Prezada Sra. Waldvogel,
A semana que passou foi particularmente pesada para as pessoas que,
como aquele amigo ao qual a senhora se refere no vídeo que tive a
infelicidade de assistir hoje pela manhã, consideram a bicicleta como um
meio de transporte, de vida saudável e de desenvolvimento urbano
sustentável. Dois desses risíveis sonhadores – um com 21 e outro com 41
anos – foram atropelados e mortos em menos de 24 horas. O primeiro
vítima de um motorista embriagado, e o segundo supostamente de um
caminhoneiro que dormiu ao volante.
Em ambos os casos, podemos argumentar que as mortes foram
acidentais, já que ninguém, por mais embriagado ou sonolento que esteja,
desejaria matar uma pessoa. Logicamente que isso não exime a
responsabilidade dos motoristas, e muito menos traz de volta à vida os
ciclistas mortos. Mas fica, lá no fundo, aquela sensação de que se os
condutores estivessem em pleno domínio de suas faculdades mentais, tudo
poderia ter sido evitado.
Entra em cena – literalmente – o vídeo mencionado acima. Depois de
assistí-lo várias vezes – primeiro para ter certeza de que aquilo que eu
pensei ter ouvido realmente foi dito, e depois para ter certeza de que
não foi desdito – minha primeira reação foi torcer para que o que vi
tenha sido uma infelicidade de edição, daquelas em que só nos é mostrado
o conteúdo podre, visando confundir a percepção do ouvinte ou
prejudicar a imagem do interlocutor. Se esse for o caso, minha
retratação virá prontamente – assim que o conteúdo integral for
apresentado.
Se não for, então me vejo obrigado a estender um pouco essa
cartinha, não tanto com a pretensão de que a senhora chegue a recebê-la,
mas mais como catarse. Afinal, com os dois ciclistas que morreram eu só
posso falar em pensamento. Para os familiares deles, não teria
palavras. Mas para as suas declarações, e principalmente para o seu
comportamento enquanto elas foram feitas, eu tenho muitos pensamentos,
muitas palavras, e nenhum impedimento para externá-los.
Em primeiro lugar, a senhora deixa claro que em sua opinião a
bicicleta não é um meio de transporte. Aí vem minha primeira dúvida: se
eu vou de casa para o trabalho de bicicleta, como fazem milhares de
pessoas por opção ou necessidade no Brasil e outros milhares mundo
afora, e ela não é um meio de transporte, o que é então – além é claro
de um obstáculo no caminho de motoristas bêbados, sonolentos e
apressados? Ou de motivo de ironias, chacotas e piadas em rodinhas de
bate-papo de gente inteligente e valente como a senhora, que munida
apenas de um Ipod enfrenta engarrafamentos gigantescos?
Enquanto a sua resposta não vem, eu tenho a minha, inspirada nesse mesmo vídeo.
A bicicleta é a muleta do ciclista, que por sua vez é um animal com
necessidades especiais de locomoção. Para esse animal, o carro, que
seria a opção in, não serve. Ele realmente tem necessidades
especias, tipo fazer exercício, sentir o vento no rosto, contribuir com o
desenvolvimento urbano sustentável (eu sei, eu sei, isso é uma ameaça
séria para os amantes de engarrafamento, mas….), diminuir a conta de
combustível (eu sei, eu sei, quem pode comprar um Ipod nem sabe o preço
do litro da gasolina, mas….) e outras tolices de eco-chatos e demais
formas de existência nocivas ao bem estar do cidadão comum.
Na verdade, se a bicicleta não for isso, seria ótimo que passasse a
ser. Porque nesse caso, de cara, duas coisas ótimas iriam acontecer:
1) na qualidade de portadores de necessidades especiais de
locomoção, os ciclistas teriam direto à vagas privilegiadas em
supermercados, bancos, escolas e nas ruas. E a partir daí a polícia não
precisaria mais ser mobilizada para arrombar cadeados de bicicletas
presas a postes de luz;
2) na qualidade de animais, os ciclistas passariam a ser protegidos
por associações, instituições e similares, e poderiam trafegar pelas
ruas sentindo-se assimilados pela comunidade ao invés de expurgados.
Mas, francamente, não tenho muitas ilusões a esse respeito. Como a
senhora mesmo diz, “já imaginou hi hi hi um bando de paulistanos ho ho
ho indo trabalhar de bicicleta rá rá rá?” É, não dá pra imaginar. Se
isso acontecesse, o Brasil – ou São Paulo ao menos – transformar-se-ia
subitamente numa Amsterdam, numa Copenhagen ou numa Minneapolis – que
como todos sabemos são lugares de péssima qualidade de vida, haja visto a
probabilidade cada vez menor de engarrafamentos (onde escutar música
então, oh céus??). E quem, em sã consciência, poderia desejar isso?
Alias, “como a senhora mesmo diz” é realmente o grande motivo que
me traz ao teclado. Monica Waldvogel, quer eu concorde, goste, acredite
ou não, é uma formadora de opinião. E como tal, suas palavras tem um eco
que vai além do seu universo particular. O que é dito por formadores de
opinião vai adiante, vai fundo, e principalmente hoje em dia, vai
rápido. Ergo, pessoas que assistiram ao seu singular e risonho
depoimento acerca da total inutilidade da bicicleta como meio de
transporte, e por consequência da imbecilidade de quem insiste em
utilizá-la como tal, podem acabar influenciadas por esses seus
(pre)conceitos.
E se isso acontecer, a senhora para mim é responsável por delito
muito maior do que os atropelamentos acima. A senhora, ao ridicularizar o
ciclismo como movimento urbano digno de respeito, atropelou não um, nem
dois, mas centenas de milhares de indivíduos que usam a bicicleta por
prazer ou necessidade. Sabe por que? Por que estava (até que se prove em
contrário) sã! Passava no teste do bafômetro, não parecia sonolenta, e
muito menos arrependida do que falou. A senhora atropelou o ciclismo e
todos os ciclistas brasileiros olhando para uma câmera de televisão,
sabendo que estava sendo filmada, e depois, rindo esganiçada, deu a ré e
passou por cima de novo.
O seu trunfo é um só: ao contrário dos motoristas, cujo mal foi
feito e não pode mais ser desfeito, a senhora tem como voltar atrás. Não
precisa mudar de opinião – não é esse o ponto. A senhora pode, deve, e
tem todo o direito de defender-se de engarrafamentos e da chuva dentro
de um carro sequinho com som ambiente. Mas reforçar essa verdade e esse
direito não implica em fazer daqueles que optam por pedalar em duas
rodas a céu aberto – mesmo correndo o risco de tomar chuva (éca!) –
motivo de chacota.
Acredito que o mundo seja grande o bastante para que cada um tenha
garantido o seu espaço e o respeito às suas preferências. Olhando para a
linha do tempo e ao redor do nosso espaço, imagino que os animais com
deficiência de locomoção apoiados sobre suas muletas de duas rodas –
esses bípedes defeituosos porém teimosos – acabarão transformando seu
universo à imagem, por exemplo, da Holanda. Lá serão felizes, indo e
vindo sob o sol ou sob a chuva, com seus meios-de-seja-lá-o-que-for.
Já os membros da sua seita – seres que precisam apoiar-se em quatro rodas
sob pena de morrerem estagnados - os poderosos e
indestrutiveis quadrúpedes – serão eternamente felizes em lugares como
Bangladesh, Cidade do Cairo ou – para que ir tão longe afinal - a
marginal Pinheiros em 2012 num dia de chuva.
Amanhã, apesar do medo, da tristeza e de um certo inconformismo,
vou pedalar. Quem sabe quando voltar para casa não encontrarei na caixa
de mensagens um outro vídeo seu, que embora não traga de volta os
ciclistas mortos terá o poder indescritível de restaurar a dignidade que
as suas palavras e atitudes roubaram daqueles que ficaram e dos que
ainda virão.
Sem mais,
Maximilian Frederick Leisner
Ciclista amador, pai de família e, por hora, cidadão inconformado
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Aos que desejarem ver o vídeo mencionado acima na íntegra, basta
digitar “Waldvogel saia justa” em uma ferramenta de busca. Aqui essa
barbaridade não vai aparecer de jeito nenhum
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