Criada há sete anos como resposta a um escândalo no Ministério da Saúde, a Hemobrás já consumiu mais de R$ 130 milhões e até hoje não conseguiu produzir nada
Lúcio Vaz
ESQUELETO
Após sete anos de criação, apenas 2,9% da fábrica da Hemobrás foi construídaEm 2004 os brasileiros se assombraram com a descoberta de uma modalidade de corrupção que há anos se instalara no Ministério da Saúde: uma quadrilha formada por funcionários de diversos escalões e grandes laboratórios fraudava licitações e o governo comprava derivados de sangue para distribuição a hospitais públicos e doentes carentes com um sobrepreço superior a 100%. Para evitar que casos como esse, que ficou conhecido no Brasil como a Máfia dos Vampiros, voltasse a ocorrer, o governo decidiu, com a aprovação do Congresso, criar a Hemobrás, uma estatal dedicada à produção de hemoderivados. Passados sete anos, o projeto já consumiu pelo menos R$ 138 milhões, emprega cerca de 90 pessoas, financiou mais de 40 viagens ao Exterior a seus executivos – sendo 26 delas apenas para Paris –, não produziu uma só gota de derivados de sangue e teve apenas 2,9% das obras de construção de sua fábrica construída. Ou seja, no lugar da Hemobrás se tem uma Hemograna, um esquema que suga dinheiro público há quase uma década.
No Tribunal de Contas da União encontram-se alguns elementos que ajudam a explicar como a Hemobrás se transformou em Hemograna. Ao longo dos últimos anos, por quatro vezes o TCU contestou contratos firmados entre a estatal e seus fornecedores. Na maior parte dos casos, as ações de fiscalização do tribunal encontraram indícios de sobrepreço, que se transformariam em superfaturamento caso os contratos fossem cumpridos. Ainda na primeira fase de construção da fábrica de Goiana (PE), que irá produzir 500 mil litros de plasma por ano quando estiver em pleno funcionamento, o TCU anulou duas concorrências. De acordo com o tribunal, foram encontrados indícios de restrição à competitividade entre os concorrentes e sobrepreço. Com isso, as obras só foram licitadas em 2009, um ano antes da previsão inicial da conclusão da fábrica.
Mesmo assim, a Hemobrás decidiu licitar a segunda parte da construção, orçada em mais de R$ 269 milhões. No mês passado, antes mesmo de os operários iniciarem as obras, mais uma vez o TCU encontrou irregularidades. De acordo com o tribunal, um dos contratos estava superfarturado em R$ 21 milhões e determinou a revisão em toda a planilha de preços para evitar prejuízo aos cofres públicos. A Hemobrás, por sua vez, diz que, antes mesmo de conhecer o resultado da auditoria, já havia revisado a planilha, reduzindo o valor do contrato em R$ 8,6 milhões. O resultado pode ser ainda mais atraso.
“Vou trabalhar em uma empresa de biotecnologia,
ela não terá contrato com a Hemobrás”
Márcia Mazzoli, ex-secretária executiva do Ministério da Saúde
e recém- contratada pelo fornecedor francês da HemobrásComo se não bastassem os casos clássicos de superfaturamento em contratos com empreiteiras, a Hemobrás também chamou a atenção do TCU por um termo aditivo que, senão inédito, bastante raro. A Hemobrás, sem consultar os órgãos reguladores, simplesmente aprovou um aditivo que ampliou de R$ 9 milhões para incríveis R$ 230 milhões um contrato firmado em 2007 com o laboratório francês LFB. Além disso, a estatal simplesmente mudou o objeto do contrato original, sem realizar nova licitação, como determina a lei. Pelo acordo original, a LFB receberia os R$ 9 milhões para fornecer a tecnologia para fracionamento do sangue, o processo básico para a produção de hemoderivados. No aditivo, além de receber R$ 220 milhões a mais do que o previsto inicialmente, os franceses ficaram responsáveis eles mesmos por fracionar o sangue.
Também rara, senão inédita, foi a conclusão a que o relator do processo, o ministro Aroldo Cedraz, chegou ao analisar o caso. Para ele, o acréscimo de 2.700% no contrato representa, a princípio, “afronta à Lei de Licitações”, mas o resultado prático de uma nova tomada de preços “provavelmente seria o mesmo”, ou seja, a contratação do laboratório francês. Com isso, aprovou o aditivo, apesar de os técnicos do TCU afirmarem que existem “indícios de que o aditamento não encontra amparo na Lei 8.666/93”.
Em meio a esse turbilhão de problemas com os órgãos fiscalizadores, os executivos da Hemobrás parecem ter dedicado boa parte do seu tempo de trabalho conhecendo experiências internacionais no setor de hemoderivados. Ao longo dos sete anos de vida da Hemobrás, funcionários ou representantes da empresa realizaram ao menos 40 viagens ao Exterior para conhecer fábricas de hemoderivados ou fechar contratos. A França, sede da empresa que foi contratada pela Hemobrás, foi a que mais atraiu a atenção dos executivos da estatal. Ao menos 26 viagens a Paris foram pagas com dinheiro público aos servidores. A ex-secretária executiva do Ministério da Saúde Márcia Mazolli ficou tão ligada ao país da “Marselhesa” e à empresa que fechou contrato com a Hemobrás que até decidiu abandonar o governo. Márcia agora vai dividir seu tempo entre a França e o Brasil. Ela foi contratada pela Cell for Cure, uma empresa que, apesar do nome anglófono, é francesa de origem e faz parte do mesmo grupo que é dono da LFB, a fornecedora da Hemobrás. Apesar de tantas coincidências incômodas, Márcia não vê nenhum problema em assumir um posto no mesmo grupo que obteve um termo aditivo de 2.700% com a estatal brasileira. “É uma empresa de biotecnologia, é outra área, não terá contratos com a Hemobrás”, justifica a ex-servidora.
Criada há sete anos como resposta a um escândalo no Ministério da Saúde, a Hemobrás já consumiu mais de R$ 130 milhões e até hoje não conseguiu produzir nada
Lúcio VazESQUELETO
Após sete anos de criação, apenas 2,9% da fábrica da Hemobrás foi construída
Em 2004 os brasileiros se assombraram com a descoberta de uma modalidade de corrupção que há anos se instalara no Ministério da Saúde: uma quadrilha formada por funcionários de diversos escalões e grandes laboratórios fraudava licitações e o governo comprava derivados de sangue para distribuição a hospitais públicos e doentes carentes com um sobrepreço superior a 100%. Para evitar que casos como esse, que ficou conhecido no Brasil como a Máfia dos Vampiros, voltasse a ocorrer, o governo decidiu, com a aprovação do Congresso, criar a Hemobrás, uma estatal dedicada à produção de hemoderivados. Passados sete anos, o projeto já consumiu pelo menos R$ 138 milhões, emprega cerca de 90 pessoas, financiou mais de 40 viagens ao Exterior a seus executivos – sendo 26 delas apenas para Paris –, não produziu uma só gota de derivados de sangue e teve apenas 2,9% das obras de construção de sua fábrica construída. Ou seja, no lugar da Hemobrás se tem uma Hemograna, um esquema que suga dinheiro público há quase uma década.
No Tribunal de Contas da União encontram-se alguns elementos que ajudam a explicar como a Hemobrás se transformou em Hemograna. Ao longo dos últimos anos, por quatro vezes o TCU contestou contratos firmados entre a estatal e seus fornecedores. Na maior parte dos casos, as ações de fiscalização do tribunal encontraram indícios de sobrepreço, que se transformariam em superfaturamento caso os contratos fossem cumpridos. Ainda na primeira fase de construção da fábrica de Goiana (PE), que irá produzir 500 mil litros de plasma por ano quando estiver em pleno funcionamento, o TCU anulou duas concorrências. De acordo com o tribunal, foram encontrados indícios de restrição à competitividade entre os concorrentes e sobrepreço. Com isso, as obras só foram licitadas em 2009, um ano antes da previsão inicial da conclusão da fábrica.
Mesmo assim, a Hemobrás decidiu licitar a segunda parte da construção, orçada em mais de R$ 269 milhões. No mês passado, antes mesmo de os operários iniciarem as obras, mais uma vez o TCU encontrou irregularidades. De acordo com o tribunal, um dos contratos estava superfarturado em R$ 21 milhões e determinou a revisão em toda a planilha de preços para evitar prejuízo aos cofres públicos. A Hemobrás, por sua vez, diz que, antes mesmo de conhecer o resultado da auditoria, já havia revisado a planilha, reduzindo o valor do contrato em R$ 8,6 milhões. O resultado pode ser ainda mais atraso.
No Tribunal de Contas da União encontram-se alguns elementos que ajudam a explicar como a Hemobrás se transformou em Hemograna. Ao longo dos últimos anos, por quatro vezes o TCU contestou contratos firmados entre a estatal e seus fornecedores. Na maior parte dos casos, as ações de fiscalização do tribunal encontraram indícios de sobrepreço, que se transformariam em superfaturamento caso os contratos fossem cumpridos. Ainda na primeira fase de construção da fábrica de Goiana (PE), que irá produzir 500 mil litros de plasma por ano quando estiver em pleno funcionamento, o TCU anulou duas concorrências. De acordo com o tribunal, foram encontrados indícios de restrição à competitividade entre os concorrentes e sobrepreço. Com isso, as obras só foram licitadas em 2009, um ano antes da previsão inicial da conclusão da fábrica.
Mesmo assim, a Hemobrás decidiu licitar a segunda parte da construção, orçada em mais de R$ 269 milhões. No mês passado, antes mesmo de os operários iniciarem as obras, mais uma vez o TCU encontrou irregularidades. De acordo com o tribunal, um dos contratos estava superfarturado em R$ 21 milhões e determinou a revisão em toda a planilha de preços para evitar prejuízo aos cofres públicos. A Hemobrás, por sua vez, diz que, antes mesmo de conhecer o resultado da auditoria, já havia revisado a planilha, reduzindo o valor do contrato em R$ 8,6 milhões. O resultado pode ser ainda mais atraso.
“Vou trabalhar em uma empresa de biotecnologia,
ela não terá contrato com a Hemobrás”
Márcia Mazzoli, ex-secretária executiva do Ministério da Saúde
e recém- contratada pelo fornecedor francês da Hemobrás
Como se não bastassem os casos clássicos de superfaturamento em contratos com empreiteiras, a Hemobrás também chamou a atenção do TCU por um termo aditivo que, senão inédito, bastante raro. A Hemobrás, sem consultar os órgãos reguladores, simplesmente aprovou um aditivo que ampliou de R$ 9 milhões para incríveis R$ 230 milhões um contrato firmado em 2007 com o laboratório francês LFB. Além disso, a estatal simplesmente mudou o objeto do contrato original, sem realizar nova licitação, como determina a lei. Pelo acordo original, a LFB receberia os R$ 9 milhões para fornecer a tecnologia para fracionamento do sangue, o processo básico para a produção de hemoderivados. No aditivo, além de receber R$ 220 milhões a mais do que o previsto inicialmente, os franceses ficaram responsáveis eles mesmos por fracionar o sangue.
Também rara, senão inédita, foi a conclusão a que o relator do processo, o ministro Aroldo Cedraz, chegou ao analisar o caso. Para ele, o acréscimo de 2.700% no contrato representa, a princípio, “afronta à Lei de Licitações”, mas o resultado prático de uma nova tomada de preços “provavelmente seria o mesmo”, ou seja, a contratação do laboratório francês. Com isso, aprovou o aditivo, apesar de os técnicos do TCU afirmarem que existem “indícios de que o aditamento não encontra amparo na Lei 8.666/93”.
Em meio a esse turbilhão de problemas com os órgãos fiscalizadores, os executivos da Hemobrás parecem ter dedicado boa parte do seu tempo de trabalho conhecendo experiências internacionais no setor de hemoderivados. Ao longo dos sete anos de vida da Hemobrás, funcionários ou representantes da empresa realizaram ao menos 40 viagens ao Exterior para conhecer fábricas de hemoderivados ou fechar contratos. A França, sede da empresa que foi contratada pela Hemobrás, foi a que mais atraiu a atenção dos executivos da estatal. Ao menos 26 viagens a Paris foram pagas com dinheiro público aos servidores. A ex-secretária executiva do Ministério da Saúde Márcia Mazolli ficou tão ligada ao país da “Marselhesa” e à empresa que fechou contrato com a Hemobrás que até decidiu abandonar o governo. Márcia agora vai dividir seu tempo entre a França e o Brasil. Ela foi contratada pela Cell for Cure, uma empresa que, apesar do nome anglófono, é francesa de origem e faz parte do mesmo grupo que é dono da LFB, a fornecedora da Hemobrás. Apesar de tantas coincidências incômodas, Márcia não vê nenhum problema em assumir um posto no mesmo grupo que obteve um termo aditivo de 2.700% com a estatal brasileira. “É uma empresa de biotecnologia, é outra área, não terá contratos com a Hemobrás”, justifica a ex-servidora.
Também rara, senão inédita, foi a conclusão a que o relator do processo, o ministro Aroldo Cedraz, chegou ao analisar o caso. Para ele, o acréscimo de 2.700% no contrato representa, a princípio, “afronta à Lei de Licitações”, mas o resultado prático de uma nova tomada de preços “provavelmente seria o mesmo”, ou seja, a contratação do laboratório francês. Com isso, aprovou o aditivo, apesar de os técnicos do TCU afirmarem que existem “indícios de que o aditamento não encontra amparo na Lei 8.666/93”.
Em meio a esse turbilhão de problemas com os órgãos fiscalizadores, os executivos da Hemobrás parecem ter dedicado boa parte do seu tempo de trabalho conhecendo experiências internacionais no setor de hemoderivados. Ao longo dos sete anos de vida da Hemobrás, funcionários ou representantes da empresa realizaram ao menos 40 viagens ao Exterior para conhecer fábricas de hemoderivados ou fechar contratos. A França, sede da empresa que foi contratada pela Hemobrás, foi a que mais atraiu a atenção dos executivos da estatal. Ao menos 26 viagens a Paris foram pagas com dinheiro público aos servidores. A ex-secretária executiva do Ministério da Saúde Márcia Mazolli ficou tão ligada ao país da “Marselhesa” e à empresa que fechou contrato com a Hemobrás que até decidiu abandonar o governo. Márcia agora vai dividir seu tempo entre a França e o Brasil. Ela foi contratada pela Cell for Cure, uma empresa que, apesar do nome anglófono, é francesa de origem e faz parte do mesmo grupo que é dono da LFB, a fornecedora da Hemobrás. Apesar de tantas coincidências incômodas, Márcia não vê nenhum problema em assumir um posto no mesmo grupo que obteve um termo aditivo de 2.700% com a estatal brasileira. “É uma empresa de biotecnologia, é outra área, não terá contratos com a Hemobrás”, justifica a ex-servidora.
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