QUA, 29/10/2014 - 10:07
do Terra Magazine
por Murilo César Ramos
No filme Feitiço do Tempo (Groundhog Day, no original em inglês), o ator Bill Murray interpreta um entediado meteorologista de televisão que vai a uma cidade do interior da Pennsylvania cobrir um tradicional evento anual, em que uma marmota, ao deixar sua toca, no dia 2 de fevereiro, é capaz de, pela extensão da própria sombra, indicar se o inverno será mais longo ou mais curto do que o usual. Isolado na cidade por uma inesperada tempestade de neve, que nem ele, ou a marmota, foram capazes de prever, o personagem de Murray vê-se preso em uma armadilha do tempo, condenado a viver o mesmo dia a cada dia que se segue.
Feitiço do Tempo é a metáfora que sempre me ocorre quando, ao final de cada eleição que o Partido dos Trabalhadores disputa, suas principais lideranças, de Luiz Inácio Lula da Silva a Rui Falcão, fazendo coro a uma militância indignada com o tratamento negativo que o partido e seus candidatos receberam dos principais meios de comunicação do país, começam a defender a necessidade de um ‘marco regulatório’ para a ‘mídia’ .
O que a militância, nessa hora de indignação generalizada, não percebe é que o Presidente Lula, o Partido dos Trabalhadores, e, agora, a Presidenta Dilma Rousseff tiveram já quase exatos 12 anos para propor e fazer aprovar no Congresso Nacional uma legislação que é devida à sociedade desde 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, na qual está inscrito um capítulo inteiro – artigos 220 a 224 – sobre a Comunicação Social. E muito pouco, como pretendo argumentar adiante, fizeram. O que a militância também não percebe, o que parecem também não perceber o próprio Lula, Falcão e outros, é que falar de ‘regulação da mídia’ nesses momentos políticos agudos, como uma disputa presidencial, só potencializa o argumento, falacioso é verdade, dos donos dessa mídia, de que o que o PT e suas lideranças querem é estabelecer um ‘controle social’ dos meios de comunicação, que seria nada mais do que uma forma insidiosa, ‘bolivariana’, de censurar a ‘imprensa livre’.
O ativista e pesquisador uruguaio, Gustavo Gómez, reconhecido por seu trabalho em favor da radiodifusão comunitária na América Latina, é autor de uma frase que, para mim, ajuda a entender melhor essa sensação que muitos temos de estarmos a viver o mesmo dia todo dia quando o assunto é a necessidade de políticas públicas para a comunicação social no Brasil. Referindo-se às relações dos governos de Tabaré Vásquez e José Mujica com a mídia de seu país, Gomez produziu essa magnífica síntese: ‘te temo, te odio, te necesito’.
É assim mesmo que vejo os ciclos que se estabelecem no Brasil entre as candidaturas petistas e a mídia: antes de começarem as campanhas, estabelece-se o temor da oposição que ela fará nas páginas de jornais, revistas, em noticiários das televisões; iniciada a campanha, na medida em que a esperada oposição se materializa com virulência, o temor vai se transformando em ódio; mas, no momento em que, apesar de toda a oposição – traduzida, em momentos críticos, na manipulação editorial de debates na televisão, na produção de reportagens mentirosas destinadas a se transformarem em munição eleitoral na véspera e no dia da votação -, a vitória nas urnas acontece, o temor e o ódio rapidamente se esvaem na mente dos candidatos vitoriosos. E lá vão eles para entrevistas amistosas em bancadas de telejornais, e lá vão eles a dar declarações do tipo ‘regulação da mídia’ não é prioridade, a prioridade é a reforma política, coisas do gênero, porque, aos seus olhos vitoriosos, a necessidade de contar, no mínimo, com a boa vontade dos donos da mídia para o sucesso de seus governos, sobrepõem-se aos agravos sofridos durante o período eleitoral. Tudo vira matéria de cálculo político; o cenário se acomoda nos primeiros momentos, uma paz de cemitérios se estabelece, até que os primeiros solavancos políticos voltem a sacudir a conturbada relação, e se transformem, na eleição seguinte em temor, ódio, e assim diante.
Em meados de 2002, ao ser lançado com pompa em Brasília, o programa de governo então candidato Luiz Inácio Lula da Silva trocara todas as menções que nele havia à comunicação, leia-se mídia, por proposições genéricas sobre as telecomunicações, leia-se telefonia. Para desgosto dos militantes que estavam na Câmara dos Deputados naquele dia e que tinham participado da formulação das propostas referentes à comunicação. Nos seus primeiros quatro anos, o governo de Lula dedicou-se, no campo da comunicação, a uma política para a televisão digital terrestre, cujo resultado final foi dar à radiodifusão privada o que ela queria desde o início: um padrão de transmissão japonês que melhor atendia ao seu modelo de negócios. O middleware brasileiro, Ginga, tido como a grande contribuição técnica nacional àquele processo é até hoje uma esperança de instrumento democrático de interatividade que vai aos poucos sendo dizimado, sem jamais ter sido concretizado de fato, pelos cada vez mais sofisticados receptores de televisão conectados à internet e aos aplicativos comerciais dominantes no mercado. No seu primeiro quatriênio, Lula viu irromper uma grave crise financeira nas empresas de comunicação, com a Globo ostentando a maior dívida de todas elas, e, ao invés de valer-se desse momento crítico para dar início a um ampla negociação centrada em uma política pública da qual resultasse um novo modelo institucional para o setor, optou por pedir ao BNDES que montasse um pacote de salvamento para as empresas endividadas. Porque sequer era consenso entre os devedores visto que, no limite, só interessava à Globo, o pacote – criticado também pela equipe técnica do BNDES – ficou só na intenção. Ainda no primeiro quatriênio, por exemplo, o governo cedeu às pressões do empresariado de comunicação social, retirando do Congresso o projeto que ele próprio enviara, de criação do Conselho Federal de Jornalismo, e determinando ao Ministério da Cultura que interrompesse o processo de transformação da Agência Nacional de Cinema (Ancine) em Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav).
Talvez a síntese melhor que se possa fazer da postura estratégica do primeiro Governo Lula para o setor da comunicação social, em especial da radiodifusão, sejam os titulares do Ministério das Comunicações no período: os deputados federais Miro Teixeira, que era do PDT quando nomeado, e Eunício Oliveira, do PMDB, e o senador Hélio Costa, também do PMDB. Costa foi sem dúvida a síntese mais perfeita, dada a sua vinculação histórica, de funcionário, com a Globo, e sua condição de concessionário e permissionário de outorga de radiodifusão em Minas Gerais.
Costa permaneceria no governo até quase o final do segundo mandato do Presidente Lula, do qual sairia para disputar, e perder, o governo de Minas Gerais. Mas, no segundo mandato, resolvida a questão da televisão digital terrestre, ele se tornaria uma figura menor nas Comunicações, pelo menos no que dizia respeito à comunicação social, com a chegada ao governo do jornalista Franklin Martins para assumir, com o status de ministro, a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República. Convidado por Lula para trabalhar no Palácio do Planalto uma nova politica de relacionamento institucional com as empresas de comunicação, inclusive aquelas de fora do eixo Rio de Janeiro-São Paulo, Martins começaria a assumir um papel para além do Palácio do Planalto depois que Hélio Costa, certamente com o consentimento de Lula, anunciou, no início de 2007, que o governo iria criar uma ‘televisão pública’. Isto iria gerar uma área de atrito com o Ministério da Cultura, de Gilberto Gil, que desde 2005, com entidades do movimento social, mais Ancine, Radiobrás e TVE Brasil, construía a proposta de um I Fórum Nacional de Televisões Públicas. Visto como um intruso no processo de discussão de um projeto de televisão pública, dadas as suas vinculações, inclusive pessoais, com a radiodifusão comercial, Costa viu-se afastado do I Fórum, nele ingressando Franklin Martins, que dele sairia como um importante protagonista do governo para as questões mais amplas de políticas de comunicação social. Num primeiro momento, no debate e formulação do projeto que se transformaria, no final de 2008, na Empresa Brasil de Comunicação (EBC), o principal resultado do Fórum; num segundo momento, na condução, novamente no lugar que seria de Hélio Costa, do processo que culminaria em dezembro de 2009, na I Conferência Nacional de Comunicação; e, num terceiro momento, no segundo semestre de 2010, na coordenação de fato da Comissão Interministerial, localizada na Casa Civil da Presidência da República, que deixou para o governo de Dilma Rousseff um anteprojeto de lei, um novo marco político e normativo, ou marco ‘regulatório’, como se tornou costume dizer hoje, para as telecomunicações, radiodifusão comercial, radiodifusão pública e televisão por assinatura.
Construído para ser, na visão de Martins, uma das prioridades do Governo Dilma Rousseff, o anteprojeto, que sumiu nos escaninhos mais recônditos do gabinete do novo ministro das Comunicações, o petista Paulo Bernardo, transformou-se numa espécie de documento mítico, pois acessível, quando ainda visível, aos olhos de muitos poucos. E durante já quase exatos quatro anos nada mais se ouviu do governo Dilma sobre uma nova lei para a comunicação social. Em fevereiro de 2013, em seminário sobre Políticas de (Tele)Comunicações promovido pela Universidade de Brasília e pela Converge Comunicação, o então secretário-executivo do Ministério das Comunicações, Cezar Alvarez, representando na abertura do evento o ministro Paulo Bernardo, quando perguntado sobre aquela lei, afirmou, até com louvável sinceridade, que ela não estava nos planos do governo, por se tratar de um tema politicamente delicado, difícil de ser tratado em um “ano pré-eleitoral”, referindo-se à eleição presidencial de 2014, recém concluída.
No Feitiço do Tempo, o filme, o personagem de Bill Murray, no início egocêntrico, rabugento, ao se ver enredado naquela armadilha temporal, e depois de fazer as coisas mais absurdas com ela – fofocas, intrigas -, chegando ao desespero do suicídio (só pra acordar bem vivo no dia seguinte), vai pouco a pouco se tornando um indivíduo mais reflexivo, atento aos outros, mais humano. O tom de autoajuda e o, inevitável, final feliz, em nada contribuem para desqualificar um filme que pode ser visto como um daqueles raros momentos em que Hollywood faz algo sem o rabo preso com a bilheteria, o box office.
Já Feitiço do Tempo como metáfora para as políticas de comunicação dos dois governos Lula e do primeiro governo Dilma em nada me autoriza a pensar em um final feliz para daqui a quatro anos, com o ciclo temor-ódio-necessidade deixando de ser a marca distintiva de toda campanha presidencial que tem o PT como protagonista. Por isso, não me sensibilizam os discursos de que ‘agora vai’, de que é chegada a vez de se construir o novo ‘marco regulatório’ da mídia. Não me sensibilizam dado o que (não) ocorreu nos últimos anos, e que aqui procurei sintetizar. E não me sensibilizam mais ainda porque o medo e o ódio da feliz construção metafórica de Gustavo Gómez são os piores conselheiros que se pode ter para pensar, debater e construir uma política pública, um novo arranjo institucional para a comunicação social no Brasil, a partir do que a Constituição Federal nos orienta. Essa política, esse modelo tem que ser resultado do vasto acúmulo de conhecimento setorial de que já dispomos, da disposição para um amplo diálogo nacional, como se ensaiou na I Confecom, e da convicção de que os novos governos precisam ter de que a paz de cemitério que se segue à pancadaria do período eleitoral é apenas o recuo tático de um adversário incapaz de pensar a nação, a sociedade, o povo, para além dos seus interesses particulares imediatos.
http://jornalggn.com.br/noticia/a-conversa-mole-do-pt-sobre-regulacao-da-midia
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