker e Pierson implica retorno a uma crítica muito antiga da democracia, uma crítica que floresceu nos anos 1920s e 1930s, mas foi suplantada, no período do pós-guerra, pela convicção de que os eleitores seriam competentes para manifestar comportamento racional em massa.
Essa crítica tradicional não vê qualquer fragilidade na democracia, no sentido de supor que os eleitores desejem coisas erradas, ou que não saibam o que querem. O eleitor sabe o que quer, mas não sabe como consegui-lo. As pessoas não são idiotas, mas, no que tenha a ver com política e votos, são ignorantes, preguiçosas, deixam-se satisfazer rapidamente por qualquer resposta de ocasião, construída para acalmá-las e calá-las. Hacker e Pierson reconhecem que hoje já se vê como ‘politicamente incorreto’ dizer tais coisas, mesmo nos discursos políticos sérios. Mas ainda é plena verdade.
“A maioria dos cidadãos dá pouca atenção à política, o que se vê pelas ruas. Generosidade política, hoje, seria, precisamente, chamar a atenção dos eleitores para seus vícios.” A solução tradicional que se encontrou para esse problema tem sido suprir a ignorância dos eleitores com opiniões de especialistas, que se apresentam como dispostos a reformar todo o sistema, na direção do melhor interesse dos eleitores. A dificuldade é que, quanto mais falam esses especialistas, menos os eleitores manifestam interesse em informar-se mais sobre o que se passa no mundo.
É onde Hacker e Pierson identificam o xis do problema da política democrática: para combater o que acontece fora do radar dos eleitores, é preciso que a luta continue a acontecer nos espaços que o eleitor vê. A esperança progressista é que, assim sendo, o leitor eventualmente acorde para as lutas e decida engajar-se nelas. Nas palavras de Hacker e Pierson: “Os reformadores políticos têm de aprender a discutir política pequena e para poucos, em milhões e milhões de fronts, a política de eixo longo e transmissão complexa.” O que exige muito tempo.
Mas tempo parece ser uma das coisas que os reformadores não têm. Como Shaxson aponta, em seu estudo de como nasceram os paraísos fiscais, uma das causas pelas quais a deriva andou na direção da desregulação é que a resistência política demorou demais para constituir-se como resistência. E aqui, outra vez, aparece mais uma das críticas tradicionais que se fez à democracia: enquanto os democratas bons e decentes organizam-se para fazer do mundo lugar mais acolhedor, o mundo a ser transformado já se transformou.
Em ambiente de altas finanças, cada vez mais rápido, é sempre mais fácil reunir uma coalizão de vontades a favor de cada vez menos regulações e regras, que reunir gente para trabalhar a favor de mais regulações ou leis mais apertadas. Assim também, é sempre mais fácil não aplicar leis que haja, do que fazê-las valer: não aplicar leis é trabalho instantâneo – basta fechar os olhos, exige o tempo de uma piscadela – mas aplicar leis é processo lento e laborioso.
Shaxson, como tantos de nós, parece ter construído a arapuca na qual se vê preso. Por um lado, entende que a chave para resistir ao poder do dinheiro deslocalizado, global, offshore, super concentrado no topo da pirâmide, é construir sistema mais transparente, baseado no que chama de “troca automática de informação, em plataformas multilaterais”. Mas, isso, é o mesmo que entregar o timão aos especialistas (que, cada dia mais, falam sozinhos, ou só entre eles).
Por outro lado, Shaxson quer governos nacionais mais ativos, dinâmicos, que respondam mais e melhor aos cidadãos. Mas, nesse caso, supervalorizam-se os governos nacionais e se enfraquece qualquer governança global, cuja coordenação é indispensável a qualquer sistema que se queira transparente. Se as políticas nacionais forem reforçadas, mais difícil será implantar qualquer coordenação no plano internacional. Essa é a arapuca-total em que se meteu a globalização.
Shaxson ilustra o problema, ao final de seu livro, quando lista propostas para mudar a cultura da grande finança deslocalizada global offshore. Um dos exemplos que oferece de como se pode fazer, vem dos EUA onde, em 2001, o Congresso afinal aprovou leis mais duras contra a lavagem de dinheiro e impediu a proliferação de bancos offshore que se ocultam sob delegados e acionistas cujos verdadeiros nomes ninguém conhece e que são os verdadeiros proprietários daqueles bancos. Mas, aí, é preciso considerar a data: todas essas leis foram incluídas no “pacote” do Patriot Act, e só foram aprovadas porque todos os deputados e senadores estavam paralisados pelo 11/9. Além do mais, ninguém, em sã consciência, dirá que daquelas leis resultou mundo mais bem integrado ou mais transparente, ou alguma revitalização da política nos EUA.
Shaxson recomenda também que os governos se dediquem mais a manter ‘em casa’ o dinheiro da grande finança. Uma das forças motrizes do mundo da grande finança deslocalizada global offshore, diz ele, são “as marés de dinheiro sujo do petróleo que escorrem para dentro do sistema offshore global, e distorcem, nesse processo, toda a economia global.” Solução radical para manter as riquezas minerais dos países longe das mãos dos poucos indivíduos hiper-ricos e nas mãos de cidadãos comuns, é redistribuir o dinheiro, internamente, diretamente para os cidadãos. Parece irrealista, mas já se faz assim em vários lugares do mundo, por exemplo, na Líbia e no Alaska. Mas Shaxson não deixa que sua análise avance até a revelação dos nomes dos políticos governantes que fazem isso: Muammar Gaddafi, na Líbia; e Sarah Palin, no Alasca.
Assim sendo, sim, políticos ágeis, socialmente sensíveis, democráticos ou não, podem fazer grande diferença; mas não se conclui daí que, de suas políticas, resultem melhor compreensão entre os povos, nem, sequer, alguma paz. Esses dois ensaios brilhantes que resenhamos aqui acertam, ao sugerir que a política seja parte da questão. Mas a política (e a democracia) continuam a ser, também, sempre, parte do problema.
Nota de tradução:[1] Sobre o seriado ver em: “Stringer” Bell (em inglês).
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