De volta a seu país, ex-presidente depara-se com desafios na construção de unidade da esquerda e com disputas em sua base
24/06/2011
por Sílvia Alvarez, de Tegucigalpa (Honduras), no Brasil de Fato
Aos 59 anos, Manuel “Mel” Zelaya é um homem em busca de sua identidade. “Ainda me sinto um estrangeiro, não é fácil viver fora de seu país, perdem-se as origens”, desabafou quando perguntamos como passou os primeiros dias em Honduras depois de 17 meses de exílio na República Dominicana. O ex-presidente está de volta à casa de onde o tiraram, ainda de pijama, na madrugada de 28 de junho de 2009, quando sofreu um golpe de Estado civil-militar. O portão está bem mais vigiado, mas a casa mantém os mesmo móveis rústicos de antes, além dos muitos porta-retratos com fotografias da família.
Zelaya, no entanto, não mantém a mesma animação de quando andava com chapéu de vaqueiro convocando a população a ir às urnas opinar sobre a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. Está com ar cansado, agenda cheia e constantemente pressionado – e disputado – pelas forças políticas contrárias ao golpe. A pergunta que todos se fazem é: afinal, onde se dará a luta política de Mel, no Partido Liberal – pelo qual foi eleito presidente em 2005 e que tem em suas fileiras nomes como Micheletti – ou na Frente Nacional de Resistência Popular (FNRP), da qual é coordenador-geral?
Com a experiência de um político tradicional e com a diplomacia que lhe é característica, Zelaya evita a imprensa “golpista” e declarações decisivas sobre o tema. Propôs a criação de uma Frente Ampla, similar à que governa o Uruguai, onde poderiam conviver liberais e FNRP contra as forças mais conservadoras do país. Mas, “quem vai decidir é a assembleia nacional da Frente Nacional de Resistência Popular”, avisa. Quer retomar o projeto de convocação de uma Constituinte e defende um tipo de política que chama de liberalismo pró-socialista.
O ex-mandatário voltou ao país em 28 de maio depois de um acordo de reconciliação firmado entre ele e o atual presidente Porfírio Lobo Sosa, no marco do processo de mediação impulsionado pelos presidentes venezuelano Hugo Chávez e colombiano Juan Manuel Santos. Foi recebido por uma multidão que o esperou durante horas no aeroporto da capital Tegucigalpa.
Zelaya recebeu o Jornal Brasil de Fato para uma conversa, metade dela em sua casa, de onde saía de uma reunião com assessores, e a outra metade em um carro, rumo a outra reunião. Durante a entrevista penteava o cabelo e sorvia um ovo cru. Afinal, não há mais tempo a perder: já se foram quase dois longos anos longe do povo e da política hondurenha.
Brasil de Fato – Desde que voltou ao país, você fala na criação de um bloco político amplo, semelhante ao do Uruguai. Como se dará esse bloco e qual será a atuação da FNRP dentro desse novo campo político?
Manuel Zelaya – Bom, primeiro é somente uma ideia. Ainda não foi aprovada, temos que ir à assembleia, conseguir respaldo popular e depois aprovar. Eu vim em primeiro lugar tratar de resgatar minha própria identidade, depois de quase dois anos de golpe de Estado e de 17 meses de exílio. É um processo de transformação e de mudança ao qual vamos nos adaptando. Estamos voltando ao nosso ritmo de trabalho habitual. Tenho me dedicado por 30 anos à política… no exílio recebi muito amor da República Dominicana, mas o desterro sempre significa incerteza, uma tensão. Agora já estamos aqui, temos essa proposta (da criação da Frente Ampla) e dentro de 15 dias teremos uma assembleia e uma resposta da FNRP.
E em relação às eleições de 2013? A FNRP disse que irá se transformar em partido. Mas se esse bloco político amplo tem uma candidatura, sairá por qual partido?
A Frente Ampla é uma somatória de tendências, de correntes e de bandeiras. Se conforma como uma organização política, onde em seu seio há vários partidos políticos. Mas não necessariamente a institucionalidade dos partidos está, e sim sua militância.
O senhor tem se definido com um liberal pró-socialista. O que seria isso?
[Risos] É uma pergunta interessante. Principalmente os que lidam com o “ideológico” buscam uma definição… o que eu quero dizer com liberal pró-socialista? É uma política de transição. Nós queremos avançar a um processo pró-socialista respeitando muitos dos princípios de liberdade econômica, que são a base da diferença entre liberalismo e socialismo. Então, misturam-se ideias da visão e da responsabilidade social que têm o conceito de liberdade, mas se mantêm os princípios de liberdade econômica, onde o Estado tem poderes que lhe dá a lei, a constituição. Ou seja, são duas filosofias juntas nas partes em que coincidem: a busca do direito e da justiça para o bem comum e a liberdade a que todos nós aspiramos.
O senhor falou em liberdade econômica. Recentemente o governo de Porfírio Lobo Sosa fez um evento chamado Honduras is Open For Business que está no marco de uma política econômica de abertura para o investimento estrangeiro, inclusive com novas leis que fazem possível a construção das “cidades modelo”. O que acha desse tipo de política?
A liberdade econômica é um princípio básico para obter maior investimento nacional e estrangeiro. O que acontece é que quando se dão tantas liberdades ao capital, ele abusa e comete fraudes, como o que tem passado em Wall Street e em todas as operações financeiras que têm gerado especulação. Estou de acordo em buscar mecanismos de desenvolvimento mantendo princípios de liberdade, mas tem que colocar limites a esse conceito, se não se produzem abusos.
Agora, processos como o Honduras is open for Business não se definem como de liberdade econômica. Esses são processos de concessão. Aí não há liberdade econômica, o que há é uma proteção econômica aos que se estabelecem dentro desse processo.
Qual sua análise da situação de Honduras hoje, depois de quase dois anos do golpe?
Em Honduras há uma crise social há vários séculos, desde a época da conquista. O extermínio indígena que aconteceu aqui foi um fato pavoroso na história do país. Há uma crise econômica também por falta de capacidade produtiva e extrema pobreza. Quando cheguei ao governo (em 2005), 45% da população estava em extrema pobreza. Nós baixamos esse percentual em quase 19 pontos em dois anos, e conseguimos um crescimento de 7% sustentado em todo o meu governo. Então, há uma crise histórica e uma crise agravada depois do golpe de Estado militar. Hoje, estamos vivendo os aspectos específicos do agravamento dessa crise que se deu por uma interrupção da ordem democrática do país, a qual gerou terríveis conflitos dentro dos problemas que já estavam latentes em todo o conceito de governabilidade social.
Por causa dessa crise, ocorreram muitas mobilizações de rua nesses dois anos, principalmente as organizadas pela FNRP. Qual sua opinião sobre esse tipo de luta?
Ela sempre existiu. Existe algum lugar no mundo em que os operários não reclamem por melhores salários? Onde os camponeses não exijam o acesso à terra? São processos que nascem da necessidade e se resolvem de acordo com a capacidade de diálogo que tem o governo. O povo tem o direito a fazer greve, manifestações públicas. O que aconteceu é que o índice de conflito social aumentou. Depois do golpe aumentou 100%.
Uma das principais bandeiras da FNRP é a realização de uma Assembleia Nacional Constituinte. Como se dará esse processo?
A América Latina está conduzindo vários processos democráticos, pacíficos e revolucionários. É a América Latina que está dirigindo essa visão no mundo. Primeiro de descolonização frente às economias dominantes que são as do dólar e as do euro. Um dos países que estão dirigindo isso é o Brasil. No governo de Lula e agora com a continuidade de Dilma, assim entendo, se abriram as fronteiras para Ásia, para o Leste Europeu e para a África, Índia, China – e o mesmo estão fazendo as outras economias da América do Sul. E tratando de sair da hegemonia do dólar e do euro.
O segundo processo que se está impulsionando na América Latina é o empoderamento dos direitos da população. O povo está conhecendo mais em que consistem seus direitos democráticos. Considero uma das ações mais importantes do século 21 e do final do século 20. “Empowering men” dizem os americanos. Empoderando-se os seres humanos deles mesmos.
O terceiro conceito que também se está promovendo de forma pacífica é a soberania popular. O fato de que o povo tem a capacidade de conduzir-se através de processos de consulta, referendo, é parte dessa revolução democrática pacífica que está liderando a América Latina. Criou-se a União das Nações Sul-Americanas (Unasul), por exemplo, estão criando a Comunidade de Estados Latinoamericanos e Caribenhos (Celac). Estamos em um verdadeiro processo de independência e de descolonização. A Assembleia Nacional Constituinte que se dará em Honduras está nesse mesmo conceito de soberania, ampliação democrática e de descolonização.
Os Estados Unidos anunciaram recentemente a intenção de construir outra base militar em Honduras. Sabemos que a base militar de Palmerola teve função importante no golpe de Estado, inclusive foi pra lá que o senhor foi levado quando sofreu o golpe. Que papel os EUA seguem tendo no atual governo de Honduras?
Honduras é um país sob intervenção comercial, econômica, militar e cultural dos Estados Unidos. E esse controle férreo sobre todos os passos de Honduras não deu todos os resultados de benefícios e desenvolvimento que nós queremos. Honduras é a terceira economia mais pobre do continente americano. Eu não vou culpar a outro país pelos problemas de Honduras. Mas sim, temos o direito no nosso país de buscar maior independência. Os responsáveis pela direção de Honduras são os da sua classe governante. A burguesia hondurenha é extremamente débil frente ao capital estrangeiro, o capital de Washington. Então, se submetem a condições onerosas, as quais não lhe permitem criar as bases para um desenvolvimento equitativo de Honduras.
Na última assembleia da OEA, na qual Honduras já estava inserida, tratou-se do tema da violência e do narcotráfico. Sabemos que Honduras está na rota do fluxo de droga proveniente da Colômbia rumo à América do Norte. Na sua opinião, quais são os interesses envolvidos nessa questão?
Veja, América Central e México estão em um corredor, onde a droga que se produz no sul se consome no norte. E todo o nosso povo, nossos governos, são vítimas desse negócio ilícito, que é o tráfico. Organizam máfias, grupos de terror, criam destruição e morte por onde vão passando. Isso não vai se resolver enquanto não se faça um acordo entre Estados Unidos e América do Sul, América Central e México. Esse não é um problema local. Tem que ter um acordo internacional.
Ainda no tema da violência. Na região do Baixo Aguan, ao norte de Honduras, aconteceram 31 assassinatos de camponeses nos últimos 15 meses. Quais as origens dessa violência e do conflito por terras nessa região?
Eu, por minha natureza ideológica, sou contra as penas difamantes, como a pena de morte. E defendo, pela minha religião cristã, o direito à vida. Todos os atos de violência, para mim, são contrários à civilização. Nós condenamos os assassinatos no Baixo Aguan, assim como os massacres que ocorreram em San Pedro Sula e os assassinatos de pessoas da Frente Nacional de Resistência Popular. Sempre levamos denúncias aos organismos de direitos humanos e internacionais. Vamos seguir nessa luta pela paz para que em Honduras cessem os assassinatos, crimes e violência. E também que, especialmente esse tipo de crime, o político, não aconteça mais em nosso país. E que não tenham perdão, nem anistia.
E os conflitos pela terra, quais são as origens?
Eu conheço muito bem o processo que se degenerou até chegar a esse nível de violência em Baixo Aguan. Eu governei esse país numa época em que se deram processos de recuperação de terra. Fui firmar acordos com organizações campesinas para buscar solução. Considero que esses conflitos – que se dão pelo direito à propriedade – devem resolver-se o mais rápido possível. E devem resolver-se com base na justiça e na equidade. Tantos direitos têm os homens sem terra, por exemplo, o direito de buscar a vida que perderam nesse conflito.
O senhor saudou o retorno de Honduras à OEA, ao mesmo tempo a maior parte da resistência é contrária a esse retorno. Porque essas opiniões discordantes?
Tem que respeitar as opiniões diferentes e os critérios deles. Têm razão em reclamar a defesa dos seus direitos. O que acontece é que pensar que a OEA vai vir fazer a justiça em Honduras… a justiça temos que fazer nós, hondurenhos, e fazê-la nas urnas, como democratas. Estou falando politicamente. Em relação aos direitos humanos, os assassinatos e crimes, estes não são anistiáveis. Temos que buscar nossa própria legalidade. Que tenhamos o governo que o povo merece. Não esperemos que venham organismos internacionais a fazer por nós o que nós temos a responsabilidade de fazer.
A OEA fez muitas ações em defesa da democracia hondurenha. Suspendeu Honduras [logo depois do golpe, em 2009] e realmente defendeu Honduras nos momentos mais críticos da ditadura. Agora estamos em outra etapa. O governo firmou um acordo de reconciliação, que é uma reconciliação política e, desse ponto de vista, abriu as portas de Honduras para a legitimidade internacional. Mas, ainda falta muito na questão dos direitos humanos, sociais e econômicos.
Como está sua agenda desde que chegou a Honduras?
Desde que cheguei aqui estou em atividade. Não tenho feito mais do que lutar por direitos políticos do povo hondurenho e a isso estou dedicado. Propus uma Frente Ampla, acredito que esse é o caminho para aglutinar força política frente às forças mais conservadoras do país.
O Brasil cumpriu um papel importante na época do golpe, inclusive colocando a embaixada brasileira à sua disposição. Quais são suas expectativas com o governo de Dilma?
Sei que ela tem continuado a política de distribuição econômica do governo Lula e isso é muito bom. Estou muito agradecido ao Brasil, com o apoio que nos deu. Não seria possível meu retorno sem o apoio do Brasil.
Extraido do site do Azenha: www.viomundo.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário