Ontem, no julgamento do HC126292, o STF alterou sua jurisprudência no sentido de possibilitar a execução de pena de privação da liberdade apenas com a prolação da decisão de segunda instância, ou seja, antes do trânsito em julgado da decisão condenatória.
Tal decisão contraria de forma clara e intensa o direito fundamental à presunção de inocência previsto no inciso LVII do art. 5 de nossa Constituição, que, como cláusula pétrea que é, nem por emenda constitucional poderia ser suprimido ou ter seu âmbito de incidência amesquinhado.
Além de agredir nossa Constituição, a decisão do STF contraria diversos Tratados Internacionais subscritos pelo Brasil.
Em declaração pública, o Procurador Geral da República defendeu a decisão não com argumentos jurídicos, mas com o pífio argumento fático de que a equivocada decisão seria um fator de redução da impunidade.
O conceito de impunidade, tão presente em nosso senso comum, em geral não encontra supedâneo racional nos fatos, pesquisas e estatísticas existentes. Somos o quarto país do mundo que mais aprisiona. Dependendo dos critérios de cálculo, passamos a ser o terceiro da lista, superando a Rússia e ficando atrás apenas dos EUA e da China.
Nossos presídios são medievais: cerca de 40 por cento de nossos aprisionados o foram sem qualquer direito prévio à defesa, por conta da banalização de nossas prisões preventivas. E mais: tais estatísticas não levam em conta, ainda, o incrível número de “suspeitos” mortos pela polícia. Matamos mais em um ano no Brasil que a Guerra do Golfo matou em dez.
Mas a questão posta é anterior. Não é papel do Judiciário “combater a impunidade”. Ao Judiciário cabe o singelo papel de cumprir nossa Constituição e as leis.
Ao se atribuir papéis dessa natureza, essencialmente políticos ou de inovação primária da ordem jurídica, nossa Corte subverte todo o sistema de funcionamento do Estado democrático de Direito, invadindo seara estranha a seu âmbito de atuação.
Em verdade, mais que isso. A decisão de ontem implicou numa ruptura do Supremo com a Constituição. Aquele que deveria aplicar e curar, passou a inovar em termos normativos constitucionais. Ou seja, a Corte se atribuiu um poder constituinte originário, o poder de criar uma nova Constituição.
Ao contrário do que pensa no senso comum, o poder constituinte não é algo necessariamente vinculado a uma Assembleia, eleita para tal pelo povo. Qualquer poder político capaz de impor uma nova Constituição é um poder constituinte, mesmo que de forma impositiva e sem participação popular - como ocorre, por exemplo, nas Constituições outorgadas por Imperadores.
Isso fez o Supremo ontem: outorgou, com postura imperial, pela força política da toga, uma nova norma Constitucional de forma originária. Suprimiu direito pétreo que deveria ser imutável. Trata-se, por óbvio, de um imenso vilipêndio à democracia e ao estado de Direito, inaceitável e que deve ser combatido. Magistrados não foram eleitos para criar normas constitucionais, mas para interpretá-las.
Sem querer me alongar por aqui em temas teóricos do direito, pouco próprios a um artigo de opinião, interpretar uma norma não significa que o intérprete possa “fazer o que quiser” com seu sentido e significado, consoante a suas opiniões políticas ou ideológicas.
O magistrado que sobrepõe seu desejo subjetivo e idealista acima daquilo que a norma diz (ou deveria dizer, segundo ele), acima do sentido objetivo (intersubjetivo) que emana da relação circular de significado entre texto normativo e fato (norma num sentido mais rigoroso), comete um atentado contra o Estado Democrático de Direito.
No plano concreto, o equívoco jurídico da Corte terá consequências nefastas.
Como bem lembram Cezar Roberto Bitencourt e Vania Barbosa Adorno Bitencourt, em artigo publicado no Conjur, não são poucos os casos de reforma de decisões condenatórias de segundo grau em instâncias superiores. Ora, nesses casos, cidadãos serão levados a serem injusta e ilegitimamente aprisionados, o que, em si, é uma tragédia. Mais do que isso. Certamente terão o direito a serem ressarcidos pelo Estado, ocasionando prejuízo ao erário público.
Realmente tenho de concordar com outra afirmação dos autores referidos. Esse foi o pior momento do Supremo desde a restauração democrática em nosso país. Vivemos tempos cada vez mais sombrios.
Pedro Estevam Serrano é Advogado, professor de Direito Constitucional da PUC-SP, mestre e doutor em Direito do Estado pela PUC/SP com pós-doutorado pela Universidade de Lisboa.
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