Do Outras Palavras
Que estranho fenômeno político leva
Bernie Sanders a reunir multidões e avançar nas pesquisas, resgatando
heróis revolucionários e defendendo ideias opostas às do establishment
Por Bhaskar Sunkara, em Jacobin | Tradução: Vinícius Gomes Melo
“Eu não sou um soldado do capitalismo.
Eu sou um revolucionário proletário… Eu sou contra todas as guerras,
exceto uma”. Foi o que disse o senador Bernie Sanders, em 1979, ao
citar, para uma coletânea da Folkways Records, o discurso do famoso candidato presidencial pelo Partido Socialista norte-americano Eugene V. Debs.
A linguagem estava deslocada, em um país
prestes a viver a era Reagan, onde até mesmo as mais modestas
conquistas do Estado de bem estar social norte-americano estariam sob
ameaça. Ainda assim, dois anos depois, Sanders tornou-se o prefeito da
maior cidade do estado de Vermont. O Vermont Vanguard Press celebrou
a “República Popular de Burlington” com uma edição especial. Sanders
pendurou um quadro de Debs em seu novo escritório. O quadro hoje está na
parede do seu escritório no Capitólio, o Legislativo dos EUA.
Tecnicamente, Sanders é um independente
que disputa as convenções partidárias junto ao Partido Democrata. E sua
própria variedade de socialismo é mais semelhante à do
ex-primeiro-ministro sueco Olof Palme, também um social democrata, do
que à de Debs, um simpatizante dos bolcheviques. Sanders gosta de
comparar o sucesso dos países escandinavos, com seus Estados de bem
estar social, com a desigualdade no interior da sociedade
norte-americana, destacando a miséria infantil e falta a assistência
médica acessível nos EUA. Suas soluções – cobrança progressiva de
impostos e serviços públicos robustos – não estão muito distantes
daquelas que seus colegas mais à esquerda no Senado, como a senadora
Elizabeth Warren – propõem.
Para Sanders, o manto de socialista é
acima de tudo um aceno à rica história norte-americana de radicais e
reformadores, aqueles que foram amplamente apagados pelo da história do
progresso nacional pelo conservadorismo doméstico, assim como pela
Guerra Fria no exterior. O próprio padrão de Sanders em suas votações,
alinha-se muito com os progressistas no Partido Democrata. Como Howard
Dean afirmou emMeet the Press, em 2005, “ele é basicamente um democrata liberal… A verdade é que Bernie Sanders vota 98% das vezes com os democratas”.
A base democrata concorda. Por anos,
eles evitaram que o partido colocasse candidatos para concorrer contra
ele em Vermont – mais um sinal de que o rótulo de socialista já não
evoca imagens de filas para o pão e gulags.
Sanders não oferece aquela visão
emancipatória, ou com princípios políticos anti-imperialistas, que
devemos reivindicar da esquerda, mas sua defesa incondicional do Estado
de bem estar social contrasta fortemente com as políticas, favoráveis às
corporações, de sua concorrente Hillary Clinton. E como Elizabeth
Warren provavelmente não concorrerá em 2016, apenas Sanders pode
empurrar as primárias para a esquerda, obrigando Hillary a assumir uma
série de compromissos audaciosos para apaziguar (e depois afastar,
quando eles não forem cumpridos) uma descontente base progressista.
Sanders descreveu sua possível
candidatura como uma tentativa de construir organização e pressão a
partir da esquerda: “Se eu concorrer, será por um tipo de coalizão capaz
de transformar a política”
Ao contrário da maior parte da Europa, os Estados Unidos nunca tiveram um
forte partido trabalhista que disputasse o poder e construísse um
generoso Estado de bem estar social. Porém, durante boa parte do século
passado, muitos no Partido Democrata foram capazes de construir alguns
fragmentos disso, dentro de certos limites.
Os movimentos que exerceram esse papel –
sindicatos, organizações de direitos civis e grupos comunitários –
ainda estão por aí. Mas por não terem controle estrutural algum sobre um
partido que, fundamentalmente, representa os interesses do capital, são
facilmente colocados de lado. À medida em que a distância entre eles e
as políticas perseguidas por líderes do partido, como Barack Obama,
torna-se mais evidente, não surpreende que comecem a erguer suas vozes.
Hillary Clinton está profundamente
enraizada na tradição Novos Democratas, e teve um papel na criação das
políticas que se tornaram o senso comum dentro do partido. Os Novos
Democratas juntaram-se sob o auspícios do já falecido Conselho da
Liderança Democrática (DLC, sigla em inglês), no final dos anos 1980.
Quando o “tribute-e-gaste” tornou-se eleitoralmente inviável, os
democratas supostamente deveriam promover um governo cada vez mais
reduzido e menos atuante (ainda que brincassem com uma política social
progressista, nas margens)
É inegável o papel dos Clintons na
transformação do Partido Democrata em plano nacional, ao longo dos anos
1990 (no processo, obtiveram recompensas eleitorais de curto prazo).
Afinal de contas, foi o presidente Bill Clinton – e não Ronald Reagan –
que equilibrou o orçamento e colocou um fim ao “bem estar social como o
conhecemos”. E foi Hillary Clinton, então primeira-dama, que apoiou de
maneira forte as mudanças promovidas pelo DLC, como a emenda de reforma
no Estado de bem-estar social de 1996.
O presidente Obama, apesar de suas
promessas de mudanças na batalha das primárias em 2008 contra Hillary,
não se desviou da agenda de interesses do DLC. Os liberais mais
tradicionais opuseram-se às políticas dos Novos Democratas, à falta de
ação de Hillary quanto às mudanças climáticas e à agressiva política
externa que incluiu o apoio à invasão do Iraque.
Nos últimos anos, a maré política
continuou a se mover contra os Clintons, especialmente quando começou a
crise financeira de 2008. À direita, o movimento Tea Party,
politicamente engajado e ativo, ganhou a maior parte das manchetes.
Porém, o movimento Occupy, as insurgências trabalhistas como a greve do
Sindicato dos Professores de Chicago, as ações dos trabalhadores de
fast-food, os protestos contra a violência policial e a maior atenção
dada a desigualdade de renda – tudo isso aponta para a incipiente
reemergência da esquerda nos EUA.
Eugene Debs, o socialista histórico que
inspira Sanders: organizador dos trabalhadores por toda a vida, cinco
vezes canditato à presiência dos EUA, em contato com o marxismo na
prisão
Eleitoralmente, um mix eclético de
personalidades lutou para preencher os espaços que as ações populares
abriram – desde o prefeito de Nova York, Bill de Blasio, até populistas
no Senado como Elisabeth Warren. Mas exceto Sanders, nenhuma dessas
figuras está preparada para disputar em 2016.
Sanders descreveu sua possível
candidatura como uma tentativa de construir organização e pressão a
partir da esquerda: “Se eu concorrer, meu trabalho será ajudar reunir
gente para um tipo de coalizão capaz de vencer e transformar a
política”. Isso seria a mais profunda tentativa de fazer algo do tipo
entre o Partido Democrata desde a eletrizantes campanhas de Jesse
Jackson na década de 1980.
Sanders pode apenas sonhar em reunir as
forças políticas que Jackson conseguiu, e as razões para que os liberais
mais convencionais queiram que Hillary vença as primárias são fáceis de
entender. Na esfera nacional, ela é figura mais conhecida e popular na
corrida do Partido Democrata; e pode sustentar a popularidade do partido
entre as mulheres. Ela é dura de ser batida, e uma grande vitória em
2016 pode pavimentar o caminho para um Congresso de maioria democrata.
Mas as pesquisas indicam que, assim como
o Partido Republicano despenca para a direita, o eleitorado que se
declara democrata está tendendo de maneira coerente e uniforme para
posições progressistas. No núcleo de uma potencial base para a campanha
de Sanders, está a divisão cada vez maior entre a liderança centrista do
partido e os eleitores que ainda mantêm a visão dos democratas como o
partido do New Deal e da Grande Sociedade1.
Talvez como resposta ao renovado fervor
na direita, mais democratas afirmam ser a favor de um governo ativo,
capaz de regular as corporações e garantir serviços sociais. Esse grupo
de liberais enxerga os poucos êxitos de Obama – a reforma na assistência
médica, por exemplo – como insuficientes, considerando as concessões
oferecidas por seu governo às corporações. A ausência de uma organização
como um Tea Party, para articular politicamente esses sentimentos, abre
espaço para que Sanders consolide os progressistas em um bloco
eleitoral coerente.
Enquanto isso, como o site Politico reportou,
Hillary é vista, por alguns grandes doadores liberais, como alguém
muito centrista para merecer apoio. Até mesmo aqueles que não
compartilham das políticas social-democratas de Sanders querem que ela
seja desafiada pela esquerda e veem o candidato como uma potencial
alavanca para tirar o Partido Democrata da posição de centro-direita.
É mais provável que seja Sanders quem
altere o tom e o conteúdo do debate, do que alguém como Dennis Kucinich,
o congressita de Ohio que atuou com a voz progressista solitária nas
recentes primárias presidenciais, mas jamais conseguiu conquistar um
apoio maciço. Sanders é levado a sério pelos eleitores. Ele tem a
credibilidade, e a bagagem, de alguém que é um senador, e é uma voz
poderosa na defesa da redistribuição de riqueza.
Em uma era de estagnação econômica, as
frustrações que outrora foram caladas podem ferver, em descontentamento
aberto. Há um número suficiente de pessoas à esquerda, da coalizão
democrata, para dar dor de cabeça à campanha de Hillary. Seus planos de
se descolar para o centro, para turbinar o mais rápido as perspectivas
para as eleições gerais, saíram sem dúvidas dos trilhos, por conta do
crescimento de Sanders.
Não será, é claro, suficiente para
vencer desta vez; mas, se vista como uma oportunidade para a construção
de um movimento, a candidatura de Sanders pode fortalecer a esquerda no
longo prazo. As tensões entre os democratas são sérias e podem aumentar a
possibilidade para o realinhamento das forças progressistas em bases
totalmente diferentes.
Este é um projeto diferente das tentativas de Michael Harrington (e outros) para conveter os democratas em um partido social-democrata mais tradicional, ao forçá-lo para a esquerda. Nosso objetivo deve transcender por completo o partido.
Está longe de ser um plano à prova de
falhas, mas nesse momento a melhor aposta para a esquerda na arena
eleitoral é apoiar tanto as campanhas políticas eleitorais
independentes, e as candidaturas primárias de socialistas insurgentes,
como as de outros radicais. Ter Sanders defendendo abertamente o
socialismo, e contestando o histórico dos Novos Democratas perante uma
audiência nacional é um pequeno passo na direção certa.
Certamente há perigos em uma candidatura
presidencial de Sanders. Em ocasiões anteriores, tentativas de
fortalecer movimentos sociais através de “alguém de fora” nas primárias –
como as campanhas de Jesse Jackson – acabam em becos sem saída.
Levaram, possivelmente, ao enfraquecimento dos esforços políticos
independentes.
Mas a candidatura de Sanders não precisa
ser apenas uma convergência das forças de esquerda contra uma nomeação
quase certa de Hillary. Ao invés disso, pode ser um caminho para que os
socialistas reagrupem-se, organizem-se e articularem o tipo de política
que se comunique com as necessidades e aspirações da ampla maioria das
pessoas. E poderia começar a legitimar a palavra “socialista”, servindo
como estopim para deflagrar conversas a respeito – mesmo que o
socialismo de bem estar social de Sanders não vá tão longe.
Uma vibrante campanha de Sanders seria
um sinal de que as perspectivas sombrias quanto ao emprego, e a pressão
cada vez maior sobre os trabalhadores norte-americanos, estão criando um
espaço político para a mudança. Há grande razão para acreditar que, se
ele falhar, que vozes radicais poderão tomar seu lugar, levando de
volta, ao palco principal da política, a memória de Eugene Debs.
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