domingo, 19 de junho de 2011

Para quem é a Copa?



Governo assume praticamente todos os custos para realizar a competição e, enquanto empresários e construtoras têm acesso a generosos recursos públicos, áreas como saúde, educação e moradia seguem carentes de investimentos


Daniel Santini e Gisele Brito



Itaquera, zona leste de São Paulo. Vera Lúcia Márcila tem 54 anos e uma tosse que não passa. Ela caminha de um lado para o outro cobrindo a boca com um lenço e tossindo enquanto espera por mais de 1 hora só para conseguir se cadastrar na unidade de Assistência Médica Ambulatorial (Ama). Depois, ainda terá que aguardar para ser atendida. Não dá nem para sentar, todas as 40 cadeiras disponíveis na sala de espera estão ocupadas. “Muitos desistem, né? Mas vou ficar aqui até conseguir”, diz, resignada. “Às vezes, a gente chega para a consulta e o médico nem olha para a nossa cara, só pergunta o que a gente tem e já vai logo passando o remédio.”


Não são poucos os problemas do bairro. A um quarteirão do ambulatório, uma pracinha com brinquedos enferrujados e mato a uma altura de 40 centímetros resume o estado de abandono da região e a falta de atenção do poder público. E é em Itaquera que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) deve investir nos próximos anos pelo menos R$ 400 milhões, dinheirama que deve vir acompanhada por pelo menos R$ 420 milhões em incentivos fiscais, segundo proposta do prefeito Gilberto Kassab. Leia-se: impostos, que poderiam ser revertidos em melhorias para a cidade, deixarão de ser arrecadados. Ou seja,  os milhões reservados não serão para contratar mais médicos ou ajudar a situação de moradores como Vera Lúcia. O investimento total de verbas públicas, que pode passar de R$ 1 bilhão, será todo para a construção do Fielzão, como é chamado o estádio do Corinthians, um clube privado.


A situação é emblemática e ajuda a entender a preparação para a Copa do Mundo de 2014 no Brasil. Os investimentos públicos reservados para a realização do evento devem passar de R$ 23 bilhões – mais do que o dobro do que o Governo Federal gastou com todos os programas de assistência social do País no ano passado.


Tal aporte será concentrado nas principais capitais. Regiões que precisam de verbas não receberão um tostão. Não passou de ilusão o discurso de que a iniciativa privada bancaria a competição, repetido reiteradas vezes por Ricardo Teixeira, presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), em 2006. A previsão de investimentos privados é de 1,4% do total.






Para justificar o encaminhamento de bilhões dos cofres federais, estaduais e municipais, na maior parte na forma de empréstimos e financiamentos de bancos públicos, para a organização de um evento privado, os envolvidos insistem que a competição atrairá investimentos diretos e indiretos, e será importante para a melhoria de infraestrutura urbana. Quem acompanha as finanças de competições, porém, entende que não é assim que a preparação tem sido conduzida. “A construção de um legado só tem sentido se o planejamento for adequado às cidades. É preciso aproveitar o evento para melhorar a cidade e não adaptar as cidades para melhorar o evento, que é o que está acontecendo”, diz Erich Beting, diretor da revista especializada em marketing esportivo “Máquina do Esporte” e professor da Trevisan Escola de Negócios. “É o mesmo que aconteceu na África do Sul (Copa do Mundo de 2010), em Atenas (Olimpíada de 2004) e em Sidney (Olimpíada de 2000). Usaram o discurso do legado para trazer o evento, mas, na prática, não souberam aproveitar”, afirma, apontando Barcelona (Olimpíada de 1992) como um bom exemplo de planejamento. “A prefeitura pensou do início ao fim o evento como um projeto para melhorar a cidade. Não adianta pensar em soluções apenas para a Copa, mas sim em soluções permanentes”, ressalta o especialista.


Os problemas não se resumem à falta de critérios na liberação de investimentos. Em alguns casos, em vez de ajudar a melhorar as condições de vida da população, tais verbas estão causando problemas. Segundo o dossiê apresentado pela Relatoria Especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para o Direito à Moradia, as obras da Copa do Mundo têm em muitos casos resultado na expulsão de moradores pobres.


Além da moradia, em poucas áreas a falta de planejamento e o improviso com que tanto dinheiro tem sido liberado é tão evidente quanto na de mobilidade urbana. O Tribunal de Contas da União (TCU), órgão responsável pela fiscalização dos recursos públicos, chamou a atenção para o problema em um relatório recente assinado pelo ministro Aroldo Cedraz.


Ele destaca no texto a “precariedade do planejamento dos municípios e da deficiência da integração dos planos das cidades com os das regiões onde influem”, lamenta a falta de dados para determinar as necessidades no setor e conclui que fica “patente que as intervenções federais estão sendo aprovadas sem delineamento preciso da situação existente no País”. Trata-se de uma “situação ainda mais preocupante quando se considera a já mencionada alta
materialidade dos investimentos realizados, que cresceram vertiginosamente, a partir de 2010, em decorrência das contratações relativas à Copa do Mundo de 2014, aos Jogos Olímpicos de 2016 e ao PAC 2 – Mobilidade Grandes Cidades”.




Em vez de reforçar a fiscalização e o cuidado na liberação de tantos recursos como defende o TCU, os governantes têm aberto os cofres e procurado flexibilizar ou eliminar a necessidade de licenças e processos licitatórios, mecanismos criados para diminuir as chances de desvios e corrupção.


A possibilidade de estádios, aeroportos e as demais adaptações de infraestrutura não serem concluídas a tempo é um argumento comumente utilizado para atropelos. “Existem tentativas de flexibilização das legislações urbanísticas, ambiental e de todas as regras do direito administrativo. As obras continuam atrasadas, o tempo passa e a pressão aumenta. Falam agora inclusive em eliminar licitações. Em todas as cidades-sedes isso está acontecendo”, diz Juliana Leite, do Observatório de Políticas Públicas. Ela cita o exemplo de Curitiba, no Paraná, para exemplificar como tal flexibilização se dá. “A prefeitura vai ceder R$ 90 milhões em um mecanismo chamado ‘potencial construtivo’ para viabilizar as obras da Arena da Baixada. Este é um mecanismo criado para viabilizar reformas urbanas, obras que tem a ver com melhorar a democratização do acesso à cidade. Não é o caso. E isso acontece sem licitação ou concorrência”, afirma.


Frente ao descontrole na liberação de recursos públicos movimentos sociais de todo País começam a se articular para cobrar mais transparência. Organizações como o próprio Observatório de Políticas Públicas têm unido esforços para pressionar as autoridades. “A questão é grave, estamos falando do aporte bilionário de recursos públicos. Serão construídos estádios que se tornarão verdadeiros elefantes brancos. Cidades como Manaus ou Natal não tem nem times na Série A do Campeonato Brasileiro, por que precisam de estádios tão grandes?”, questiona Joviano Mayer, que, de Minas Gerais, integra o recém-criado Comitê Popular dos Atingidos pela Copa. “O pobre vai poder ir no estádio? Não, porque os ingressos são caríssimos. Os mais baratos, dos amistosos, são R$ 50. Não faz sentido. Se é dinheiro público, por que não investir em escolas ou hospitais?”, completa. “Com marketing estão tentando maquiar o que está acontecendo. Na realidade, há diversas comunidades pobres sendo removidas por obras da Copa e diversas violações de direitos humanos. Moradores de rua têm sofrido agressões para deixarem as regiões centrais e ambulantes e trabalhadores informais são perseguidos”, conclui Mayer.


Em Itaquera, pertinho do futuro estádio do Corinthians, famílias que vivem na Favela da Paz aguardam apreensivas. A Secretaria Municipal de Habitação tem planos de desapropriar 300 imóveis em um processo de reurbanização e os moradores devem ser despejados. “Já participamos de reuniões e ninguém diz qual será o nosso destino. Até o presidente do Corinthians Andrés Sanchez veio dizer que o estádio vai dar alegria para uns e tristeza para outros e que o compromisso dele é com a construção do estádio e que nosso destino é de responsabilidade da Prefeitura”, conta o Eduardo da Silva, de 43 anos, morador da comunidade há 12 anos.

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