RIO - Lisa Sanders é o Dr. House de saias. Não pelo mau humor, claro, mas por seu empenho para diagnosticar as raras doenças que acometem os pacientes. Lisa é clínica geral da Faculdade de Medicina da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, e consultora médica da série House, exibida no Brasil pelo Universal. Além disso, tem uma coluna sobre diagnóstico no "The New York Times Magazine". Em 2009, ela lançou o livro "Todo paciente tem uma história para contar", com relatos reais sobre as investigações feitas pelos profissionais de saúde para descobrir as mais difíceis doenças. Em cada história, um Dr. House diferente. No próximo domingo, ela participa da Bienal do Livro, na mesa Do sintoma ao drama, ao lado de Francisco Daudt.
Em entrevista ao GLOBO por e-mail, Lisa compara o clínico geral ao lendário detetive Sherlock Holmes, que deve seguir mesmos pistas desacreditadas para solucionar um caso. A escritora também fala sobre a importância da tecnologia nessa busca e da parceria que deve haver entre médicos e pacientes. Confira:
O GLOBO: A que você atribui o sucesso da série House?
LISA: Claro que Hugh Laurie desempenha muito bem seu trabalho. Realmente não consigo imaginar ninguém mais naquele papel. Ele traz muita profundidade ao personagem e tem aquela combinação de um ótimo humor e inteligência brutais. Acredito que David Shore e Paul Attanasio, os criadores da série reconhecem o potencial dramático nessas histórias. Diria que todo encontro entre um médico e um paciente é o começo de uma pequena história de mistério. Essa série deixa isso claro e as histórias são convincentes e emocionantes. Acho que o sucesso é porque conta uma história que ainda não havia sido contada.
O GLOBO: As histórias do seu livro são reais. E na série?
LISA: Tudo o que acontece em House aconteceu na vida real, mas geralmente e felizmente não com a mesma pessoa.
O GLOBO: Como aconteceu seu envolvimento com a série?
LISA: Paul Attanasio lia a minha coluna (no "New York Times") e pensou "por que não transformamos isso num programa de TV?" Ele fez a parceria com David Shore, que criou o personagem de House - baseado em Sherlock Holmes. Quando eles estavam com o programa piloto e o contrato com a emissora, Paul me telefonou e disse que tinha um programa no qual eu provavelmente teria interesse. E eu tinha.
O GLOBO: O médico precisa ser um detetive?
LISA: Sherlock Holmes, o primeiro detetive da ficção, foi criado com base no que o autor Arthur Conan Doyle viu em um médico que trabalhava com ele quando estava na faculdade de medicina na Escócia. Nem todos os médicos precisam ser detetives, mas o que Sherlock Holmes e outros detetives fazem reflete o que os médicos fazem. Acho que os médicos que querem dar um diagnóstico devem trabalhar como Sherlock Holmes, coletando pistas e provas e tentando juntar a história de um paciente, seus sintomas e, finalmente, chegando ao diagnóstico. Mas será que todos os médicos precisam ser detetives? Claro que não. Alguns - os clínicos gerais - precisam ser detetives porque precisam fazer o diagnósticos. Mas com muitos não são é assim. Suas especialidades envolvem tratamentos com medicamentos ou cirurgias, além de outros procedimentos. Mas, se você precisar de um diagnóstico, provavelmente terá que ir a um clínico geral. E este sim precisa ser um detetive.
O GLOBO: Em meio a tantas especialidades na medicina, qual a importância do clínico geral?
LISA: É ele que reúne todas as peças para dar o diagnóstico.
O GLOBO: Por que é tão difícil fazer um diagnóstico correto?
LISA: Na verdade, não é muito difícil dar um diagnóstico certo. Eu diria - e a maioria dos médicos concordaria - que é mais fácil fazer um diagnóstico certo agora do que era antigamente. Acho que programas como House dão a impressão de que há um universo de pacientes sem diagnóstico, mas na verdade a maioria dos pacientes recebe uma resposta certa rápida.
O GLOBO: Existem, na vida real, médicos como o Dr. House?
LISA: Realmente depende de qual aspecto do Dr. House você está falando. Provavelmente, há mais médicos do que eu gostaria de admitir com algum aspecto de irritabilidade como ele. Suspeito que esses profissionais são, na vida real, muito menos eficientes que o House da ficção. Se você se refere a médicos especialistas em diagnósticos difíceis, acredito que sim. Em geral, isso é o que os clínicos gerais devem fazer. Somos especialistas na medicina de todo o organismo e isso nos coloca na posição de fazer o diagnóstico. Quem é especialista em apenas um sistema - um cardiologista ou um nefrologista, por exemplo, - vai examinar um paciente e dizer: "não sei o que o paciente tem, mas o coração/ rim está bem". Isso ajuda, mas não é suficiente.
O GLOBO: Você tem medo de que a medicina esteja perdendo sua capacidade de dar diagnósticos corretos?
LISA: De jeito nenhum. Somos mais capazes de diagnosticar uma doença difícil do que éramos antes. Agora, rotineiramente descobrimos e tratamos doenças que por séculos só eram diagnosticadas na autópsia. Nunca antes nós havíamos tido tantas ferramentas úteis com as quais fazer um diagnóstico e outras tantas poderosas para tratá-las.
O GLOBO: Até que ponto você acredita que os avanços da tecnologia colaboram para um diagnóstico apropriado e até que ponto eles atrapalham?
LISA: Esta é uma boa pergunta. Claro que o aperfeiçoamento da nossa capacidade de dar um diagnóstico vem, pelo menos em parte, da tecnologia com a qual podemos contar na investigação de uma doença. E muito do nosso conhecimento também veio da tecnologia. Mas quando confrontados com um paciente que está doente, talvez até mesmo morrendo, cabe a nós, médicos, descobrir o que está acontecendo. A tecnologia, quando não é apropriadamente usada, pode atrapalhar por nos dar muitas informações inúteis e não as informações cruciais suficientes. A tecnologia não é nada mais do que centenas de testes individuais compilados. Mas quando se trata de desvendar um enigma complexo, às vezes o mais é menos útil do que o menos. Uma pergunta respondida corretamente é muito mais útil do que todas elas respondidas de forma errada.
O GLOBO: Em uma parte do livro, você discute o exame físico e diz que ele está morto. Qual a sua importância e como trazê-lo de volta à prática médica?
LISA: O exame físico pode proporcionar aos médicos informações potencialmente úteis. No mínimo, ele nos ajuda a entender onde está o problema. No máximo, nos dá a resposta à grande pergunta: "O que está errado?" Então trata-se de uma habilidade essencial. Não sei se há uma forma de trazê-lo de volta, mas acho que se os médicos novos vissem seus professores usando o exame físico e se eles pudessem ter um modelo de como usá-lo, isso o salvaria. Como fazer isso acontecer é que eu não sei. Uma questão importante que devemos assumir, no entanto, é avaliar os componentes do exame físico e descobrir o que é útil e o que é uma perda de tempo. Antes da era da tecnologia, os médicos acreditavam que qualquer coisa é melhor que nada, e eles deviam estar certos. Agora nós temos tecnologia para investigar as suspeitas levantadas por nossos exames. Precisamos descobrir quais partes do exame são úteis e nos levam com segurança para as pistas físicas reais.
O GLOBO: Como o paciente pode ajudar o médico na busca pelo diagnóstico?
LISA: Pacientes devem contar suas histórias mesmo que pareça que os médicos não valorizam isso. Na maioria das vezes, a história do paciente guiará o médico para o diagnóstico correto. Estudos mostraram que em 75% a 80% das vezes o diagnóstico correto foi dado depois que o médico simplesmente ouviu a história da pessoa.
O GLOBO: Você acredita que é mais difícil hoje confiar no médico?
LISA: Acredito que seja difícil construir uma relação com um médico nesse pouco tempo que os médicos têm para ver os pacientes. Então sim, eu acho que pode ser mais difícil confiar em seu médico. Hoje em dia, médicos e pacientes realmente não se conhecem como costumava acontecer.
O GLOBO: Você acredita que um bom diagnóstico também considera o estado emocional do paciente?
LISA: Certamente. É difícil imaginar alguém que não tenha sentimentos com relação ao fato de estarem doentes. Muitas pessoas têm sentimentos fortes sobre isso, o que influencia a forma como elas contam suas histórias para o médico. Por exemplo, eu tive um paciente - um amigo - que me ligou e perguntou se eu prescreveria um remédio para ele porque achava que estava com asma. Por que ele achou isso? Porque quando ele subia um morro, sentia um aperto no peito e dificuldade para respirar. Naquela época, tinha um bom preparo físico, tinha 50 e poucos anos, e eu disse a ele que era muito improvável que ele desenvolvesse asma com aquela idade. Além disso, dor no peito e falta de ar depois de esforço físico me pareceram menos sintomas de um problema de pulmão e mais algo com o coração. Ele não queria acreditar. Seu pai havia morrido de ataque cardíaco mais ou menos na mesma idade que ele tinha e meu amigo havia se empenhado para assegurar que aquilo não aconteceria com ele: comia bem, fazia exercícios regularmente. Ele foi ao cardiologista. E, sim, tinha um problema no coração. Agora está melhor. Mas estou certa de que as impressões daquele homem sobre uma doença cardíaca tornaram difícil para ele enxergar a doença por conta própria. Sintomas causam sensações, impresões. Estar doente, muitas vezes, desperta sentimentos fortes. E se você for ajudar alguém, tem que estar disposto a lidar não apenas com seu corpo, mas com os seus sentimentos também.
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