"A cultura popular é permeada com idéias que a variedade erótica é perigosa, doentia, depravada, e uma ameaça a tudo desde pequenas crianças até segurança nacional. A ideologia sexual popular é uma sopa nociva de idéias de pecado sexual, conceitos de inferioridade psicológica, anti-comunismo, histeria de massa, acusação de bruxaria, e xenofobia. A grande mídia sustenta essas atitudes com implacável propaganda". (RUBIN, Gayle. Pensando o Sexo: Notas para uma Teoria Radical das Políticas da Sexualidade, p.15 [PDF])
No último mês, depois de acompanhar o blog “Cem homens“, escrito pela Letícia Fernandez, pude comprovar tudo isso aí que a Gayle Rubin está descrevendo. Letícia fala de sexualidade com leveza, sem preconceitos. Porém, dizer que faz sexo casual e que gostaria de fazer sexo com cem homens em um ano gerou diversas ondas de reações e comentários extremamente grosseiros e sem noção.
Nos comentários que Letícia divulga no Tumblr ou no twitter fica nítida uma mentalidade tacanha, machista, que acha que sexo casual é perigoso (associado a doenças), e que exercer a sexualidade por meio de sexo casual (e não dentro de um casamento heterossexual e monogâmico) é doença, depravação, fim dos tempos. Ao mesmo tempo, os homens a assediam grosseiramente, como se ela não tivesse vontade própria e só existisse para atender às fantasias deles.
E agora, temos a mídia se interessando pelo blog. Alguns pela curiosidade. Outros, como a Globo, atuando para criticar a vida sexual de Letícia (e a minha e a sua também).
O moralismo da Globo
Na semana passada a Globo colocou uma chamada no site G1 comparando Leticia com a Bruna Surfistinha (pra quem não se lembra, uma ex-prostituta). Em comum, elas têm blog e falam sobre sexo. Porém, os leitores entenderam que Letícia seria uma prostituta, e lotaram blog e caixa de e-mail com uma nova enxurrada de comentários grosseiros.
Porém, o horror maior aconteceu hoje. A rádio Globo transmitiu uma entrevista com uma mulher que se passou por Letícia. Como se não bastasse a mentira, os entrevistadores foram extremamente grosseiros. O áudio da entrevista já foi tirado do ar, mas pode ser ouvido aqui.
A entrevista em si é péssima, feita para zombar da entrevistada. Leticia é apresentada como uma jornalista baiana que quer se tornar a nova Bruna Surfistinha. Ele pergunta não só a idade dela, mas se “está tudo no lugar” [afinal, mulher só faz sexo se for bonita; e ainda tem aquele mito de que muito sexo faz o corpo da mulher desabar]. A co-apresentadora pergunta se Letícia cobra pra transar [mulher fazendo sexo casual ainda é visto como vadiagem, prostituição!], e como que ela irá provar que “deu pra cem” [como se Letícia tivesse de prestar contas pra alguém]. O apresentador pergunta se no blog tem o endereço pra quem quiser transar com ela entrar em contato [como se ela fosse uma boneca inflável à disposição dos caras, sem escolha alguma]. E finaliza dizendo “tem maluco pra tudo” [pra quê educação e neutralidade jornalística, né?]
O esclarecimento da rádio Globo, por sua vez, não esclareceu nada. Pior, demonstrou completa falta de noção de geografia e preconceito contra nordestinos. Afinal, ouviram dizer (sabe-se lá onde) que Letícia seria nordestina e, por isso, entraram em contato com uma rádio nordestina (Nordeste é uma cidade ou uma região? Quantas rádios existem no Nordeste???) que apresentou uma suposta assessora de imprensa de Letícia. Mandar e-mail para o endereço que está no blog, pelo visto, é mais difícil do que entrar em contato com uma das várias rádios do Nordeste.
Isso obviamente não é jornalismo. É moralismo do pior tipo. Com o defeito de atingir milhões de pessoas, propagando mais preconceito. A Globo teve duas oportunidades de falar sobre o blog de Letícia; nas duas vezes, foi preconceituosa. A Globo agora resolveu mudar uma abertura de novela antiga porque ela não é compatível com os padrões morais atuais do país. No entanto, a Globo tem poder suficiente para ditar novos padrões morais, menos conservadores. Nem parece que é a emissora que criou Malu Mulher, Quem Ama não Mata, TV Mulher.
Pra saber mais sobre a Letícia, é melhor ler a entrevista feita pela Verônica Mambrini. Fica bem claro que tem uma mulher de verdade, inteligente e com ideias interessantes escrevendo o blog. Ela não é reduzida a uma vagina querendo cumprir meta, como a falsa entrevista do Globo faz parecer.
Marcha das Vadias
Não é à toa que a Marcha das Vadias tem ocorrido em diversos lugares. As mulheres estão dizendo o tempo todo “parem de querer ditar como eu devo agir em relação à minha sexualidade“. Em resposta, a mídia diz – e incentiva – exatamente o contrário: “se você quer definir o que vai fazer com sua sexualidade, eu vou te desmoralizar até você se adequar ao meu padrão de castidade“.
E aí eu volto ao início do post: como vamos mudar essa cultura machista que destrói a sexualidade das mulheres? Como parar com o tanto de comentários e agressões gratuitas infernizando a vida de uma mulher só porque ela quer fazer sexo casual e exercer sua sexualidade livremente?
Letícia não é só um pseudônimo no blog. Ela é cada uma de nós: uma mulher que todo dia luta pra exercer sua sexualidade da forma que desejar sem ser xingada ou punida por isso.
Publicado no blog de Cynthia Semíramis
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