segunda-feira, 16 de maio de 2011

O Supremo, quosque tandem?

A indicação dos juízes, os pedidos de vistas, os conflitos de interesse, o ativismo e as disputas entre ministros – a agenda de dificuldades do STF




por Luiz Maklouf Carvalho


O desembargador Antonio Cezar Peluso queria virar ministro do Supremo Tribunal Federal quando Fernando Henrique Cardoso estava na Presidência. Amigos fiéis pelejaram pelo seu nome e o presidente gostava dele, mas a vaga não foi sua. “O Peluso é bom e eu queria nomeá-lo, mas a vez era de uma mulher”, disse Fernando Henrique. A decisão foi mais de Ruth Cardoso do que dele. E a também desembargadora Ellen Gracie, indicada e escorada por Nelson Jobim, ganhou o posto. Quando o reinado tucano findou, Peluso disse a amigos: “Acabou. Vou me aposentar como desembargador e aproveitar a vida.”



Jamais imaginou que o petismo fosse buscar um conservador como ele. Mas hoje lá está ele, na cadeira de presidente, com a alegria de um menino esforçado que conseguiu chegar a primeiro da classe. Peluso não se importa com a definição de “paciência zero”, que percorre o tribunal. Se for acrescentada a expressão “com a burrice”, é capaz de aplaudir. Também não se altera com observações sobre decisões atrapalhadas ou incoerentes do Supremo, que recendem a insegurança jurídica.



“No Brasil, o mundo jurídico não reage à altura aos erros do Supremo”, disse. “A maioria das críticas não tem pertinência, não avança no conteúdo, o que seria fundamental para melhorar a qualidade. Nos Estados Unidos, eles não perdoam. Há uma produção acadêmica com massa crítica sobre as decisões da Suprema Corte.”



Aparentemente, ficou satisfeito com a observação de que é um dos poucos ministros capazes de se meter em discussões complexas de improviso, sem ler. Retrucou com uma citação de Fulton Sheen: “Quem se dirige aos outros deve dar preferência em falar sem ler, porque não corre o risco de perder a espontaneidade.” O Google informa que Fulton Sheen (1895–1979) foi um arcebispo católico americano. Quem mais saberia isso, e ainda mais de memória, senão o ministro Peluso?



Ele teve um tio arcebispo, com quem morou por muitos anos. Foi seminarista por conta disso, e acalentou o desejo de ser papa. Mas desistiu e em 1962 foi cursar direito numa faculdade católica de Santos. “Eu achava que comunista comia criancinha e apoiei os militares”, disse. “Foi um erro do qual me arrependi.” Peluso não tem nem mestrado nem doutorado. Começou os dois, mas não os concluiu. No doutorado inconcluso, seu orientador foi Alfredo Buzaid, ministro da Justiça da ditadura e juiz do Supremo. “Uma ótima pessoa”, é a sua opinião.



Peluso situa seu arrependimento do apoio à ditadura antes do Ato Institucional nº 5. Gosta de contar sobre sua atuação pró-direitos humanos em presídios abarrotados, quando era corregedor auxiliar do Tribunal de Justiça de São Paulo. Disse que uma vez fez um relatório “violentíssimo” contra o delegado Sérgio Fleury, o torturador, a quem chamou de “famigerado”, sendo posteriormente obrigado a cortar o termo por ordem superior.



Foi para o Supremo, como agradeceu no discurso de posse, por obra e graça de Márcio Thomaz Bastos, e, claro, a concordância do presidente Lula. Tem na casa fama de metódico, irritadiço e autoritário. Numa entrevista, é reservado, irônico e, quando quer, bem-humorado. Gosta do chamado samba de raiz – só de ouvir, esclareceu.



Não é de comentar os votos, mas se explicou no caso do processo contra Antonio Palocci por quebra do sigilo bancário do caseiro Francenildo dos Santos Costa. Não aceitou a denúncia porque a tipificação do crime estava errada. “Não havia prova de que Palocci tinha mandado quebrar o sigilo do caseiro, mas havia prova de que sabia que isso havia sido feito, e não tomou providência, o que configura o crime de prevaricação”, disse. “Como a denúncia não o criminalizava por isso, só pude votar como votei.”



Peluso assumiu a presidência com 700 processos prontos para levar a julgamento nas plenárias de quarta e quinta-feira. “É muita coisa”, disse, embora seja menos de 10% dos processos em tramitação. “Precisamos ser mais breves”, continuou, criticando as intervenções demoradas, inclusive as suas (a leitura do seu voto pela extradição de Cesare Battisti demorou cinco horas).



Admirador do sistema americano, no qual a deliberação não é pública, gostaria que o Supremo adotasse uma forma colegiada de tomar decisões, com os ministros conversando entre si antes dos julgamentos. A Corte americana tem sessões públicas para os “hearings”, uma espécie de sustentação oral dos advogados, mas muito mais interativo que no Supremo brasileiro. Os juízes americanos, contudo, deliberam em sessões fechadas e também por escrito, trocando entre eles memorandos que vão e voltam, por meses. As sessões também são fechadas na Alemanha, na Espanha, na Itália, na África do Sul e no Canadá.



“O processo de formação de opinião pode ser reservado de modo formal, porque é assim informalmente, já que alguns ministros conversam a respeito dos casos”, disse o presidente do Supremo. “O problema do Brasil é a gente nunca saber o que a corte pensa. Saber isso traria maior transparência e segurança jurídica.” Peluso sabe que há forte resistência à colegialidade, especialmente da parte de Marco Aurélio Mello. Mas acha que com paciência e habilidade poderá avançar.



Peluso precisará disso e de algo mais para concretizar duas bandeiras que anunciou. A primeira é a redução das férias do Judiciário de sessenta para trinta dias, uma heresia para quem se beneficia de dois meses de folga. A outra é o aumento de salários do Supremo, uma heresia para quem não trabalha lá.



“Você já sabe do que nós vamos falar”, disse Lula ao advogado-geral da União, José Antonio Dias Toffoli. O assunto era a próxima vaga do Supremo. Toffoli respondeu: “Eu sei do que nós vamos falar, presidente, mas eu não vou aceitar porque o seu preferido, o do coração, não sou eu.” Lula encerrou o assunto: “É, mas o Sig não quis, e vai ser você mesmo.” Um abraço selou o convite e a concordância de Toffoli. Sig é o apelido do advogado Sigmaringa Seixas, um dos amigos mais queridos do presidente. Poderia ter ido para o Supremo desde a primeira levada lulista – três de uma vez – mas nunca aceitou os convites. “Eu prefiro advogar”, disse, em seu escritório, explicando o desapego.



De uns mais, de outros menos, Márcio Thomaz Bastos foi o avalista de todos os oito ministros que Lula indicou e o Senado referendou. Para quem reclama da qualidade da atual corte, ele diz: “O presidente Lula quis fazer um Supremo arejado, mais aberto e voltado para a nação, ao invés de um em fim de carreira, voltado para si próprio. Um Supremo capaz de experimentar, com todos os riscos inerentes a isso, até o risco de Brasília estranhar.” Deu um breque, pensou e continuou: “O mecanismo de indicação é muito bom, desde que o Senado cumpra o seu dever de escrutinar e investigar os indicados. É isso que faz funcionar o sistema de pesos e contrapesos. Mas isso não tem existido, infelizmente.”



O presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, Mozart Valadares Pires, acha que a forma atual de indicação “não atende aos princípios republicanos”. A Associação elaborou uma proposta de emenda constitucional para mudá-la que está tramitando no Congresso. Ela estabelece a idade mínima de 45 anos de idade e vinte de atividade jurídica. Os indicados comporão uma lista sêxtupla, elaborada pelos ministros do tribunal, que será submetida à escolha do presidente da República. O nome indicado terá que ser aprovado por três quintos dos votos do Senado.



No gabinete ao qual ainda está se habituando, Toffoli recebe sem gravata. Era o final de expediente, depois de uma sessão cansativa. Ele tem uma cafeteira nova, que ele mesmo trouxe, mas isso não dispensa a presença do garçom Manuel Nunes Barbosa. Na média, ele serve 120 cafezinhos por dia no gabinete do ministro mais jovem da corte, onde cerca de quarenta funcionários dão expediente, fora os advogados que o ministro costuma receber (com agenda anunciada na internet).



“É claro que o cargo me fez mudar”, disse o ministro mais jovem. “Antes, numa advocacia com forte viés político, eu é quem tinha que provar, correr atrás. Agora, são os outros que têm que provar a mim. É algo mais recluso, mais retirado da sociedade e da vida. Aqui você tem que se despir de preconceito, paixão e opções pessoais. Fácil não é, mas me sinto maduro para a função.” Como nasceu e viveu num colegiado – é o oitavo filho, de nove – o ministro acha que não está tendo maiores dificuldades para se adaptar ao coletivo. “Quem chega aqui não precisa provar nada para ninguém”, disse. “Aqui não tem bandido nem mau-caráter. Há as vaidades, mas é só.”



Fernando Henrique Cardoso indicou três ministros. Um deles, Gilmar Mendes – tal como Toffoli para Lula –, era seu advogado-geral da União. “Esse Toffoli, que só vi uma vez na vida, o Senado tinha que tê-lo investigado muito mais”, disse o ex-presidente. “Tinha que ter feito isso porque ele foi advogado do PT, foi advogado pessoal do Lula, e é muito moço, não tem títulos. Não estou dizendo que não pudesse ter aprovado a indicação. Mas devia demonstrar para a opinião pública que, pelo menos, ele tinha potencial para ser um bom ministro. Tenho uma boa impressão dele, acho até que vai virar um bom juiz. Mas acho arriscado nomear alguém que pode virar um bom juiz. É melhor botar alguém que já seja.” Ao ser indicado, Toffoli tinha uma condenação em primeira instância, da qual foi posteriormente absolvido.



Ainda que tenha indicado oito juízes, Lula nunca teve a maioria da corte. Tanto que o Supremo lhe criou embaraços ao aceitar a denúncia dos implicados no mensalão. E contrariou expressamente uma decisão do ministro da Justiça quando deliberou que Cesare Battisti pode ser extraditado. Tampouco se pode dizer que nele exista uma ala de esquerda e outra de direita. Nem que haja uma clivagem entre conservadores, liberais e progressistas, seja em matéria social, econômica ou de costumes.



Nos Estados Unidos, a existência secular de dois campos bem definidos, o republicano e o democrata, encontra expressão ideológica na Corte Suprema. Lá, todo mundo sabe quem são os juízes conservadores e liberais. No Brasil, a polarização entre PT e PSDB é recentíssima, não teve projeção institucional – e ambos dependem da geleia geral peemedebista. E mesmo que se admita que os dois partidos tenham uma ideologia identificável, ainda assim é difícil discernir um do outro no terreno dos princípios jurídicos.



A ausência de balizas é agravada pela irrelevância da jurisprudência no Judiciário brasileiro. Uma decisão do Supremo não cria uma norma que venha a servir de orientação no futuro. Com o desrespeito frequente ao que foi previamente decidido, o tratamento de uma mesma questão, em poucos anos, pode ser bastante diferente. Com isso, os juízes estão à vontade para atuar individualmente.



“O Supremo é menos um colegiado e mais uma soma de individualidades, e isso é ruim para a democracia”, disse Luís Roberto Barroso em sua casa, no Lago Sul. Advogado com banca renomada, mestre pela Universidade Yale, Barroso é um dos nomes cogitados pelo presidente Lula para substituir Eros Grau, que se aposentou no mês passado. Pelo menos dois ministros, Celso de Mello e Marco Aurélio, gostariam de tê-lo como colega.



“As instituições devem ser preservadas, mesmo quando o seu desempenho não corresponde ao ideal”, disse Barroso como preâmbulo para as suas ideias de mudança. “O ideal seria julgar uns mil casos emblemáticos por ano, com visibilidade, transparência e qualidade.” Pensa que ex-ministros não deveriam voltar à ativa. “Ao final do mandato, o melhor é escrever as memórias, ou ser professor”, disse. Advoga uma “revolução da brevidade”, ou seja, que os votos sejam mais curtos. Também acha que o voto do relator deveria circular entre os ministros antes do julgamento em plenário, “para que todos possam preparar-se melhor, inclusive os discordantes, o que evitaria a frequência de pedidos de vistas.”



O pedido de vistas, no entender do ex-presidente Maurício Corrêa, “é o drama pior, mais terrível, mais lamentável, do Supremo. Tem ministro lá que está com processo desde que tomou posse”. Ele mostrou duas regras do regimento, criadas na sua gestão, estabelecendo prazos para os pedidos de vista e para a devolução das notas taquigráficas revisadas. “Na minha época, os prazos eram respeitados”, disse. “O problema é que eles relaxaram, ninguém cumpre.” Um outro ex, Ilmar Galvão, brincou: “O pedido de vista está mais para vista grossa.”



Celso de Mello, o decano da casa, também acha exagerada a quantidade de pedidos de vista e se queixa da demora dos colegas em trazer de volta os processos. Mas não lhe venham com essa história de brevidade, de falar menos. Entre as deferências regimentais ao decano figura a de ser o último a falar. “Quando a sessão está no finalzinho e o Celso pede a palavra, eu só falto chorar”, disse, brincando, Gilmar Mendes.



Mas é isso mesmo: os relatórios e votos de Mello costumam ser enormes, e ele não tem a mais remota preocupação de que aquilo possa ou esteja incomodando quem quer que seja. “Isso aqui é história, e a minha obrigação é fazer o melhor possível”, disse, já perto da meia-noite, em seu gabinete enorme no 6º andar do anexo ii.



Notívago a la José Serra, Mello conseguiu que um ascensorista fique à disposição de seu gabinete madrugada afora. É que ele vira as noites lá, com diversos funcionários. Costumava sair com o dia amanhecendo. Mas agora, por ordens médicas, não passa das duas da manhã. O ministro abusa da saúde. Além de ser louco pelos sanduíches do McDonald’s, toma um café que parece uma borra, de tão grosso. Está tentando controlar as duas manias.



“Nunca falei com Daniel Dantas, nem pessoalmente nem pelo telefone, conheço-o de ver na tevê, como todo mundo”, disse o ministro Gilmar Mendes na cabeceira da mesa de seis lugares no seu gabinete. Não fazia nem um mês que deixara a presidência do Supremo. Andava distante dos microfones da imprensa e mais calado nas sessões, mas disse se sentir “muito bem, com a sensação do dever cumprido”. Tirante o ministro Joaquim Barbosa, acha que a sua gestão contou com a aprovação dos colegas, do mundo jurídico e da grande imprensa. Citou como exemplos os editoriais elogiosos do Estado e da Folha de S.Paulo.



Duas semanas antes de deixar o cargo, Mendes fez um périplo por três capitais do Nordeste num dia só. Visitou projetos sociais do Conselho Nacional de Justiça, também presidido por ele. Um dos projetos que incrementou foi o dos mutirões carcerários, que, segundo números do cnj, libertaram 20 mil presos em condições irregulares em todo o país.



“Sentimos que mandamos bem”, disse o ministro, tranquilo e sem sapatos, no jatinho oficial. “Avançamos muito no processo eletrônico, que tem diminuído bastante o acúmulo de processos. O STF hoje é o tribunal mais respeitado do país. E evitamos um namoro explícito com o estado policial. Havia um quadro explosivo que nos levava a um modelo em que a polícia mandava no Ministério Público e em juízes da primeira instância. Era preciso arrostar esses abusos. E eu tive medo de ter medo.”



É aqui que entra o banqueiro Daniel Dantas, alvo da Operação Satiagraha. Mendes mandou soltá-lo duas vezes, concedendo-lhe habeas corpus quando o juiz Fausto de Sanctis quis manter o dono do Opportunity na prisão. Mendes considerou que o juiz, erradamente, se subordinara ao Ministério Público e ao delegado encarregado da investigação, Protógenes Queiroz. De Sanctis não quis dar entrevista a respeito: “Por impedimento legal não posso falar de fato concreto, as decisões falam por si”, disse-me ele.



“Juiz é elemento de controle do inquérito, não é sócio da investigação”, afirmou Gilmar Mendes, sobrevoando Salvador. Ele contou os antecedentes de sua primeira decisão: “A Guio me ligou, dizendo que podiam prender até a Andréa Michael, da Folha de S.Paulo. O governo estava de cócoras em relação aos abusos da polícia. Eu tinha que dar um basta naquilo, fosse Daniel Dantas ou fosse qualquer um.” “Guio” é Guiomar Mendes, esposa do ministro.



Outro risco de estabelecimento de um “estado policial” surgiu, segundo Mendes, quando a revista Veja publicou uma reportagem sustentando que um telefonema de Mendes com o senador Demóstenes Torres havia sido gravado ilegalmente, e apresentou como evidência a transcrição da conversa. Com a certeza de que fora grampeado por um órgão do Executivo, Mendes ligou para Fernando Henrique Cardoso. Eles são amigos. Nos tempos de Gilmar na presidência, Fernando Henrique entrava pela garagem do Supremo. “Foi só uma vez, na posse”, disse o ex-presidente.



“Eu estava numa fazenda”, contou Fernando Henrique em São Paulo. “O Gilmar estava indignado. Disse que ia reagir à altura, chamando às falas o presidente Lula. Eu o incentivei a ir em frente.” Mendes foi. “Não há mais como descer na escala da degradação institucional”, declarou ele à imprensa. “Gravar clandestinamente os telefonemas do presidente do STF é coisa de regime totalitário. É deplorável, ofensivo, indigno.” No dia seguinte, uma delegação do STF integrada por Mendes, Ayres Britto e Cezar Peluso foi ao Planalto sem ter sido convidada. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva os recebeu.



Perguntei ao ex-presidente se, numa situação semelhante, receberia a comitiva. Fernando Henrique ajeitou-se na poltrona e respondeu: “Não sei se teria aceitado aqueles termos. Talvez tivesse exigido uma reparação pública antes, uma desculpa. Mas o Lula é de passar a mão na cabeça dos aloprados e de todo mundo. Ele não é de confrontar. Ele só confronta na retórica, o comportamento dele é o de um conciliador.” Lula acha que esse foi um dos momentos de seu governo em que ele foi mais adulto e mais ciente do seu papel institucional – e menos ele próprio.



No encontro, os três juízes deram como certo que gente do Executivo bisbilhotava a mais alta corte e o Congresso, e cobraram providências. Enfático, o ministro Franklin Martins, da Comunicação Social, argumentou que a denúncia do grampo não tinha comprovação porque o áudio não aparecera. E disse que o governo não podia ser responsabilizado sem provas. Os ministros mal reconheceram sua interlocução. Lula mais ouviu do que falou. Dias depois, à guisa de reparação, mas sem explicitá-la, determinou que o delegado Paulo Lacerda saísse da chefia da Agência Brasileira de Inteligência.



“Não retiro uma vírgula do que disse”, falou Mendes no avião. “Eu e o presidente Lula temos uma ótima relação.” A aproximação foi iniciada pouco depois de Mendes assumir o comando da corte, quando se articulou um jantar no Alvorada, junto com Nelson Jobim e Eros Grau. Depois de uns uísques, o gelo foi quebrado e a conversa com o presidente fluiu. A aproximação se consumou quando o Supremo, com o voto de Mendes, decidiu que o ex-ministro Antonio Palocci não deveria sequer ser investigado pela acusação de quebrar o sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa. Numa conversa com assessores, o presidente disse então que Mendes era “um juiz sem mesquinharia, que pensa no país e na governabilidade”.



A atitude de Mendes de ir ao Planalto cobrar providências se inscreve numa tendência em alta nos últimos anos, a do ativismo jurídico. Ela é produto das dimensões paquidérmicas assumidas pelos Estados contemporâneos, em contrapartida à velocidade das comunicações e reclamos da cidadania. Na prática, leva os tribunais a pressionarem diretamente, e mesmo a exercerem funções de administradores públicos e de legisladores. Com isso, tornam-se inevitáveis os atritos, de maior ou menor monta, com o Executivo e o Congresso. Tornam-se correntes, igualmente, aquilo que alguns juristas chamam de protagonismo (o Judiciário se tornar sujeito da vida político-institucional) e personalismo (juízes se tornarem quase celebridades, pois deixam de falar apenas nos autos, como reza o formalismo).



O ativismo jurídico ocorreu quando o Supremo decidiu que, ao trocarem de partido durante a legislatura, parlamentares perderão o mandato. Com isso, buscou atenuar a troca de legendas no Congresso, que costumava ocorrer logo após as eleições. Noutra imersão em águas do Legislativo, a corte decidiu que, em caso de greves, o funcionalismo deve seguir a legislação imposta aos trabalhadores do setor privado.



Gilmar Mendes foi protagonista e personalista na sua presidência. “O presidente de um poder, como é o caso do Supremo, tem mais é que falar, não nos autos, mas bem alto”, disse. Maria Tereza Sadek, professora de ciência política da Universidade de São Paulo, concorda com a premissa: “O conceito de que juiz só fala nos autos está ultrapassado no mundo inteiro.” Mas não considera a questão tranquila: “O problema é saber qual é o limite para a liturgia do cargo. O Gilmar não foi o primeiro ativista do Supremo. Houve o Sepúlveda, e depois o Jobim. O Gilmar extrapolou um pouco, eu critico isso, mas acho que ele é uma figura pluridimensional, que fez uma revolução, principalmente no Conselho Nacional de Justiça, e tem que ser respeitado por isso.”



O advogado Reginaldo de Castro, ex-presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, insurgiu-se contra a indicação de Gilmar Mendes para o Supremo. E pediu que a Comissão de Constituição e Justiça do Senado vetasse a indicação. Suas acusações não prosperaram. “Não quero voltar a isso”, disse Castro em seu escritório, depois de acender uma bagana de cigarro que esconde de si próprio, para ver se larga o vício. “Mas tenho que reconhecer que ele fez uma grande gestão na presidência do Supremo e do Conselho Nacional de Justiça.” Mendes deu de ombros, olimpicamente, quando falei dos que quiseram vetá-lo, como Castro e o jurista Dalmo de Abreu Dallari.



Tirante que o ouvido esquerdo não está nas melhores condições, Dalmo Dallari vai bem, obrigado, nos seus 78 anos. Tem um gato, dos grandes, que arranha vigorosamente a perna da poltrona quando quer colo, que ele dá. Na sala de sua casa, há um retrato no qual um jovem Lula posa ao lado de um dos dez netos de Dallari. Em outra foto, o Lula de hoje aparece com a sua filha Mônica. O jurista começou a entrevista com quatro propostas para o Supremo.



Três delas têm seguidores: que o STF vire uma corte constitucional, que os indicados sejam escolhidos preliminarmente por votação direta da comunidade jurídica, e só depois pelo presidente e pelo Congresso, e que os ministros tenham mandato de dez ou quinze anos. A quarta, que considera tão ou mais importante que as outras, é singular: tirar o Supremo de Brasília e levá-lo de volta ao Rio. “A proximidade com o centro político é muito prejudicial”, disse o professor aposentado da Universidade de São Paulo, fazendo cafuné no pescoço do bichano. “Na Alemanha, a Corte Constitucional fica a muitos quilômetros de Berlim”, exemplificou.



Dallari conheceu Gilmar Mendes quando este era advogado-geral da União e auxiliava o ministro Nelson Jobim, da Justiça, em questões indígenas. “Tive uma péssima impressão dele nas reuniões em que nos encontramos; eu defendendo os índios, e ele desenvolvendo uma argumentação típica de grileiro de luxo, de quem vê o índio como empecilho ao desenvolvimento nacional”, disse. “Depois houve uma denúncia, da revista Época, mostrando que ele, na Advocacia-Geral da União, contratava o seu próprio estabelecimento de ensino para dar cursos a servidores de lá. Para mim, isso é corrupção.”



Em maio de 2002, Dallari publicou na Folha de S.Paulo um artigo, “Degradação do Judiciário”, com essas e outras acusações. “Se essa indicação vier a ser aprovada pelo Senado, não há exagero em afirmar que estarão correndo sério risco a proteção dos direitos no Brasil, o combate à corrupção e a própria normalidade constitucional”, diz um dos trechos. O argumento técnico era que Mendes não tinha reputação ilibada, exigência constitucional para o posto.



Ainda à frente da Advocacia-Geral, Mendes pediu que o procurador-geral da República o defendesse. O procurador entrou com uma ação penal contra Dallari pelos crimes de injúria e difamação. Enquanto o processo tramitava, o Senado aprovou a indicação de Mendes, com quinze votos contrários, de um total de 72, um número bastante alto. O juiz federal Sílvio Luís Ferreira da Rocha sentenciou que o artigo de Dallari se enquadrava no adequado direito de crítica, sem configurar ofensa à honra, e determinou o arquivamento do caso. Mendes não recorreu.



“Não retiro uma vírgula do que escrevi”, disse Dallari exibindo a sentença. Ao contrário de Reginaldo de Castro, continua a criticar Mendes: “A gestão dele como presidente foi muito negativa, com excesso de personalismo. Em busca de autopromoção, agiu como um verdadeiro inquisidor.”



Mesmo depois da viagem de três capitais nordestinas em um só dia, que terminou de madrugada, Gilmar Mendes estava a postos na manhã seguinte, um sábado, dando uma aula no Instituto Brasiliense de Direito Público. O IDP é uma faculdade particular que fica numa área de 6 mil metros quadrados da Asa Sul. Ela pertence a três professores: Inocêncio Coelho, Paulo Branco e Gilmar Mendes. “É tudo perfeitamente constitucional”, ele disse, acrescentando que constituiu os advogados Sepúlveda Pertence e Sergio Bermudes a abrir processo contra publicações e jornalistas que afirmaram ou insinuaram o contrário.



“Eu tenho que vir, porque muitos se matriculam por causa do meu nome”, disse o ministro durante o intervalo. “Querem ter uma aula com o presidente do Supremo.” A aula daquela manhã durou três horas e teve quinze alunos como espectadores. De maneira profunda e didática, ele falou sobre o controle de constitucionalidade, tema das suas dissertações de mestrado e doutorado na Universidade de Münster, na Alemanha. Deu vários exemplos citando casos do próprio Supremo.



Durante a presidência de Gilmar Mendes, Joaquim Falcão, professor de direito constitucional da Fundação Getulio Vargas, foi juiz-conselheiro do Conselho Nacional de Justiça. Um dos casos que lhe caiu nas mãos foi uma representação contra o juiz Ari Ferreira de Queiroz, de Goiânia. O juiz era sócio-proprietário do Instituto de Ensino e Pesquisa Científica, uma escola semelhante à de Gilmar Mendes, embora mais modesta. A representação visava impedir que Queiroz fosse, simultaneamente, juiz e dono de uma faculdade.



No seu despacho, Joaquim Falcão afirmou que “nos Estados Unidos, o juiz não pode emprestar o prestígio de seu cargo para promover interesse privado”. E se perguntou: “Pode um juiz contribuir com o prestígio de seu cargo, que é público, para beneficiar os interesses privados seus e/ou de outros?”



Para responder, foi ao artigo 36, inciso I, da Lei Orgânica da Magistratura: “É vedado ao magistrado exercer o comércio ou participar de sociedade comercial, inclusive de economia mista, exceto como acionista ou cotista.” O juiz Queiroz – ou o ministro Gilmar Mendes – se enquadrariam nessa exceção. Mas não para Joaquim Falcão. Ele sustentou que o juiz pode participar numa sociedade comercial “exclusivamente como acionista ou cotista, ou seja, de forma não individualizável. De modo que a pessoa física não se utilize do prestígio gozado pelo magistrado como titular de um cargo público”. Portanto, um juiz pode ser acionista e cotista numa sociedade comercial em que sua propriedade esteja diluída e seja anônima. Quando o juiz é reconhecido como proprietário individual de uma sociedade comercial, segundo Falcão, ele “está claramente exercendo ato de empresa, já que o prestígio de seu cargo está sendo utilizado para buscar lucros, contrariando, portanto, as proibições legais”.



Na decisão, Falcão determinou “o imediato desligamento do magistrado de sua qualidade de sócio-cotista e a desvinculação total da imagem do magistrado e do Instituto”. O juiz Queiroz, de Goiânia, acatou a decisão. Por que Falcão não levou a questão ao plenário do Conselho Nacional de Justiça, presidido por um dos sócios proprietários do Instituto Brasiliense de Direito Público? Porque Falcão achou que Gilmar Mendes teria maioria dos votos a seu favor.



“Ministro, não me queira, não: é fria para o senhor”, disse, com forte sotaque cearense, Guiomar Feitosa de Albuquerque Lima para o ministro Marco Aurélio Mello. Bacharel em direito, formada na mesma turma de Gilmar Mendes, a doutora Guiomar era, naqueles meados de 1995, chefe de gabinete de um ministro do Tribunal Superior do Trabalho. Na época em que esteve no mesmo tribunal, Marco Aurélio ficou bem impressionado com a competência da doutora Guiomar e a convidou para trabalhar com ele quando foi para o STF.



“Eu trabalho com seis coisas: amor, humor, garra, organização, método e celeridade”, explicou Guiomar ao contar a história. Como era isso que Marco Aurélio queria, ele não entendeu. E ela explicou: “É fria porque eu tenho dois defeitos graves e um gravíssimo.” O ministro ouviu os graves: “Eu fumo em recinto fechado” e “Sou insolente, questiono ordem e vou bater de frente com o senhor.” Marco Aurélio relevou o primeiro e elogiou o segundo. Guiomar expôs o defeito gravíssimo: “Eu gero dependência.” Deve ser verdade, pois ela trabalhou com Marco Aurélio por muitos anos.



Guiomar conheceu Gilmar Mendes no segundo semestre de 1975, quando se transferiu da faculdade de direito de São João da Boa Vista, no interior paulista, para a Universidade de Brasília. Tinha 23 anos e estava grávida do terceiro filho de seu primeiro marido, um capitão aviador da Força Aérea Brasileira. Mendes, quatro anos mais novo, também estudava direito na UnB. Ficaram amigos, sem nenhuma sombra de interesse sentimental. Formados, cada qual tocou sua vida. Mendes teve uma breve passagem pelo Itamaraty, estudou na Alemanha, casou, teve dois filhos, separou-se, serviu aos governos Collor e Fernando Henrique, e virou ministro do Supremo. Guiomar teve mais quatro casamentos, e outros dois filhos, passou em um concurso para a Advocacia-Geral da União e foi assessora de dois ministros da ditadura, Petrônio Portella e Ibrahim Abi-Ackel.



Um dia, ambos separados, Mendes propôs que a velha amizade virasse namoro. “Não dá, tu é o Chico, meu irmão”, ela disse, referindo-se ao ex-deputado federal Francisco Feitosa, seu irmão. O juiz continuou insistindo, mas ela só aceitava convites para almoçar. Até que um dia, em 2001, foram jantar na Academia de Tênis. Ele era advogado-geral da União, no governo de Fernando Henrique, e ela estava no Supremo com Marco Aurélio. “Quero não, Gil”, continuava a dizer. Mas o ministro já se fizera gostar pelos filhos e pela mãe dela.



Ficaram noivos em 13 de agosto de 2002, dia do aniversário de Guiomar, numa festa para poucos na casa dela. Um dos convidados foi Marco Aurélio, que não queria perder a funcionária exemplar. Mas o noivo, que há poucos meses se tornara ministro do Supremo, queria justamente tirá-la da função para afastá-la de Marco Aurélio, enciumado que estava do colega. Na festa, provocador emérito que é, Marco Aurélio fez um discurso em que botou Guiomar nas nuvens, tantos foram os elogios. E o encerrou com um seco: “Agora é com você, Gilmar.” Mendes fez o discurso, mas, segundo a própria Guiomar, retirou-se da festa pouco depois, irritado.



Trabalhar com Marco Aurélio tornou-se um problema na vida de Guiomar. Mendes não aceitava. Muitas vezes, telefonava do carro oficial, na frente do Supremo, no fim do expediente, e dizia: “Guio, estou aqui embaixo te esperando, desce.” Ela explicava que ainda estava trabalhando com Marco Aurélio. “Diz para ele te liberar porque eu estou esperando.” “Era um inferno”, ela contou. “Quando eles discutiam nas sessões, o que era frequente, sobrava para mim.”



Mendes deu então um ultimato: ou ela deixava de trabalhar com Marco Aurélio, ou o noivado terminava ali. O noivado terminou. Tempos depois, o ministro casou-se com uma advogada que fora sua aluna. Guiomar não se casou.



Quatro anos depois, abatido por uma separação litigiosa que lhe custou, conforme afirmou Guiomar, “alguns bois”, Mendes voltou à carga. Enfrentou uma geleira de mágoa e indiferença. Como insistisse, com recados, ela lhe mandou dizer, a sério, que consentiria em vê-lo – mas só dali a vinte anos. O ministro ganhou uma aliada importante, Carminha, que vem a ser a ministra Cármen Lúcia. Depois de muito esforço para amansar Guiomar, a ministra conseguiu colocá-los frente a frente, numa sala de sua casa, e pediu que se entendessem. Não foram longe naquele dia, mas deram o primeiro passo. O segundo foi um presente romântico, e caro, do ministro: um chalé à beira do Lago Norte, que lhe mostrou numa noite enluarada.



A trilha sonora da reaproximação foi providenciada por um amigo de ambos, o jornalista Márcio Chaer. Num dia em que Mendes tentava desesperadamente reconquistar Guiomar, Chaer lembrou-se de uma música e a indicou à amiga, que arrefeceu.



Acendendo seu décimo cigarro daquele dia, Guiomar interrompeu a entrevista e foi colocar a música para tocar, alto. Ouviu-a inteira, enlevada, e comentou que era linda. Antes que retomasse a história, atendeu uma ligação do ministro José Antonio Dias Toffoli: “Oi, meu amigo, estou com saudade de você. Vou. Vou mesmo. Obrigado.” Era um convite para uma reunião que Toffoli daria em sua casa. Também ligou, pela terceira vez, o advogado Sergio Bermudes. “Oi, meu irmão, meu amigo querido”, atendeu Guiomar.



Eles se casaram em outubro de 2007. Moram em casas separadas, ambas no Lago Sul. Guiomar dorme na dele, e volta todas as manhãs para a sua, onde mora com dois filhos. A segurança do Supremo vigia as duas em tempo integral. O marido é desligadíssimo, ela disse. Quando atende ao telefone no quarto do casal, o ministro belisca castanhas salgadas que ela deixa à disposição. “Uma vez eu substituí por ração de cachorro, e ele comeu do mesmo jeito, tive que correr para não deixar ele engolir a próxima”, Guiomar contou.



Não foi a única história de amor envolvendo juízes do Supremo. Houve o caso de um sofá retirado do gabinete da sala privativa de um ministro por ter sido palco de cenas abrasivas. E houve o romance entre o ministro Francisco Rezek e uma filha do ministro Carlos Velloso, quando ambos estavam na ativa. Velloso soube do caso, em casa, quando a filha lhe contou: “Pai, eu e o Francisco estamos apaixonados e espero que o senhor fique do meu lado.” O ministro pensou muito, e decidiu apoiar a filha. Quando Rezek foi ao seu gabinete formalizar o pedido de casamento, Velloso estava mais controlado. “Mas foi duro”, contou.



Guiomar Mendes era, até o ano passado, a secretária-geral do Tribunal Superior Eleitoral, presidido pelo ministro Ayres Britto. Um e-mail anônimo o informou que um funcionário de cargo de confiança era primo de Gilmar Mendes, configurando nepotismo cruzado. Ayres Britto devolveu o funcionário ao cargo de origem. Guiomar não gostou. Foi a Britto, disse que o parentesco era de sexto grau e avisou: “O senhor é conhecido por ser uma pessoa boa, mas isso não se faz, e estou indo embora.” Um mês depois, foi-se.



“Minha ideia era viver o ócio com dignidade, só que o Sergio me aperreou”, contou Guiomar, a essa altura no 15º cigarro do dia. Já era noite e um novo telefonema interrompeu a entrevista. Era, por coincidência, do Sergio que a aperreara, o Bermudes, no seu quarto telefonema do dia. “Ô meu amigo, ô meu irmão”, repetiu Guiomar.



Encerrada a ligação, ela explicou: “Conheço o Sergio há muitos anos, desde que entrei no STF. É o irmão mais velho que eu não tive e eu sou louca por ele. Às vezes, ele brincava: ‘Dou 1 milhão pra você ir trabalhar comigo.’ Quando me viu aposentada, me aperreou. Queria que eu cuidasse da gestão do escritório dele de Brasília. Eu relutei, mas acabei experimentando, por dois dias. Não vi muito o que fazer por lá e coloquei o cargo à disposição. Ele insistiu, continuei mais uma semana, organizei as coisas do meu jeito e resolvi ficar. Ele me paga, líquidos, 14 mil reais por mês. Eu cuido da gestão do escritório. Não advogo, mas talvez venha a advogar.”



Gilmar Mendes e Sergio Bermudes começaram pelo ódio. O primeiro, quando advogado-geral da União, chamou o segundo – renomado professor de direito e dono de respeitada banca cível no Rio – de “chicanista” em um programa de televisão. Bermudes é dos que mandam cartas. A que enviou a Mendes tinha os seguintes trechos:



Gilmar, você agrediu-me brutalmente; agrediu, virulentamente, os processualistas; agrediu os advogados brasileiros e conspurcou a dignidade do cargo que imerecidamente ocupa.



Insistindo em mostrar as patas, você, muito obviamente, questionou a minha seriedade profissional.



Minha esperança é que você deixe o cargo que ocupa e que não merece por causa do seu desequilíbrio, do seu destempero, da sua leviandade, e que abdique da sua propalada pretensão de alcançar o Supremo Tribunal Federal, onde se requer, mais que um curso no exterior, reflexão e serenidade, em vez do açodamento e da empáfia que você exibe.



Perguntei a Sergio Bermudes como se haviam reconciliado. “Nunca falamos sobre isso até hoje”, respondeu. Contou que no primeiro encontro que tiveram, ambos palestrantes de um simpósio universitário, cumprimentaram-se como se nada tivesse acontecido. Depois, ele mandou um livro de presente; e Mendes mandou-lhe outro. A raiva virou amizade.



“O Gilmar e eu somos irmãos, nos falamos duas vezes por dia”, disse o advogado. “A gente brinca, ri, sou advogado dele em algumas questões. Somos dois homens de boa-fé e de caráter que podem suplantar uma eventual divergência.” A sua opinião profissional sobre o outro também melhorou: “Gilmar é o maior ministro que o STF já teve em todos os tempos. Trouxe a corte para junto do povo. Nenhum ministro falou tanto nem tão bem. Suas palavras fizeram o homem comum acreditar na Justiça. Ele é o maior constitucionalista do Brasil.”



Mendes e Guiomar já se hospedaram nos apartamentos de Sergio Bermudes no Rio, no Morro da Viúva, e em Nova York, na Quinta Avenida. Também usam a sua Mercedes-Benz, com o motorista. Logo depois da solenidade de transferência da presidência do Supremo para Cezar Peluso, Mendes e Guiomar embarcaram em uma viagem de cinco dias a Buenos Aires – presente de Sergio Bermudes, que os acompanhou.



Perguntei a Gilmar Mendes se não cogitara abdicar de julgar os processos do escritório de Sergio Bermudes que tramitam pelo Supremo – são dezenas, e ele é o relator de alguns. “De jeito nenhum”, ele respondeu. “Nesse caso também teria que me declarar suspeito nos processos do Ives Gandra, que escreveu livros comigo, e de outros advogados que são meus amigos.” Mas nem pelo fato de sua mulher trabalhar no escritório de Bermudes? “Isso não é motivo”, respondeu. Citei uma frase que ouvi do advogado Reginaldo de Castro: “O Gilmar dorme todo dia com embargos auriculares.” Mendes riu, desdenhoso.



Guiomar consultou o marido sobre a proposta de trabalho de Bermudes. “Ele não viu qualquer problema, e não há qualquer problema”, ela disse. “O ministro Marco Aurélio, por exemplo, não se declara suspeito quando a causa é do escritório Ulhôa Canto, onde trabalha sua filha.” Depois de uma tragada, complementou: “É verdade que o ministro Britto se declara suspeito no caso do genro, desde quando ele era namorado da filha, e que o Toffoli proibiu a namorada de atuar lá. Mas aí já é um exagero.”



Em sua sala na Fundação Getulio Vargas, de onde se tem uma vista deslumbrante do Pão de Açúcar, Joaquim Falcão lembrou um episódio ocorrido quando o presidente Barack Obama indicou Sonia Sotomayor para a Suprema Corte. Encarregado de avaliar a candidata, o Senado pediu que ela respondesse por escrito se haveria alguma situação em que teria dificuldades em julgar. Sotomayor respondeu que se declararia impedida em casos que envolvessem uma universidade, uma indústria e um escritório de advocacia com os quais tivesse mantido relações profissionais.



O professor da fgv citou também o caso do advogado Laurence Tribe, um dos que mais ganhou causas na Suprema Corte. Quando perguntaram a Tribe por que ganhava tantas causas, ele explicou que tinha o maior banco de dados sobre a vida de cada ministro, pessoal, profissional e política. Essas informações lhe permitam prever com segurança os votos de cinco juízes. Então, ele calibrava a arguição para os outros quatro. Com os olhos no cartão-postal carioca, Falcão disse: “O Sergio Bermudes tem, com certeza, o principal banco de dados sobre o Supremo.”



Falcão defendeu que o Judiciário enfrente sem pejo a questão, polêmica e complexa, da imparcialidade. Ele acha que deve acabar o “nepotismo processual”, o baseado nas relações entre os magistrados e os advogados. “No nepotismo processual, o prejudicado é a outra parte, aquela que não tem acesso às informações que uma relação de amizade e parceria profissional possibilita.”



Demitido pela Universidade de Brasília, aposentado compulsoriamente, e cassado pelo Ato Institucional nº 5, o professor e advogado Sepúlveda Pertence passou por um período ruim durante a ditadura. Sergio Bermudes o ajudou bastante, chegando a levar os filhos do amigo, Evandro e Eduardo, para morar consigo.



Com o fim do regime militar, Pertence foi nomeado ministro do Supremo, onde ficou dezoito anos. Evandro e Eduardo foram trabalhar com Sergio Bermudes. Quando casos do escritório chegavam ao tribunal, apesar de nenhuma lei ou regra obrigá-lo, ele se declarava suspeito e não os julgava. “Eu, o Nelson Jobim, o Ilmar Galvão e o Velloso tínhamos essa prática, que era exercida com discrição”, disse Pertence em Brasília, no escritório de Sergio Bermudes, onde ganhava como consultor 50 mil reais por mês, mais um percentual sobre os casos em que atuava. Num deles, uma sustentação oral no Superior Tribunal de Justiça, ganhou 4 milhões de reais. No começo de agosto, Pertence abriu em sociedade com os filhos seu próprio escritório.



Foi com Sepúlveda Pertence que o Supremo começou a sair do casulo, adquiriu presença pública e deu passos modernizantes, como a informatização. Entraram para os anais suas contendas com outro baluarte da casa, o conservador Moreira Alves. “Diante desse funk que vejo hoje, as minhas brigas com o Moreira parecem minuetos”, disse ele. Sepúlveda aposentou-se do Supremo três meses antes da data limite, novembro de 2007, quando completaria 70 anos. Como ele defendeu Lula quando era sindicalista, e é amigo do presidente, correu nos meios jurídicos que se aposentou antes para não se posicionar sobre o caso do “mensalão”, que envolvia o PT.



Mas isso não é verdade. Pertence saiu antes da data por cansaço e a pedido de Sergio Bermudes, um dos articuladores da indicação de Carlos Alberto Menezes Direito para o Supremo. Se fosse esperar o ministro sair na data devida, Direito teria feito aniversário (em 8 de setembro) e atingido a idade proibitiva para a indicação, 65 anos.



Numa conversa com o presidente, no começo de 2006, Lula perguntou a Pertence: “E aí, Zé Paulo, quem vai para a tua vaga?” O juiz citou o nome do constitucionalista Luís Roberto Barroso e o da prima distante, Cármen Lúcia. Mas Bermudes pediu por Menezes Direito. Nelson Jobim também o apoiou e Márcio Thomaz Bastos concordou com o pleito.



“O motivo da minha saída foi fazer uma homenagem ao Menezes Direito e a todos que patrocinaram a sua candidatura”, disse Pertence. “Ele não era o meu perfil, não seria o meu candidato, mas tinha excelentes relações pessoais. Eu vou sacrificar o sonho de um sujeito por causa de mais dia ou menos dia? Não achei que era justo, e saí.”



Filhos advogados é um tema delicado no Supremo e nos outros tribunais superiores. Dos ministros que já saíram, são mais conhecidos os casos dos filhos de Nelson Jobim, Sepúlveda Pertence, Ilmar Galvão, Carlos Velloso e Eros Grau. A praxe era pedir suspeição. Da composição atual, além de Marco Aurélio, há a filha da ministra Ellen Gracie.



Joaquim Barbosa entende que a suspeição não é suficiente. “Deveria ser simplesmente proibido até o parentesco de terceiro grau”, disse-me ele durante um café numa padaria chique de Higienópolis, em São Paulo. No caso de esposa, como Guiomar, que a lei não proíbe, Barbosa acha que Mendes deveria declarar-se suspeito.



Barbosa não esconde que detesta Sergio Bermudes e o casal Mendes. A recíproca é verdadeira. O advogado o considera “o pior ministro da história do Supremo”. Bermudes contou, às gargalhadas, que ouviu de um colega a “explicação verdadeira” para as dores de coluna de Joaquim Barbosa: “Ele quis virar bípede.” Para Guiomar Mendes, “o problema desse cabra é que ele é preguiçoso, preguiçoso de dar dó”. Mendes endossou o “preguiçoso” e acrescentou um “despreparado”.



Joaquim Barbosa não deixou por menos. Disse que Gilmar Mendes é “violento, atrabiliário e aparelhou o Supremo para seus interesses monetários e partidários”. Os dois sequer se cumprimentam. “O mais interessante é que nós fomos amigos por trinta anos, desde os tempos da faculdade”, contou Barbosa. Ele visitou Mendes na Alemanha, e até comprou um carro dele.



Joaquim Barbosa sabe que Mendes é um dos que divulgam uma história que o irrita muito – a de que não foi ele quem escreveu o seu voto como relator do mensalão, e sim Salise Sanchotene, à época sua juíza auxiliar. O ministro nega a história.



Barbosa chegou à padaria de Higienópolis com uma sacola verde de pano. Tirou de dentro uma almofada estampada sem muito enchimento, colocou-a na base da cadeira e sentou-se. Não reclamou de dor durante os 150 minutos do primeiro encontro, nem durante os 180 do segundo. “Estou achando que o tratamento está dando certo”, disse.



Fazia quatro semanas que estava hospedado num hotel ali perto, durante os dois meses de licença médica que tirou para cuidar da coluna. “Eu entrei no Supremo sem problema nenhum, era um atleta, jogava futebol, vôlei de praia”, contou. Vestido esportivamente – tênis, jeans, camisa de malha e casaco – o ministro estava com ótima aparência.



Em agosto de 2007, aproximando-se o julgamento do mensalão, caso do qual era relator, as dores aumentaram. “Não tinha nenhuma condição de proferir aquele voto sentado, pedi um púlpito, e o proferi em pé”, lembrou. “Foram 35 horas de julgamento, durante uma semana.”



O ministro não gosta de perguntas sobre a doença. Desconfia que Gilmar Mendes espalha que ele exagera. A doença tem nome? “Lombalgia crônica, com dor extremamente forte na L5-S1”, respondeu, falando de vértebras próximas ao cóccix. “Ela se espalha por toda a região glútea entre dez e quinze minutos depois que eu sento.”



Não foi a primeira vez que o ministro licenciou-se para tratamento, mas foi a primeira que tirou o benefício por um período tão grande, e, segundo ele próprio, inédito na casa. “Eu fico até chateado, porque sobrecarrega os demais”, disse. “Mas fazer um tratamento concentrado é o único jeito de curar”, afirmou. Lembrado que o ministro Celso de Mello também tem problemas sérios de coluna – está usando até cinta, e também fica no senta-levanta –, e nem por isso licenciou-se por tanto tempo, Barbosa comentou: “O ministro Celso está cometendo o mesmo erro que eu já cometi.”



Ele recebera naqueles dias um telefonema de Eros Grau, convidando-o para uma visita à sua casa. “Irei”, disse-me Barbosa. “Gosto do ministro Eros.” Os dois protagonizaram, no entanto, uma briga tremenda. Foi em agosto de 2008, quando ambos estavam em temporada no Tribunal Superior Eleitoral. Durante uma sessão, Grau enviou um e-mail ao colega dizendo que havia concedido um habeas corpus para o advogado Humberto Braz, ligado ao banqueiro Daniel Dantas. Barbosa perguntou, na resposta, se Grau estava “louco” para soltar um acusado de tentativa de suborno de um delegado da Polícia Federal. No intervalo da sessão, olharam-se feio. Grau disse, “com fingida exaltação”, segundo o relato de Barbosa, algo como “Olhe, não me chame de louco”. E ficou nisso.



No dia seguinte, no salão privativo de lanches do Supremo, Grau disse que o comentário do dia dos jornais era a liminar de Barbosa dando o direito de Daniel Dantas ficar calado na Comissão Parlamentar de Inquérito. Ou seja, Barbosa estava mais malfalado do que ele, Grau, que soltara Humberto Braz. “Mas que bobagem é essa, ministro Eros?”, reagiu Barbosa. Grau começou a se alterar, e o colega o cortou: “Você é mesmo um babaca, um velho patético, é tão ridículo que quer ir para a Academia Brasileira de Letras. Aprende primeiro a escrever!”



Barbosa também lembrou o bate-boca, em abril de 2009 – que até hoje é hit no YouTube – no qual disse em plenário a Gilmar Mendes: “Vossa Excelência não está falando com os seus capangas no Mato Grosso.” Explicou-me que a frase foi uma reação a “um ato de racismo. Ele quis me humilhar. Foi como se dissesse que eu não contava nada ali, tipo ‘você é negro, fique no seu lugar’”. Depois da discussão, os ministros Celso de Mello e Ayres Britto foram ao gabinete de Barbosa pedir que se retratasse. “Recusei”, contou ele. Grau e Mendes não quiseram rememorar as brigas. “Os problemas foram superados”, disse Grau. “Se você tivesse as dores que ele tem, implicaria até com pai e mãe.”



Joaquim Barbosa nasceu em uma família modesta. Concluir a faculdade de direito foi uma conquista para ele, que era arrimo de família. Graças a um concurso, tornou-se funcionário do Itamaraty, serviu por seis meses na embaixada brasileira na Finlândia e, na volta, tentou entrar para o corpo diplomático. Passou em todos os exames, mas foi reprovado na prova oral, segundo ele “por puro preconceito”. Fez um doutorado na Universidade de Paris, com tese sobre o Supremo Tribunal Federal (lá publicada, mas nunca traduzida para o português por desinteresse assumido do autor) e deu aulas, como professor visitante, em duas universidades americanas.



Pouco depois de ser eleito deputado federal pelo PT, em 2002, o advogado Luiz Eduardo Greenhalgh foi ao escritório de Márcio Thomaz Bastos, já sacramentado ministro da Justiça e em vias de tomar posse. Dizendo que falava em nome do presidente, Bastos lhe perguntou se queria ser ministro do Supremo Tribunal Federal. “Não quero, prefiro exercer o mandato e, sendo possível, ser o presidente da Comissão de Constituição e Justiça”, respondeu.



Greenhalgh foi um dos primeiros a ouvir Lula falar de Joaquim Barbosa. Estavam num avião, com dona Marisa e Antonio Palocci. “Vou indicar um negro para o Supremo”, disse Lula. “Se for só por ser negro, não é uma boa”, retrucou o advogado. Lula perguntou-lhe se conhecia Barbosa, que fora indicado por frei Betto. Não conhecia, mas foi investigar. Voltou ao presidente dias depois e contou que, numa briga de casal, Barbosa batera na mulher, ela prestara queixa na polícia e o caso rendera um processo. “As feministas do PT não vão gostar nada disso”, disse Greenhalgh ao presidente.



Lula lhe respondeu que já sabia da história e o problema fora contornado. Por intermédio de Thomaz Bastos, soube que a ex-mulher de Barbosa escrevera uma carta apaziguadora, atribuindo a briga que a levara à polícia a divergências naturais de um casal. Ao convidar Barbosa a integrar o Supremo, o presidente lhe disse: “A única restrição ao seu nome veio do Greenhalgh.” O advogado não gostou da história. “Lula queimou o meu filme com o Joaquim”, disse. “E o Joaquim só complicou o governo, como se viu no caso do mensalão. Bem feito!”



Na padaria, o ministro contou que já estava separado da mulher, mas viviam brigando pela guarda do filho. Numa discussão mais séria, ele puxou a criança do colo dela, ela teria reagido. “Ambos perdemos a cabeça”, disse. O boletim de ocorrência virou um processo. No Ministério Público Federal, onde Barbosa trabalhava, o parecer foi dado pelo procurador Cláudio Fonteles, mais tarde procurador-geral da República. Ele propôs o arquivamento, que foi aceito pela Justiça. “Não havia nada além de uma briga de casal perfeitamente compreensível”, disse o procurador, hoje aposentado, na sua casa do Lago Sul.



Na sabatina do Senado, a petista Serys Slhessarenko perguntou a Barbosa sobre a desavença com a mulher. Ele respondeu que era um fato superado, que envolveu a disputa pela guarda de um filho. A ex-mulher e o filho estavam presentes à sessão.



O primeiro palanque no qual Peluso subiu, horas depois de eleito presidente, em 10 de março, foi numa festa do site Consultor Jurídico, o Conjur. O palanque foi montado no salão principal do Supremo para comemorar o lançamento da edição de 2010 do Anuário da Justiça, publicado pelo site e pela Fundação Armando Álvares Penteado, a Faap. Mendes, Celso de Mello, Toffoli, Britto e Lewandowski estavam no tablado de honra com Peluso. Marco Aurélio circulou pelo salão, em meio a cerca de 300 pessoas, entre desembargadores, juízes, promotores e advogados de Brasília, do Rio e de São Paulo.



O Anuário é uma revista grossa que é produzida a um custo de cerca de 400 mil reais, bancados pela Fundação Armando Álvares Penteado. A tiragem é de 20 mil exemplares, dos quais 12 mil são distribuídos pela Faap em gabinetes de ministros, parlamentares, governadores e prefeitos. Ele funciona como um quem-é-quem do Judiciário, entremeado de anúncios de escritórios de advocacia. “O Anuário dá uma contribuição decisiva para conhecer o Poder Judiciário brasileiro”, disse Gilmar Mendes no seu discurso. “É jornalismo judicial especializado.”



O dono do Conjur e editor do Anuário é o jornalista Márcio Chaer, proprietário também de uma assessoria de imprensa, a Original 123. As empresas estão instaladas numa casa de três andares na Vila Madalena, em São Paulo. O site faz uma cobertura intensa e extensa dos eventos e decisões do Poder Judiciário. Chaer é amigo de Guiomar e Gilmar Mendes. Troca e-mails e telefonemas amiúde com o juiz.



A Faap responde a condenações e processos por crimes contra a ordem tributária e o sistema financeiro. Alguns desses processos estão no Supremo. A pessoa jurídica do Conjur, a Dublê Editorial, também tem processos tramitando no tribunal. “Não vejo problema nenhum de lançar o Anuário no Supremo”, disse Mendes. O primeiro lançamento foi feito em 2007, quando a presidente era a ministra Ellen Gracie. Ela se declara suspeita quando recebe processos que envolvam a Faap. Joaquim Barbosa acha “um escândalo” que o Anuário seja lançado no Supremo.



Chaer também não vê problemas: “O presidente da República não visita os jornais? É a mesma coisa. Além do mais, todo tribunal lança livros, e até a Suprema Corte tem uma livraria”, disse, mostrando um volume que comprou lá.



O professor de direito Conrado Hübner Mendes, doutor em ciência política pela Universidade de São Paulo e autor do livro Controle de Constitucionalidade e Democracia, tem outra opinião: “O Anuário pode até produzir informações de interesse público, mas não é isso que está em questão. Uma empresa privada não deveria ter o privilégio de ter seu produto promovido dentro do próprio tribunal. A integridade das instituições depende da separação entre o público e o privado.”



Em boa parte, os clientes da assessoria Original 123 são escritórios de advocacia. Teriam contratado a empresa pelo fato de Chaer ser amigo de Mendes e lançar o Anuário no Supremo? “De forma alguma, esses escritórios nem atuam no Supremo”, respondeu. E ligou em seguida para um funcionário da Original. “Quantos dos nossos clientes atuam no Supremo?”, perguntou. “Praticamente todos”, respondeu o funcionário. “Mas isso não quer dizer absolutamente nada”, esclareceu Chaer.



Quando era ministro da Justiça, Thomaz Bastos perguntou a Manuel Alceu Affonso Ferreira, um dos advogados mais respeitados de São Paulo, se queria ser ministro do Superior Tribunal de Justiça. Ferreira declinou. “Se tivesse vindo um convite para o STF, muito me envaideceria, mas também não aceitaria”, disse ele no seu escritório. “Não aceitaria porque jamais me submeteria a peregrinações prévias por gabinetes executivos e legislativos, em busca de apoios políticos. Digo isso sem reprovar aqueles que o fazem, ou fizeram – afinal, no mundo real, infelizmente, essa é a regra do jogo. A procura dos tais apoios, além de avessa à minha natureza, não me parece compatível com a independência entre os poderes e a dignidade do cargo.”



Manuel Alceu considera que num caso recente, de princípio, o Supremo teve uma atitude decepcionante. No ano passado, ele arguiu a inconstitucionalidade da censura a que O Estado de S. Paulo vinha sendo submetido há meses. Perdeu por 6 a 3. “Apesar do bálsamo dos votos dos ministros Ayres Britto, Celso de Mello e Cármen Lúcia, fiquei profundamente decepcionado com a decisão”, disse. “A petição foi rejeitada majoritariamente por tecnicalidades processuais equivocadas.” E voltou à mítica cena do ministro Adauto Lúcio Cardoso que, protestando por uma decisão favorável à censura da ditadura, teria tirado a toga e a arremessado longe. “A lembrança da heroica atitude do ministro Adauto, tomada em tempos autoritários, convencia-me de que agora, em ambiente democrático, se poria fim à arbitrariedade que vitimou e continua a vitimar o jornal paulista. Mas me enganei.”



Conhecido pela linguagem poética com que tempera seus votos, Ayres Britto é dos ministros que nunca esquecem que seis câmeras de televisão captam tudo o que acontece nas sessões plenárias. Talvez perca nisso apenas para o ministro Marco Aurélio, quase um profissional. Britto também é bom em elaborar frases com grande chance de repercutir nos jornais no dia seguinte. A última que fez sucesso, no julgamento do habeas corpus do governador José Roberto Arruda foi: “Infelizmente, há quem chegue às maiores alturas para cometer as maiores baixezas.”



“Os ministros são figuras midiáticas e têm que saber administrar essa notoriedade”, ele disse. “Eu não me sinto estrela, nem pop star, e nem assediado. Encaro com a maior naturalidade. Se me pedirem para tirar dez fotos, eu tiro as dez. Os ministros não são apenas julgadores, eles têm satisfações a dar ao público. É um dever se comunicar, desde que esse contato não resvale para o vedetismo e o culto da personalidade.” A última frase é um recado é para Gilmar Mendes? “Há um de nós que fala demais”, respondeu Ayres Britto, e foi em frente: “O Gilmar é agressivo, rude, provocativo. Usa uma linguagem que ofende as pessoas. E não há necessidade disso. Dá para combinar leveza e firmeza.”



Tomado por um espírito de crítica republicana, com a melhor das intenções, ele fez uma análise emocional do Supremo:



O que eu vejo aqui é certa competição surda, enrustida, latente, uma competitividade não assumida, que não tem sentido e é absurda. O Supremo não está a salvo de práticas reveladoras de uma certa pequenez de alma. Aqui e ali, um ou outro ministro precisa do confronto pessoal e da disputa de espaço para demarcar seu campo. Isso é meio mórbido. Quem chega a ministro do Supremo tem uma oportunidade tão maravilhosa de servir ao país que não tem o direito ao mau humor, quanto mais de viver às turras com os colegas, disputando espaços. Isso é absolutamente infantil.



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