Ainda que não tivesse
sido esse o objetivo de sua autobiografia, na qual relatou há 19 anos a
incrível trajetória que o transformara no todo-poderoso senhor, por mais
de uma década, da quarta rede comercial de televisão do mundo, Walter
Clark acabou por oferecer no livro – O Campeão de Audiência (veja
a capa abaixo), que teve o jornalista Gabriel Priolli como co-autor,
Editora Best Seller, 1991 – uma contribuição importante para a
compreensão das relações muito especiais entre a TV Globo e o regime
militar à sombra do qual floresceu. Além de rejeitar a conhecida imagem
da emissora como uma espécie de porta-voz do “Brasil Grande” do ditador
Médici, ele garantia nunca ter visto Roberto Marinho (foto no alto, da
capa do livro promocional assinado por seu empregado Pedro Bial), “se
humilhar diante de quem quer que fosse, milico ou não, presidente da
República ou não. Ao contrário, é uma altivez que fica sempre no limite
da arrogância.”
Clark referia-se à
suposta independência do dono da Globo por “manter em torno de si homens
de esquerda em cargos importantes” (citava Franklin de Oliveira,
Evandro Carlos de Andrade e Henrique Caban) – inclusive depois que o SNI
ampliou a pressão contra os dois últimos, com acusações contidas numa
fita de vídeo que o dono da Globo fora convocado a assistir em companhia
de Clark e Armando Nogueira. Explicitamente, admitia apenas que o
regime “incomodava” a Globo, que enfrentou “o mesmo gosto amargo da
censura, das intimidações, das impossibilidades que todo mundo sentiu:
imprensa, rádio, televisão, as artes, a universidade, a cultura”.
Claramente na defensiva, o autor mostrava-se ressentido com os que o
culpavam – na própria Globo, e mais até do
que Marinho – pela submissão
ao regime militar. Mas ao passar das opiniões subjetivas aos fatos
concretos, acabava por confirmar o que pretendia desmentir: a docilidade
das TVs (em particular a sua), em parte resultante do caráter precário
das concessões de canais pelo governo, tinha uma longa história e já o
atropelara antes, na TV Rio.
Essa emissora, na qual
também foi autoridade máxima (com o título nominal de “diretor
comercial”), Clark submeteu-se, sem reação, ao assalto dos lacerdistas –
liderados pelo empresário Abrahão Medina, fazendo valer a condição de
patrocinador de programas – no episódio da tomada do Forte de
Copacabana, em 1964. Posteriormente, conseguiu o prodígio de entregar-se
tanto ao governo estadual como ao federal, até mesmo depois do desafio
do governador Carlos Lacerda (foto à esquerda) ao presidente Castello
Branco. Clark confessou ter retirado do ar programas de Carlos Heitor
Cony e Roberto Campos para satisfazer o coronel Gustavo Borges, chefe de
Polícia do Rio, que o chantageava com a ameaça de mudar o horário da
novela O Direito de Nascer, líder de audiência.
Da promiscuidade à cumplicidade
Não por acaso, a
experiência da Globo acabaria por extremar a tendência à acomodação, a
ponto de Clark contratar um ex-diretor da Censura (“o Otati”) para “ler
tudo que ia para o ar” e, pior ainda, uma “assessoria especial” para
cortejar o poder, formada pelo general Paiva Chaves, pelo civil linha
dura Edgardo Manoel Erickson (“pelego dos milicos”, conforme disse) e
mais “uns cinco ou seis funcionários”. O episódio que aparentemente o
convenceu a ir tão longe chegava a ser cômico: um certo coronel
Lourenço, do Dentel, tinha tirado a estação do ar em 1969, convocando
Clark
ao ministério da Guerra, porque Ibrahim Sued, na esperança de agradar
ao Planalto, divulgara uma intriga plantada pelo grupo do general Jaime
Portela, então na conspiração do “governo paralelo” juntamente com d.
Yolanda Costa e Silva. Ibrahim foi preso e Clark (ao lado, numa capa da Veja em 1971) aprendeu a lição depois de levar um pito do coronel Athos, “homem de Sílvio Frota”.
Além da pretensa
altivez de Marinho, impressionaram Clark a “integridade”, a
“honestidade” e o “patriotismo” do general Garrastazu Médici, que depois
de 1974 passara a frequentar seu gabinete na Globo para ver futebol aos
domingos. Muita gente apanhava e morria nos cárceres da ditadura, mas
para ele isso não podia, de forma alguma, ser coisa do ditador Médici:
“Tenho a impressão de que ele não se envolveu com nenhum excesso,
nenhuma violência do regime”. De quem era, então, a responsabilidade?
“Foi coisa dos caras da Segunda Seção do Exército, do SNI, do Cenimar,
do Cisa, a turma da segurança. E era tudo na faixa de major,
tenente-coronel”. Pronto a absolver os poderosos, frequentadores de seu
gabinete (até mesmo o general Ednardo D’Ávila‚ chamado no livro de
“figura agradável”), e a condenar apenas o guarda da esquina, obscuro,
Clark comete o disparate de afirmar que “a censura e as pressões não
eram feitas pelos generais”, mas por “gente como o Augusto”, beque do
Vasco que virou agente do DOPS. Mas se era assim, por que submeter-se a
eles?
O autor recorreu ainda a
outra desculpa para justificar o adesismo e o ufanismo tão escancarados
na ocasião pela rede dos Marinho: “A Globo não fazia diferente dos
outros”. E mais: “Se o Estadão não conseguia enfrentar o regime, se a Veja
não conseguia, como é que a Globo, sendo uma concessão do Estado,
conseguiria resistir à censura, às pressões?” O problema, para os
críticos de Clark dentro da própria emissora, é que ela, como ele,
parecia preferir aquela filosofia de que se o estupro é inevitável só
resta relaxar e aproveitar. Daí os comerciais da AERP (Clark alega que
foram feitos para evitar uma “Voz do Brasil” na TV, projeto de um certo
coronel Aguiar), as coberturas patrióticas de eventos militares
(Olimpíadas
do Exército e o resto), as baboseiras ufanistas de Amaral Neto (foto à
esquerda). “Era o preço que pagávamos para fazer outras coisas”, alegou.
Não se deu ao trabalho de explicar que coisas eram essas. E ele mesmo
admitiu na autobiografia que o apregoado Padrão Globo de Qualidade
“acabou passando por vitrine de um regime com o qual os profissionais da
TV Globo jamais concordaram”?
A Globo devia ao
regime, como ficou claro no relato de Clark, até mesmo a introdução da
TV a cores – imposta pelo ministro das Comunicações, coronel Higino
Corsetti, sabe Deus para atender a que lobby multinacional. Mas
a intimidade promíscua com o regime foi mais longe, a ponto de
compartilhar com o SNI os serviços clandestinos do “despachante”
encarregado de liberar contrabandos na Alfândega: para a empresa,
equipamentos de TV; para os militares da espionagem oficial,
sofisticados aparelhos de escuta ilegal. Graças a isso, Clark podia
desfrutar estranhas sessões de lazer como a conversa com um tal general
Antônio Marques, pressuroso em exibir foto tirada no escuro de um cinema
(com equipamento infravermelho) e identificar o personagem em cena
comprometedora como Dom Ivo Lorsheiter, progressista odiado pela linha
dura militar.
Para Armando, “uma questão de realismo”
O autor defendeu no
livro tudo o que fez para “afagar o regime” (expressão dele) e investiu
contra os que o acusavam de “puxar o saco dos militares” (também
expressão dele). Para fazer autocensura, revelou, tinha importantes
aliados internos, com destaque especial para o papel do diretor de
jornalismo, Armando Nogueira. Por “questão de realismo”, por exemplo,
Armando e ele tomavam “muito cuidado” para não trombar “com o regime e
nem com Roberto Marinho”. Mas o leitor tropeça nas contradições da
narrativa, entre elas a ambiguidade em relação ao ex-amigo J. B. (Boni)
de Oliveira Sobrinho – acusado de fazer vista grossa quando Dias Gomes e
outros enfiavam “coisas nos textos que certamente iam dar problemas”,
mas também de cumplicidade com os militares para destruir o próprio
Clark (“lá por 1976, Laís, a mulher do Boni, foi me denunciar para o
pessoal do SNI, que ela conhecia, dizendo que eu era um toxicômano
perigoso”).
Não é preciso
inteligência privilegiada para perceber que o jogo de cumplicidade com o
regime confundia-se com a luta interna pelo poder dentro da Globo,
arbitrada por Marinho e envolvendo não apenas Clark e Boni, mas também o
segundo escalão – Joe Wallach (que representou o grupo Time-Life – mais
sobre ele AQUI),
José Ulisses Alvarez Arce e, em especial, o diretor de jornalismo
Armando Nogueira (todos eles estão na sugestiva foto acima). Esse último
é pintado no livro como incompetente, preguiçoso e traiçoeiro. Em meio à
guerra, as reuniões do conselho de direção nas manhãs de segunda-feira
tornaram-se um inferno, em generalizado clima de intriga e discórdia,
com todo mundo brigando com todo mundo. O dinheiro farto que todos
ganhavam, contou Clark, “era como veneno, especialmente nas mãos das
mulheres”. Munidas de talões de cheque, elas estrelavam “um festival de
nouveau-richismo, pretensão e falta de educação”. Acusado de consumir
drogas, Clark defendeu-se ao encarar a prática como generalizada: “a
cocaína era chique nas festas intelecto-sociais, e o seu consumo,
bastante disseminado”, mas “resolveram me transformar em drogado”.
Quando Marinho decidiu
tomar “o brinquedo de volta” – ou seja, recuperar o controle da Globo,
que “tinha emprestado para uns garotos mais moços brincarem” – uma das
mãos firmemente agarradas ao tapete de Clark, segundo o livro, foi a do
ministro da Justiça, Armando Falcão (na foto abaixo, ao lado do ditador
Ernesto Geisel),
“tipo deletério, que adorava fazer intrigas, dizer que éramos todos
comunistas, drogados, os piores elementos”. No relato aparece um Roberto
Marinho bem mais coerente na conspícua (e promíscua) aliança com o
regime do que o autor chega a reconhecer explicitamente – tanto que o
episódio no qual Clark é afinal defenestrado mistura, de forma
reveladora, a disputa pelo poder no regime militar com aquela que se
processava na Globo, escancarando as relações perigosas entre o governo e
a rede de TV consolidada à sombra do autoritarismo.
O autor nega que o
motivo de sua saída tenha sido, como se propalou na época, seu
comportamento pessoal pouco ortodoxo (em razão de excessos alcoólicos)
numa festinha com poderosos de Brasília. O livro atribuiu a demissão a
queda de braço com o regime, que exigia o expurgo na Rede Globo da
afiliada paranaense de Paulo Pimentel, político que rompera com o antigo
protetor,
ministro Ney Braga, e ainda era desafeto do chefe do SNI, general João
Baptista Figueiredo, então a caminho da presidência (na foto à esquerda,
já ditador, de braço dado com Marinho). Se assim foi, faltou a Clark
reconhecer ter sido demitido na primeira vez em que de fato ousava
contrariar os donos do poder. “Eu argumentava – escreveu ele – que o
governo tinha o poder concedente dos canais de rádio e TV e, se quisesse
atingir o Paulo (Pimentel), que cassasse a sua concessão e enfrentasse o
desgaste político”. Mas Marinho, pragmático, pensava diferente – talvez
sintonizado, naquele sombrio ano de 1977, com o clima incerto gerado
por mais uma demonstração de força do regime, o Pacote de Abril.
Até veto de música no festival da canção
Clark nem sequer notou a
semelhança desse episódio com tantos outros que marcaram a aliança
promíscua da Globo com o poder – e nos quais ela se limitara a acatar a
vontade do regime. Alguns de tais episódios, envolvendo a TV e
autoridades militares, desfilaram ao longo de Campeão de Audiência:
o ataque do general Muricy a um documentário da CBS (para ele,
“subversivo”) sobre o Vietnã, comprado ironicamente pelo americano
Wallach, do Time-Life (na foto, cochichando no ouvido de Roberto
Marinho);
o Jornal Nacional, no terceiro dia de sua existência, proibido por um
coronel (Manoel Tavares) do gabinete do general Lira Tavares (membro da
Junta que tomara o poder) de noticiar o sequestro do embaixador dos EUA e
a doença de Costa e Silva, os dois principais assuntos; o aviso do
general Sizeno Sarmento de que as músicas “Caminhando” e “América,
América” estavam proibidas de ganhar o Festival Internacional da Canção;
a ordem do general Orlando Geisel para as patriotadas de Amaral Neto
serem incluídas no horário nobre; a prisão do próprio Clark pelo DOPS no
dia do Ato 5, por ordem do coronel Luís França (em represália por ter
ele discutido com o motorista do militar num incidente de trânsito).
Enfim, a especialidade
da Globo era acomodar-se a cada situação. A acomodação prevaleceu ainda
no dia da queda de Clark. Ele aceitou sem discutir o prêmio de
consolação (US$ 2 milhões) oferecido por Marinho. E limitou-se a
encomendar o texto da carta de demissão (“em alto estilo… literário”)
ao amigo Otto Lara Resende, suficientemente versátil para também
escrever em seguida a resposta na qual o dono da Globo agradeceu os
serviços prestados pelo demissionário (quatro anos depois Otto
aceitaria também a missão de fazer o prefácio de Campeão de Audiência).
A demissão é uma
espécie de anticlímax da autobiografia, na qual o autor assumiu
compulsivamente a responsabilidade pelas iniciativas bem sucedidas da
Globo, declarou-se adepto de programas de qualidade (mas o salto de
audiência veio com os popularescos de baixo nível, de Raul Longras,
Chacrinha [foto abaixo], Dercy Gonçalves, etc, bem na linha da atual
pornografia BBB)
e atribuiu o mal feito a outros – como os que mantiveram elevado o
faturamento e a liderança absoluta de audiência nos anos seguintes,
enquanto o próprio Clark, que na Globo tinha o maior salário do mundo
(compre AQUI, por US$3,95, a notícia no New York Times sobre
a demissão do brasileiro com o maior salário do mundo) e frequentava
presidentes e ministros, descia ao fundo do poço, de fracasso em
fracasso (como diretor de duas TVs, logo demitido, e produtor de dois
filmes nos quais sequer se reconheceu sua contribuição, mais um
espetáculo teatral altamente deficitário).
“Em 14 anos, depois de
minha saída, o que houve de realmente novo?” – perguntou o autor naquele
ano de 1991, referindo-se à Globo. Pouca coisa, talvez. Hoje, com a
perda crescente de audiência para os concorrentes e sem os privilégios
garantidos nos 20 anos de ditadura militar, ela está condenada a
conformar-se com as regras da democracia e da competição. E passa a
valer para a Globo a amarga reflexão pessoal de Clark no livro: “Não se
deve cultivar excessivamente o poder, pendurar-se emocionalmente nele,
porque um belo dia o poder acaba, e o dia seguinte é terrível”.
http://argemiroferreira.wordpress.com/2010/04/03/a-globo-e-a-ditadura-militar-segundo-walter-clark/
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