Do Valor
Renato Janine Ribeiro
Seu primeiro ano foi uma lua de mel.
Ouvia as denúncias contra seus ministros e os demitia, se fosse o caso.
Depois de vários mandatos presidenciais em que a opinião pública sentira
uma certa leniência em casos tais, Dilma Rousseff adquiriu a fama de
gestora rigorosa e honesta. Nos anos seguintes, porém, essa imagem cedeu
lugar à de intransigente, mal humorada e até ríspida.
Mas essas imagens opostas se referem à
mesma personalidade, ou postura. Dizem respeito ao mesmo referente: uma
presidenta séria, pouco disposta a brincadeiras, exigente com o Tesouro,
isto é, com "o seu dinheiro, o meu, o nosso", avessa a concessões em
matéria de princípios - como o Código Florestal -, acreditando na coisa
pública e inimiga dos malfeitos, nome que dá à corrupção. Nem a mídia
mais hostil a seu governo e partido questiona sua honestidade. Num país
em que a discussão política é pobre a ponto de se concentrar numa nota
só, que é acusar o adversário de desonesto, ela é criticada por suas
políticas e por sua eficiência, não por sua moral.
O problema é que os elogios e críticas
incidem sobre o mesmo traço de personalidade - ou postura. Distingo.
Traço de caráter pertence à pessoa. Incorporou-se à sua psique, por
educação ou decisão. Postura é consciente, é mais racional. No seu caso,
parece que psicologia e ética correm na mesma direção. No começo do
mandato, esse rigor, que também se exprime num apreço à liturgia do
cargo sem precedentes faz bastante tempo, dado que inclui uma seriedade
quase puritana, era louvado. Tínhamos uma dirigente que não fazia
negócios. Com o tempo, tornou-se tema de preocupação e mesmo de crítica.
Ela não cede. Para votar uma lei, faz o mínimo de acordos. Isso
estressa as relações com os parlamentares e os partidos. Mas
aparentemente tem dado certo, isto é, as derrotas em alguns projetos de
lei não trouxeram resultado pior do que teria sido aceitar
desfigurá-los.
Queremos ou não uma política com ética?
Isso tem um custo político, que ela
paga. Não é pragmática, queixam-se os empresários. Não gosta de
política, reclamam políticos e colunistas. Nos dois casos, isso
significaria que não escuta o outro, não quer ter notícias más, não faz
concessões. Mas é tênue a linha separando essa descrição, que delineia
um governante no limite do autoritário, e a do político sem princípios.
Fazer uma negociação, que é coisa boa, está a apenas duas ou três letras
de fazer uma negociata. Onde ficam as fronteiras da negociação,
legítima, necessária na política, e da negociata, sua caricatura, sua
negação?
Muitas críticas a Dilma, penso eu,
exprimem um problema nosso, de nossa sociedade, não exatamente dela.
Queremos ética na política, mas sabemos que na prática não é bem assim.
Desconfiamos que a ética, na política, não entrega os bens desejados.
Por isso, prestamos homenagem, da boca para fora, à moral, mas -
pragmaticamente - aceitamos infrações a ela. Isso não é raro. Já vi
pessoas que se indignavam com a desonestidade vigente mas sobrefaturavam
a conta que emitiam. Essa divisão na personalidade, essa contradição
ética entre a fala honesta e a prática desonesta, percorre a sociedade
brasileira de cima em baixo. Ninguém esquece o senador goiano que era um
dos críticos mais veementes da corrupção petista, estando, ele próprio,
envolvido em negócios que lhe custaram o mandato.
Mas, na política, a contradição entre
ética e prática apenas se torna mais evidente às críticas. Nem sei se é
maior, ou mais visível, do que os malfeitos de nosso cotidiano. Muitos
dos que criticam políticos agem, na vida pessoal, da mesma forma que os
criticados. Com frequência maior do que seria aceitável, o político se
torna bode expiatório dos microcorruptos do cotidiano.
Não seria bom aproveitarmos esta
ambivalência em relação ao caso Dilma para refletir sobre a ambivalência
da própria sociedade brasileira quanto à ética na sociedade e na
política? O movimento com esse nome tomou as ruas do Brasil há bons
vinte e dois anos, por ocasião do impeachment de Fernando Collor.
Pareceu produzir bons resultados, como a queda do presidente e a
cassação de deputados. Mas parou aí. Continuamos acreditando que seria
bom alcançarmos a ética, mas que é mais seguro termos uma prática que
tolera infrações, pequenas e enormes, em nome do resultado. A ética é o
ideal, mas a prática desonesta é a realidade. Pregamos a ética para os
outros. Queremos que eles se demonstrem éticos, mas nos reservamos o
privilégio de ser pragmáticos em benefício próprio. Não que nossa
sociedade seja sistematicamente desonesta. A desonestidade é exceção.
Mas é uma exceção que se manifesta em momentos estratégicos da vida
política - e social. Não aparece em questões poucas, porque menores -
aparece em questões poucas, porque cruciais.
Mudar isso é possível. Campanhas, como a
do Ministério da Justiça contra as mini corrupções de cada dia, educam.
Mostram o nexo entre o ilícito meu ou seu, e o ilícito de nossos
representantes. Porque quem nos representa, porque foi eleito por nós,
nos representa também como somos. O limiar da honestidade precisa ser
levantado, na vida de todos. E além disso é viável, ainda que difícil,
um pacto entre políticos. Seria possível políticos honestos, de vários
partidos, acordarem que não aceitam o apoio da banda podre. Isso poderá
gerar um ou dois anos de turbulência, mas dará efeito. E então saberemos
distinguir se um governante merece ser criticado porque se fecha a
negociações - ou elogiado porque se recusa a negociatas, que são coisas
diferentes, sendo uma a essência da política, a outra a essência da
corrupção.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras
http://jornalggn.com.br/noticia/o-dilema-sobre-dilma-por-renato-janine-ribeiro
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