Denúncias de trabalho degradante, ameaças, assédio moral e
sexual em cruzeiros chegam à Justiça e à Secretaria de Direitos
Humanos. O principal obstáculo à proteção dos brasileiros é que
eles não estão sujeitos às leis trabalhistas do País
Fabíola Perez
Os cartazes fixados nas paredes da academia de dança de Florianópolis anunciavam uma oportunidade que parecia única. Salário em dólar e a chance de dançar para um público de todo o mundo fizeram com que o bailarino Arthur Fernando de Souza, 38 anos, e sua namorada se empenhassem em vencer o concurso que selecionava os melhores dançarinos de Florianópolis, em Santa Catarina, para se apresentar em espetáculos de balé em um navio da armadora Star Cruise, com sede na Malásia. Era fevereiro de 2008, auge da temporada de cruzeiros no Brasil, e mesmo tendo de arcar com os custos dos exames médicos e da passagem para São Paulo, Souza sentiu-se atraído pela proposta e pelo salário de US$ 900 por mês. Embalados pelo sonho de viver uma experiência internacional, ele e a namorada embarcaram para Hong Kong. Na primeira noite, porém, perceberam que haviam caído em uma enrascada. “Levamos um grande susto quando vimos que se tratava de um show erótico”, afirma Souza. “As meninas ficaram horrorizadas ao saberem que as apresentações seriam feitas com os seios à mostra.”
PASSADO
O bailarino Arthur de Souza (em pé, à esq.) era um dos brasileiros contratados para
fazer shows eróticos no navio Star Cruise em 2008. Hoje, participa de comissões
no Senado (abaixo) em prol das vítimas de violações de direitos em cruzeiros
Indignados, Souza e os demais bailarinos cobraram explicações da agência que os contratou, mas a pressão e as ameaças para que continuassem se apresentando aumentou. “Psicologicamente, o cérebro acaba aceitando a situação”, diz ele. “Eu aceitei porque, na época, passava por dificuldades financeiras, não tinha onde morar no Brasil.” Souza diz que os shows ocorriam sempre após as 23 horas para o público adulto do navio. “Éramos obrigados a simular relações sexuais durante o espetáculo”, relata. Denúncias como essa têm chegado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República desde o ano passado. “Vivemos uma fase inicial, ainda não temos noção do tamanho do problema”, afirma José Armando Guerra, coordenador da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) da SDH. Para ele, o que torna os casos ainda mais graves é a situação de confinamento dos tripulantes, que em muitos casos relatam ter a liberdade privada dentro do navio. “O cárcere em alto-mar é comparável à rotina de um trabalhador rural isolado em uma fazenda distante”, diz Guerra.
O principal obstáculo à proteção dos brasileiros é uma norma do Direito Marítimo Internacional segundo a qual tripulantes de navios que passam por diferentes países devem seguir a legislação trabalhista da nação onde a embarcação está registrada. Diante disso, é comum as empresas operarem sob a chamada “bandeira de conveniência”. Ou seja, grandes armadoras registram suas embarcações em países pequenos como Malásia, Panamá e Bahamas, onde a legislação trabalhista costuma ser mais flexível. “Essas peculiaridades levam aos abusos”, afirma Maurício Coentro Pais de Melo, procurador do Ministério Público do Trabalho. “Em águas nacionais temos autoridade para investigar, mas a legislação brasileira não alcança as estrangeiras”, afirma. Outra norma do Conselho Nacional de Imigração estabelece que as embarcações que permanecem no País por mais de 30 dias são obrigadas a contratar no mínimo 25% de sua tripulação entre cidadãos brasileiros. Quando o contrato é superior ao período de cinco meses, porém, os tripulantes não ficam mais submetidos à legislação nacional e sim aos contratos internacionais. Para Raul Capparelli Vital Brasil, fiscal do Ministério do Trabalho e do Emprego, está aí o cerne do problema. “Eles abrem brechas para uma série de violações de direitos”, diz o auditor. “Os tripulantes não têm direito a intervalos, as jornadas são de 16 horas por dia e parte do salário pode ficar retida pelo navio até que o trabalhador termine o contrato.”
DENÚNCIA
O chefe de cozinha Robin Konnel (à dir.) enfrentava intensas jornadas de trabalho no navio.
Abaixo, com a mulher, Sarah, e a filha Greyce (à dir.), que acusa os superiores de assédio sexual
Casos de assédio são relatados por vários tripulantes brasileiros. A catarinense Greyce Konell de Souza, 31 anos, diz ter sido vítima de preconceito e de assédio sexual na temporada de 2011. Contratada pela agência Fatto para trabalhar na armadora MSC Cruzeiros, a camareira embarcou para a Itália. Segundo ela, a xenofobia era explícita, especialmente por parte dos superiores. “Os italianos diziam que os brasileiros não prestam para trabalhar e que só estávamos no navio por conta da cota mínima”, diz. Greyce conta que foi contratada para fazer o serviço de quarto no período noturno e em uma das noites foi escalada para levar o café da manhã para o chefe da cozinha, de nacionalidade italiana. “Ele me atendeu apenas de toalha”, diz ela. “A cada moça que se negava a ceder, ele dava ordens para aumentar a carga de trabalho de todo o departamento”, afirma. O assédio sexual e as longas jornadas fizeram Greyce, a mãe e o pai, que também trabalhavam na cozinha do navio, abandonarem a rotina em alto-mar. A família abriu um processo trabalhista e de danos morais contra a empresa e espera pela primeira audiência em fevereiro.
A falta de água potável e de alimentos de boa qualidade para os tripulantes é outra denúncia frequente que chega ao Ministério do Trabalho. “Não é razoável imaginar que centenas de trabalhadores optem por pagar pela água que estaria disponível gratuitamente”, diz o fiscal Vital Brasil. Há relatos também de precário atendimento médico a bordo. O estudante de direito Márcio Freitas teve essa experiência. Em junho de 2009, ele foi contratado pela agência Rosa dos Ventos em Fortaleza para trabalhar no navio MSC Música. “Pedi demissão e tranquei a faculdade para viver uma experiência diferente”, conta. A realidade não foi o esperado. Freitas diz que enfrentava jornadas diárias de 16 horas e que chegou a trabalhar 244 dias seguidos.
TRIBUNAL
Márcio Freitas acusa a MSC Cruzeiros de abandoná-lo em um hospital público
na Grécia, após sofrer paralisia nas mãos e nos pés. O caso está na Justiça
Um mês antes do encerramento do contrato, ele adoeceu. Diagnosticado com infecção respiratória, foi medicado com injeções na enfermaria do navio. Sete dias depois, ele conta que teve paralisia nas mãos e nos pés. Em julho de 2010, Freitas foi desembarcado do navio na Grécia para o tratamento médico. “Fui abandonado em uma cadeira de rodas no corredor de um hospital público sem nenhum funcionário ou enfermeiro da MSC para me ajudar”, afirma. Após nove dias internado, conseguiu ajuda para voltar ao Brasil. Depois de dez meses em tratamento, Freitas voltou a andar. O caso foi parar na Justiça que, em primeira instância, condenou a MSC a pagar pela recuperação dele. A empresa recorreu. Procurada, a MSC não quis comentar os dois casos.
Para diminuir a vulnerabilidade dos tripulantes brasileiros, algumas iniciativas estão em curso. “Queremos propor um projeto piloto em alguns portos na costa brasileira de ações surpresas em navios”, afirma José Guerra, do Conatrae, para quem as agências de recrutamento também devem ser fiscalizadas porque são a porta de entrada para as embarcações. A recrutadora Sandra Farias, há seis anos na função pela armadora Royal Caribbean, admite que as horas de trabalho são longas e diz que quem quer ser tripulante deve se informar bem. “Trabalhar em um cruzeiro tem vantagens, como conhecer o mundo e ganhar em dólar, e desvantagens como a jornada intensa. É preciso pensar bastante.”
Fotos: Arquivo pessoal
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