DOM, 12/10/2014 - 14:47
ATUALIZADO EM 12/10/2014 - 15:40
Três dias atrás (09/10), escrevi o ensaio "Carta aberta ao antropólogo Roberto DaMatta", através do qual refutava o artigo desse renomado intelectual brasileiro intitulado "Um soco na onipotência", artigo cujo objeto era a defesa passional da candidatura de Aécio Neves à presidência da república. Nunca foi minha intenção negar ao DaMatta [foto] o seu sagrado direito de optar por uma candidatura, direito constitucional de todos os cidadãos eleitores do Brasil.
Apenas entendi que, diferentemente do que ocorre com a maioria dos eleitores brasileiros, cujo acesso à cultura e à informação historicamente vem sendo sonegado, DaMatta possui o cabedal intelectual, a pletora de informação e conhecimento, que lhe permite uma argumentação com fundamentos mais profundos do que aquilo que denominei de "redação de Facebook". Ressaltei que, ao utilizar os mesmos artifícios retóricos rasos que são utilizados nas redes sociais, o antropólogo se despe de sua condição de intelectual, colocando-se pari passucom os ignorantes ecoadores de bordões, mantras e memes.
Tenho convicção, e penso que deixei isso entendido nas entrelinhas de meu texto, de que o DaMatta é capaz de produzir uma argumentação lúcida em favor da candidatura do Aécio Neves, apoiando-se em questionamentos pertinentes à condução da política econômica da presidenta Dilma, às deficiências no setor da educação, da segurança pública e nas diversas modalidades de atuação estatal federal nas áreas de interesse da sociedade. Ao optar pelo lugar-comum da corrupção de forma seletiva, "esquecendo-se" oportunisticamente dos casos que, investigados ou não, denunciados ou não, julgados ou não, envolvem o PSDB e outros partidos, entendi que DaMatta abriu mão da inteligência e virou um torcedor comum, desses que transitam pelo Facebook espalhando boatos e declarações de deliquentes como se a verdade estivesse estabelecida.
Bom, mas porque estou dizendo isso? Primeiro, porque não esperava a repercussão enorme que meu ensaio obteve. Foram milhares os acessos em meu blog, fazendo com que esse post saltasse, em apenas dois dias, para a segunda colocação nas estatísticas de acessos do blog. Como os acessos continuam, creio que alcançará a ponta em breve. Segundo, porque, ao lado das muitas manifestações de concordância, e como não poderia deixar de ser num ambiente de liberdade de opinião que prezo e desejo que continue nesse país, tive também as de contrariedade. Muitas dessas últimas chamaram minha atenção por fazerem questão de qualificar o bolsa-família como uma espécie de política de coronelismo, cuja finalidade é orientar o voto dos pobres que por esse programa são favorecidos. Mais ou menos como nos orientou outro "sábio", o Fernando Henrique Cardoso, em sua afirmação de que os eleitores do PT são pobres e ignorantes, uma afirmação elitista, mas que se coaduna com a sua história (já chamou aposentado de vagabundo).
Peço desculpas antecipadas às pessoas que lerem esse texto, amigos ou desconhecidos, e que pensem dessa mesma forma, porém confesso que tenho uma certa repugnância por opiniões contrárias ao bolsa-família. Normalmente, partem de integrantes da classe média ou de pessoas ricas. São opiniões que, no fundo, objetivam esconder, sob o disfarce de opinião meramente política, um pegajoso, asqueroso, preconceito contra a pequeníssima ascensão financeira dos pobres. No mais das vezes, são pessoas irritadas por não mais conseguirem contratar miseráveis a preço de banana podre (agora têm que pagar preço de banana madura). Pessoas que se sentem desconfortáveis ao verem nordestinos pobres viajando de avião para visitar os parentes que ficaram na terrinha. Sentem-se irados ao enfrentar um trânsito que ficou ainda mais caótico a partir do ingresso de milhões de veículos na frota nacional, uma imensa quantidade deles saindo das favelas próximas dos ricos condomínios onde moram.
Como se sentir especial e poderoso, um ser humano diferenciado, se os pobres perigosamente se aproximaram (um pouquinho só, mas...) de um estilo de consumo que deveria ser para poucos? Só falta, agora, pobre viajar para a Europa... Êpa, peraí, alguns já estão... É o fim da picada! Esses dias mesmo li um texto em jornal de grande circulação cujo autor lamentava a perda de classe e estilo no turismo internacional ante a massificação que grassa nessas paragens.
Quanto a mim, como já morei em casa de sapê e em barraco no morro, dormindo no chão de barro batido forrado com papelão para não sujar o colchonete, e como já passei fome durante um período de minha vida que parecia que não iria acabar nunca (o tempo passa mais devagar quando temos fome), eu sei exatamente como é sentir a dor sentida pelo miserável que, ao acordar, não sabe sequer se terá o que comer durante o dia. Não preciso ler sobre o assunto, não preciso me inteirar de estudos acadêmicos sobre os benefícios do programa, não preciso assistir a nenhum documentário sobre favelas e grotões de miséria.
Eu vivi a miséria, eu precisei pedir um prato de comida a pessoas que não estavam dispostas a dá-lo, eu fiquei sem abrigo para passar a noite. Ninguém irá me dar aulas sobre as necessidades mais elementares do ser humano, pois possuo o doutorado da vida sobre o assunto. Hoje, por circunstâncias de minha vontade e por outras também importantes mas alheias a ela, integro a chamada classe média-média e não mais preciso encarar o desafio diário de obter nenhuma das chamadas "necessidades básicas". Porém, ainda existe uma pequena coisa que me incomoda, como se fosse um grilo falante a lembrar-me de coisas chatas como moral, ética, civilização e altruísmo. O meu grilo falante se chama "memória".
Eu não renego o meu passado, nem o escondo no fundo de algum baú de constrangimento. Faço questão absoluta de jamais esquecer de onde vim e do que passei. O passado é minha âncora e me recorda, a cada momento, que a miséria será o horror e a negação da civilização humana enquanto existir uma criança esquálida, ossos à vista, que não consegue extrair o leite do seio de sua mãe porque o organismo materno, ainda mais esquálido do que o da criança, não tem de onde tirar os nutrientes necessários para produzi-lo.
Em minha visão, é apenas mesquinha a tentativa de desqualificar um programa assistencial que sequer dá ao miserável tudo o que ele necessita, pois não se pode imaginar que setenta reais por mês seja capaz de retirar alguém da miséria.
Outro dia um conhecido quis me convencer que famílias pobres estão "fabricando" filhos para receber essa pequena esmola. Fiquei imaginando como um ser humano pode achar que outro ser humano, pobre, se preocupará em fazer mais filhos para receber, por cada um, setenta reais mensais. Além disso, é um projeto meio estúpido. Levará dez anos para fazer dez filhos e, então, alcançar a incrível soma de cerca de oitocentos reais por mês, com a qual terá que alimentar doze bocas, no mínimo. É o ponto a que chegou a insensatez do antipetismo doentio.
É bom lembrar que todos os candidatos, inclusive o Aécio, prometem não somente manter, mas aumentar o valor do bolsa-família e qualificá-lo. Para os que bancam a ideia do coronelismo, fica a constatação de que será utilizado por todo e qualquer um que chegar à presidência.
Vou dar mais uns exemplos de "coronelismo" do PT a ser combatido.
O governo petista Lula/Dilma criou dezoito universidades federais públicas, cujo objetivo claramente deve ser conquistar votos e se manter no poder. O governo do PSDB, que não pretende o poder a qualquer preço, não criou nenhuma, sendo esse o motivo pelo qual acreditam que se deve votar nele.
Os governos federais petistas criaram quase vinte milhões de novos empregos, numa manobra para perpetuar-se no poder. O governo federal do PSDB, somente cinco milhões de empregos, o que é uma demonstração de lisura.
Até o ano de 2013, o Prouni concedeu mais de um milhão e duzentas mil bolsas de estudos para estudantes carentes estudarem em faculdades particulares, assim permitindo aos pobres terem acesso ao ensino superior, o que evidencia nitidamente a natureza sórdida do governo do PT. O PSDB não concedeu uma só bolsa de estudo dessa forma, uma atitude corajosa e honesta.
Todos sabem que a educação secundária é obrigação dos estados e dos municípios, não do governo federal. Os governos petistas, porém, numa escalada rumo à perpetuação no poder, acrescentaram mais de quatrocentas escolas técnicas federais pelo país afora às somente cento e quarenta que existiam desde Pedro Álvares Cabral. Novamente demonstrando sua ética política, o PSDB não construiu nenhuma escola técnica federal, o que deve ser aplaudido.
Numa outra frente de batalha pelo poder a qualquer custo, os governos petistas criaram o Pronatec permitindo o acesso ao ensino técnico e profissional, cujas matrículas já beneficiaram quase seis milhões de jovens pelo país. O governo federal do PSDB, pautado pela honestidade política, não criou qualquer instrumento semelhante a esse.
Enfim, as comparações poderiam continuar por muito tempo, falando em poder aquisitivo do salário mínimo, o preço de mercado da Petrobras no governo do PSDB e agora no PT, a extrema diferença na lucratividade da Petrobras, o tamanho do PIB e diversos outros indicadores. Porém, o texto está ficando longo demais e acho que já ficou evidente para todos que o PT, beneficiando milhões e milhões de pessoas, busca aperfeiçoar o coronelismo ao seu modo extremo, assim alcançando a materialização da utopia do voto de cabresto: aquele no qual o coronel, agora um déspota hiper-esclarecido, para manter-se no poder a qualquer custo, melhora significativamente a condição social média, reduzindo as desigualdades.
Para perpetuar-se no poder, essa espécie de pós-despotismo, representado pelo PT, não hesita, sem pudor nenhum, em praticar a justiça social e melhorar a economia numa perspectiva histórica.
Começo a entender algumas convicções.
http://jornalggn.com.br/blog/marcio-valley/o-coronelismo-utopico-de-da-matta-por-marcio-valley
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