sábado, 18 de outubro de 2014

A simplicidade descolada, coxinhas 2.0 e o novo neoconservadorismo

Diga adeus a nomes de pratos requintados e ornamentais da culinária francesa, se despeça de bikes de alta performance, abandone esportes de elite. Agora prefira osso buco e rabada, bicicletas caloi 10 dos anos 1970 reformadas e peladas regadas a cervejas artesanais. O coxinha evoluiu para a sua versão “sustentável”: a simplicidade descolada. Eles são os novos tradicionalistas, uma simplicidade estudada e “descolada”, isto é, de grande valor agregado no mercado cultural. Sua psicografia é hoje explorada pelo marketing tanto político como de consumo – ele aspira a simplicidade, pureza e renovação, muito mais por atitudes do que por ações. Por isso, é campo fértil para crescer o neoconservadorismo: a aversão à Política como algo complicado e, por isso, suspeito e corrupto.

Assim como os Pokemons evoluem para se adaptar melhor às batalhas nos game cards, da mesma forma o chamado “coxinha” parece ter evoluído para fazer frente às críticas e rejeições que sempre marcaram a sua cena social: evoluiu para a “simplicidade descolada”, um novo tipo humano aparentemente mais “consciente”, antenado e sintonizado aos novos tempos mais politicamente corretos e sustentáveis.

Essa sua nova roupagem, esse verdadeiro coxinha 2.0 é o protagonista de uma série de programas da grande mídia e seguido por um séquito de fiéis jovens que se distribuem em inúmeras áreas onde exibem seus requintados gostos pela “simplicidade”: gastronomia, bebidas, futebol, bicicletas, moda etc.


Ele pode parecer à primeira vista inofensivo pela sua simplicidade e despojamento nos seu modo de trajar, gostos e opiniões, mas não se engane: como o termo desse novo espécime da fauna urbana designa, sua simplicidade é descolada, quer dizer, meticulosamente estudada nos seus efeitos. Por isso acumulou um grande capital cultural (ajudado pela grande mídia que o celebriza diariamente) o que acabou, paradoxalmente, convertendo-se num signo de distinção. A simplicidade torna-se cara e valorizada no mercado cultural.

Rodrigo Hilbert: a simplicidade
descolada na cozinha
Como veremos abaixo, essa simplicidade descolada se manifesta cultural e esteticamente pelo gosto ao retro e de hábitos culturais do passado, mas não num sentido criativamente irônico e debochado como fazia o pastiche dos pós-modernos. Agora, é no sentido do apego ao tradicional. Eles são os novos tradicionalistas.

Politicamente, manifesta-se no novo tipo de conservadorismo: o da anti-política, por achar a política muito complicada e, por isso, obscura, suspeita e, por isso, corrupta.

O simples descolado aspira pela simplicidade por ver nela pureza e inocência.

A nova gastronomia descolada


Diga adeus a chefes franceses, nomes de pratos rebuscados e a gastronomia ornamental. Osso buco, rabada, dobradinha, pertences de feijoada outrora rejeitados como língua e orelha entram em cena como requintadas iguarias.

Rodrigo Hilbert é o melhor exemplo dessa simplicidade descolada. Modelo, ator e figurinha carimbada no glamour das festas em publicações sobre celebridades, em sua programa na GNT Tempero de Família Hilbert bravamente maneja panelas de ferro, fogões a lenha e churrascos de fogo de chão antes de uma pelada regada a cerveja com os amigos – amizade é uma dessas coisas simples da vida.

Jeans (variando para bermudas cargo), camiseta, sandálias havaianas e barba estudadamente por fazer compõem essa tipologia do simples descolado.

Como Hilbert diz, era fascinado pela “comidinha” (o diminutivo é sempre importante no léxico desse espécime urbano-midiático, como, por exemplo, “bistrozinho”) da sua avó na infância em Santa Catarina, e, por isso, acabou se apegando à simplicidade da cozinha brasileira.

Expressões como armazém ou empório passam a designar com um ar retro mercados com produtos de alto valor agregado como produtos naturais, vegans, casas de queijos, vinhos ou pequenos mercados hortifrúti “orgânicos” para a classe média alta – coisas naturais e simples, porém, bem caras.

Felicidade está na simplicidade


A simplicidade descolada almeja a felicidade
através da pureza e inocência
Rapidamente o marketing capturou essa tendência do simples descolado. “O que faz você pra ser feliz?”, pergunta a rede Pão de Açúcar, com um jingle cantado por Clarice Falcão - ela própria uma musa dos simples descolados, com um jeitinho tímido e com um look de brechó. Rende o seu tributo musical ao estilo que inspira os simples descolados: a música indie-folk norte-americana.

Como os comerciais do Pão de Açúcar mostram, a felicidade está na simplicidade (correr, tomar chuva, rir de qualquer coisa etc.) e a decoração das lojas da rede dizem simbolicamente isso com cenários das lojas simulando rusticidade e os entregadores  com boina francesa tradicional pedalando bicicletas com baú dianteiro, emulando os entregadores do comércio de início do século XX.

Mas, é com o comercial do Itaú que a simplicidade descolada adquire tons mais épicos: “#issomundaomundo”, vemos em hashtag na comunicação do banco. O mundo mudará a partir de ações simples e básicas como andar de bike, contar estórias para crianças ou ouvir música. Aliás, a verdadeira música que agrada o simples descolado é a ideia de que cada uma faz a sua parte nas coisas simples do dia-a-dia.

E por que isso soa como música? Por que é simples e básico, sem a obrigação  do simples descolado ter de se comprometer em ações coletivas de transformação como militância política. No máximo um like no Facebook ou a confirmação em um evento na rede social do qual se esquecerá no próximo post. Ele passou a ser um “agente de mudança” porque “tomou uma atitude”.

“Eu fiz a minha parte”

Mudar o mundo é
uma coisa simples?

“Eu fiz a minha parte” é o mantra da simplicidade descolada, repetido para qualquer tema que exija posicionamento como meio ambiente, política, trânsito etc. Por um lado foge da pecha de alienado por supostamente ter consciência da pauta dos grandes problemas sociais e, ao mesmo tempo, se esconde nas supostas pequenas ações que mudam o mundo, como se o Todo fosse a simples soma das partes – bom... mais aí discutir isso é muito complicado para um simples descolado.

Podemos especular que a simplicidade descolada é uma reação das classes médias à ascensão da chamada classe C ao consumo de itens  antes restritos como o automóvel, restaurantes, shoppings e aeroportos. Se agora os novos egressos na sociedade de consumo almejam ostentar marcas e grifes, as classes médias reagem ao tornar desejáveis a simplicidade, o básico e o consumo “consciente”.

Essa simplicidade meticulosamente requintada e estudada já conta com guardiões de controle de qualidade  da "tradição" da simplicidade como, por exemplo, em reality shows gastronômicos na TV como MasterChef da Band ou Cozinheiros em Ação do GNT. Cozinheiros amadores são desafiados a fazer pratos populares como galinhada goiana, moqueca de pirarucu ou risoto caipira e julgados por chefs famosos que passam a ditar o padrão de qualidade da “simplicidade”.

Numa grande manobra etimológica, o popular torna-se “tradicional”, como uma nova commoditie de grande valor agregado no mercado cultural.

A psicologia da simplicidade descolada


Simplicidade descolada: campo fértil
para a anti-política
O ponto de partida do perfil psicográfico do simples descolado é o desejo por pureza, bondade e simplicidade infantil, ingênua e dependente. Aspira por renovação, positividade, se reinventar e entrar na terra prometida. Ele possui um sentido místico de unidade (obviamente explorado pela comunicação do Itaú com a filosofia do “faça sua parte” para mudar o mundo) onde a inocência vem de valores de integridade e não da experiência com o mundo externo. Ele quer ter apenas uma “atitude”, apenas “ser” e não fazer.

Por isso torna-se o campo fértil onde germina a semente das soluções aparentemente simples: o discurso da corrupção, a hostilidade à política, a panaceia da sustentabilidade como ideia que renovaria o mundo, o apego às novas tecnologias onde tudo possa ser resolvido à distância com apenas um clique.

O problema é que o simples descolado, embora pareça ser antenado e crítico, desconhece que por trás dessas soluções simples subjaz um mundo público da complexidade, das lutas, correlações de forças e interesses bem concretos de classes e corporações. Assim como por trás das brilhantes interfaces descoladas dos gadgets tecnológicos existe uma batalha cibernética entre códigos fontes e algoritmos entre grupos que lutam pelo controle e poder.

Concluindo, esse novo tipo urbano, hoje tão paparicado pelo marketing político e de consumo, é mais uma mutação do conservadorismo que, afinal, sustenta todos os sistemas. Nos anos 1970 tivemos o tipo alienado: aquele que simplesmente ignorava a política em pleno momento da ditadura militar e das perseguições e torturas. Preferia consumir a disco music ou qualquer novidade da cultura pop importada dos EUA.

 Nos anos 1980, tivemos os Yuppies: jovens profissionais urbanos ambiciosos, materialistas e consumistas. Tinham uma posição politica até clara – o ultra-neo-liberalismo representado por Ronald Reagan, Margaret Thatcher e Rambo, personagem cinematográfico do Silvester Stallone.

Nos anos 1990 surgem os Mauricinhos com suas camisetas Lacoste. Apoiavam FHC e as políticas de privatizações para garantir o sonho da telefonia móvel e da Internet discada...

Chegando aos 2000, vimos o surgimento dos Roberts, loucos por celebridades e o desejo de ver e ser visto, produto psicográfico da era dos reality shows.


E agora vemos a ascensão dos coxinhas e a sua rápida evolução “sustentável”: a simplicidade descolada.

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