Com a morte do extraordinário líder sul-africano que implodiu o apartheid, desaparece também um personagem cada vez mais raro em nosso tempo: alguém capaz de mudar o mundo ao lutar por uma ideia, mesmo que as circunstâncias conspirem contra ela
Amauri Segalla
Nelson Mandela
1918 - 2013
1918 - 2013
Em 1983, o diretor da cadeia de Pollsmoor,
em Cape Town, na África do Sul, fez a seguinte declaração sobre um de
seus prisioneiros: “De tão imponente, ele parece ter uns três metros de
altura. É impossível não notar os ombros firmes, o olhar penetrante, a
postura ereta. Fica a maior parte do tempo em silêncio, mas quando fala
dá a impressão de dizer coisas importantes. Não se assemelha a nenhum
outro homem que eu jamais tenha visto, e acho que nunca conhecerei
alguém como ele. Lembra mais um chefe de Estado. Um rei, para dizer a
verdade.” O preso em questão, identificado pelo número 46664, atendia
pelo nome de Nelson Rolihlahla Mandela e já era, mesmo no cárcere, a
principal voz da humanidade contra a segregação racial. Ao implodir o
apartheid, o regime de exclusão concebido pela minoria branca da África
do Sul, Mandela se tornaria algo ainda maior: ele foi provavelmente o
último herói de nosso tempo. Morto na quinta-feira 5, aos 95 anos, num
momento em que o mundo em geral e o Brasil em particular gritam por
mudanças, o ex-detento sul-africano provou, com seu perene combate
contra o racismo, que vale a pena lutar por uma ideia, mesmo que as
circunstâncias conspirem contra ela.
O extraordinário na biografia de Mandela é
que ele se tornou uma voz mundial, embora tenha passado 27 anos dentro
de um presídio, período equivalente a quase um terço de sua vida adulta.
O fantástico na trajetória de Mandela é que ele venceu a guerra contra o
racismo sem o uso da violência, e eis aqui um ponto em comum com as
pregações pacíficas do indiano Mahatma Gandhi. O espetacular na vida de
Mandela é ser eleito presidente aos 76 anos sem jamais ter ocupado outro
cargo público e lançar a partir daí as bases de uma nova democracia.
“Mandela mostrou para o mundo que a humanidade é capaz de superar os
desafios mais intransponíveis”, disse à ISTOÉ o cientista político
sul-africano Ralph Mathekga. “Ele viveu de acordo com os ideais mais
elevados.”
O que distingue Madiba, o nome tribal pelo
qual Mandela era conhecido em seu país, de outros mitos? Para começo
de conversa, ele deixou uma obra acabada e não a meio caminho, como
sucedera a tantos ícones. O argentino Che Guevara morreu antes de
realizar a utopia de uma América sem diferenças. Símbolos da luta
antirracial, os americanos Martin Luther King e Malcolm X desapareceram
cedo demais para levar adiante o sonho de uma sociedade igual para
brancos e negros. Entre os vivos, não há substitutos nem sequer
candidatos à altura de Mandela. O presidente dos Estados Unidos, Barack
Obama, apresentou-se como um revolucionário em um país de alma
conservadora, mas hoje é uma decepção até para os negros. Na África do
Sul, ninguém ousou lançar-se como sucessor de Mandela, nem mesmo nos
altos escalões políticos, nem mesmo no seu universo familiar. Ao
sacrificar uma vida inteira pelo ideal da igualdade, o ex-prisioneiro
foi tão verdadeiro quanto único e a dimensão de seu legado talvez só se
compare, na era moderna, à de outro gigante, o indiano Mahatma Gandhi,
mártir da independência de seu país. Como Gandhi, Mandela ganhou, em
vida, a aura de santo, mas aqui é preciso fazer uma ressalva. Mais do
que um ser político, Gandhi era um líder espiritual, propagador de uma
corrente que defendia o amor extremo pelo próximo e a busca implacável
pela verdade suprema. Seus discursos carregados de mensagens filosóficas
conquistaram milhões de seguidores, e não só na Índia. Gandhi parecia
ser e agia, de fato, como um santo – e foi assim que ele fundou o Estado
moderno indiano. Mandela jamais teve intenções religiosas e não estava
preocupado em salvar a alma de ninguém. Sua abordagem era outra: o
combate incansável contra a segregação racial na África do Sul – e no
resto do mundo.
Longe de ser santo, Mandela foi um homem de
contradições. O jornalista americano Richard Stengel conviveu com o
sul-africano durante três anos e dessa experiência nasceu o livro “Os
Caminhos de Mandela”. A obra é fascinante por desnudar o líder
antirracista. Adepto tenaz da não violência, Mandela defendeu na
juventude a resistência armada contra os brancos opressores. Na vida
privada, o ex-presidente era frio com pessoas próximas, embora fosse
sensível com todos os outros. Como pai, economizava sinais de afeto, mas
com desconhecidos era capaz de demonstrar rara gentileza. Oferecia a
mão a qualquer um que o abordasse e exibia genuíno interesse pela
pessoa, só que jamais soube o nome dos seguranças que zelavam pela sua
vida enquanto era chefe de Estado. Era um homem do povo e ao mesmo tempo
desfrutava da companhia de celebridades. Ao visitar aldeias isoladas,
não se importava em comer com as mãos, mas em almoços com líderes
mundiais ofuscava os convivas com sua postura aristocrática.
Passar 27 anos na prisão deixa marcas
indeléveis em qualquer um, inclusive em gigantes como Mandela. Até
adoecer, conservou manias adquiridas no cativeiro. Acordava sempre antes
do amanhecer e então se dedicava a duas horas de exercícios físicos.
Depois, revigorava-se com um banho de sol. Antes dessa rotina, arrumava
meticulosamente a cama, mesmo que estivesse hospedado em hotéis que
pagam camareiras para fazer esse tipo de serviço. Quando perguntado
sobre os motivos que o levavam a dobrar cobertores e colocar
travesseiros e lençóis em ordem, respondeu que era “apenas um homem
habituado a disciplinas”. O efeito mais perverso da prisão, declarou
anos depois de ganhar a liberdade, foi ter sido privado da convivência
com crianças. Mandela tinha verdadeira adoração por elas. Gostava de
ouvi-las sobre os assuntos da nação e pedia a assessores que agendassem
visitas a escolas. Ao fim de uma conversa com um jovem estudante,
despedia-se sempre da mesma forma: “Estou muito honrado em conhecê-lo.”
Era um sentimento sincero de quem foi privado, pelos brancos que o
mantiveram cativo, de conviver com os próprios filhos.
A magia de Mandela está, em boa medida, em
sua retidão moral, e de novo vale lançar a pergunta: há alguém no mundo
de hoje que mereça tal reconhecimento? A resposta é provavelmente não.
Um dado maravilhoso na vida de Mandela é sua recusa em se vingar de seus
opressores. Coloque-se na pele de alguém que passou quase três décadas
na cadeia apenas por defender uma ideia e você certamente pensará em
destruir os tiranos que arruinaram a maior parte dos seus dias. Mandela
não pensava dessa maneira. Ao sair da cadeia e iniciar a caminhada rumo à
Presidência, ele resistiu aos insistentes pedidos de membros radicais
do partido Congresso Nacional Africano (ANC, na sigla em inglês), que
exigiam a desforra contra os brancos racistas. “Não é hora de guerra, é
chegado o momento da paz”, pregava o maior líder negro de todos os
tempos, numa linguagem messiânica que o marcaria para sempre. Mas
Mandela não falava isso, digamos, apenas por ter a alma pura. Dotado
daquele tipo de sagacidade que só os grandes líderes possuem (“Mandela é
mais esperto que todo o Congresso americano junto”, disse, meio de
brincandeira, meio a sério, o ex-presidente americano Bill Clinton,
quando questionado sobre o que achara do presidente sul-africano, em
1995), Mandela percebeu que, quisessem os negros ou não, ele precisava
do apoio dos brancos para chegar ao poder, e foi assim que acalmou os
ânimos mais exaltados. “A importância de Mandela está no fato de levar
toda uma nação a se reconciliar com o seu passado e não fazer
julgamentos com base na cor da pele”, afirmou à ISTOÉ Georgina
Alexander, pesquisadora do Instituto Sul-Africano de Relações Raciais.
“Ele mostrou que uma pessoa pode perdoar aqueles que lhe fizeram mal, e
nisso acho que serviu de exemplo para o mundo inteiro.”
Em uma entrevista concedida logo após se
tornar o primeiro presidente negro da África do Sul, Mandela foi
questionado sobre o que o manteve firme no propósito de jamais abandonar
a luta contra o apartheid. “Mais de uma vez, me ofereceram a liberdade,
desde que eu entregasse o passaporte e fugisse para outro país, para
nunca mais voltar para a África do Sul”, contou Mandela. “Eu poderia ter
ficado metade do tempo que passei na cadeia, mas estaria traindo meus
irmãos. Traição é uma palavra que na minha aldeia não existe.” Por mais
que tenha ganhado o mundo, Mandela jamais deixou de ser um homem, enfim,
apegado a raízes tribais. Ele nasceu no pequeno vilarejo de Mvezo, na
província de Cabo Oriental, filho de um conselheiro importante da
comunidade. O mais inteligente de 12 irmãos, seu caminho inevitável era
virar chefe da aldeia, mas a clareza de ideias e propósitos o levou a
posições mais elevadas. Aos 7 anos, entrou na escola e se tornou o
primeiro membro da família a ser alfabetizado – numa sina espetacular,
ele foi quebrando barreiras e passou a ser, como que empurrado pelo
destino, pioneiro em diversas fases da vida. Foi o primeiro negro de
Cabo Oriental a entrar na universidade (matriculou-se no curso de
direito) e, já formado, o primeiro a trabalhar em uma firma de
advocacia.
Desde cedo, Mandela jamais aceitou a condição de cidadão de segunda classe imposta pelos brancos. Em 1943, aos 25 anos, deparou-se com uma cena que mudaria sua vida para sempre. Em Johannesburgo, viu, num final de tarde, um aglomerado de negros diante de um açougue, à espera de restos de carne que seriam arremessados pelos brancos. Nesse dia, teve a certeza de que seu papel no mundo seria fazer o impossível para acabar com aquele horror. Ingressou no Congresso Nacional Africano, partido que prega o fim do apartheid, e logo se viu que Mandela seria um líder brilhante. Fez discursos, organizou encontros, angariou simpatizantes para a luta contra o racismo. Apesar da disposição beligerante de alguns de seus parceiros, recusou-se a adotar a violência como estratégia válida. Mas fez isso até certo ponto. “Nós adotamos a atitude de não violência só até onde as condições permitiram”, lembraria Mandela anos depois. “Quando as condições foram contrárias, abandonamos essa posição.” Por condições contrárias, entendam-se os atentados perpetrados pelos brancos, que culminaram na morte de inúmeros colegas seus. Decidido a partir para o tudo ou nada, Mandela viajou para a Etiópia, onde recebeu treinamento militar durante dois meses. De volta à África do Sul, planejou ações de sabotagem contra alvos militares, mas seus projetos fracassam. Em 1964, foi preso sob a acusação de trair o país e sentenciado à prisão perpétua.
Desde cedo, Mandela jamais aceitou a condição de cidadão de segunda classe imposta pelos brancos. Em 1943, aos 25 anos, deparou-se com uma cena que mudaria sua vida para sempre. Em Johannesburgo, viu, num final de tarde, um aglomerado de negros diante de um açougue, à espera de restos de carne que seriam arremessados pelos brancos. Nesse dia, teve a certeza de que seu papel no mundo seria fazer o impossível para acabar com aquele horror. Ingressou no Congresso Nacional Africano, partido que prega o fim do apartheid, e logo se viu que Mandela seria um líder brilhante. Fez discursos, organizou encontros, angariou simpatizantes para a luta contra o racismo. Apesar da disposição beligerante de alguns de seus parceiros, recusou-se a adotar a violência como estratégia válida. Mas fez isso até certo ponto. “Nós adotamos a atitude de não violência só até onde as condições permitiram”, lembraria Mandela anos depois. “Quando as condições foram contrárias, abandonamos essa posição.” Por condições contrárias, entendam-se os atentados perpetrados pelos brancos, que culminaram na morte de inúmeros colegas seus. Decidido a partir para o tudo ou nada, Mandela viajou para a Etiópia, onde recebeu treinamento militar durante dois meses. De volta à África do Sul, planejou ações de sabotagem contra alvos militares, mas seus projetos fracassam. Em 1964, foi preso sob a acusação de trair o país e sentenciado à prisão perpétua.
Na prisão, Mandela jamais se submeteu aos
opressores. Recusou-se a entregar os nomes de militantes do CNA e, por
isso, sofreu constantes ameaças de morte. De simples rebelde, seu nome
passou a ser celebrado como um destemido defensor dos negros, mas com
uma diferença notável em relação ao discurso dos outros: Mandela
enxergou na paz – e no respeito mútuo entre brancos e negros – a única
saída para o futuro da África do Sul. “Assim, Mandela passa a ser tão
aclamado por aqueles que estão no poder quanto pelos oprimidos”, diz
Thabo Mpakanyane, analista político sul-africano. Nesse aspecto,
Frederik de Klerk, o último branco a presidir o país, teve um papel
exemplar. Ele percebeu a posição ao mesmo tempo firme e moderada de
Mandela e viu nele um possível sucessor para ceifar as tensões raciais.
Em 1990, depois de forte pressão internacional, Mandela deixou a prisão.
Em 1993, ganhou o Nobel da Paz por sua defesa do diálogo permanente, a
despeito da cor da pele. Em 1994, foi eleito o primeiro presidente negro
da história da África do Sul, reforçando a sina de ser um pioneiro em
vários momentos da vida. Como líder máximo da África do Sul, Mandela
cumpriu a promessa de sepultar a segregação e com isso consolidou uma
democracia plena, algo ainda hoje incomum no continente africano. Alguns
meses antes de morrer em sua casa em Johannesburgo, para onde havia
sido levado no dia 1º de setembro após passar quase três meses internado
para tratamento de uma infecção pulmonar, Mandela afirmou que não temia
o fim. “Fiz tudo o que podia para o meu país”, disse o maior herói de
nosso tempo. O que, verdade seja dita, não foi pouco.
Colaborou Mariana Queiroz Barboza
fotos: JURGEN SCHADEBERG; ALEXANDER JOE, LLUIS GENE - afp; Lefty Shivambu/ Pretoria News/afp; WALTER DHLADHLA
fotos: Keystone/Getty Images; ALEXANDER JOE/afp; Gideon Mendel/Corbis; GERRY PENNY/afp; Jurgen Schadeberg
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