Campeão nacional de transplantes, e referência em ensino e pesquisa, Instituto do Coração tem excelência ameaçada por problemas comuns a hospitais públicos
Alecsandra Zapparoli e Daniel Bergamasco | 22/06/2011
O pronto-socorro, na quarta (15): em dias mais críticos, a lotação supera 240% da capacidade
Mario Rodrigues
Prezados senhores, no dia de hoje temos 61 pacientes no pronto-socorro do Incor, cuja lotação é de 34, sendo 1 paciente entubado e sob ventilação mecânica. Há 8 pacientes com indicação de internação e que ainda estão sentados nas cadeiras, pois não há nem macas nem espaço para acomodá-los. Tivemos de recusar pacientes com síndrome coronariana aguda pelo exposto acima. Não podemos receber mais nenhum paciente, sob risco de comprometer a segurança do ambiente.” O e-mail em tom aflito, exatamente assim, com algumas palavras e números em negrito, foi disparado no dia 23 de março pelo cardiologista Múcio de Oliveira, diretor há quatro anos do pronto-socorro do Incor, o Instituto do Coração. A mensagem era endereçada à central que gerencia as vagas do SUS na cidade e aos principais médicos do hospital. Há duas semanas, o mesmo remetente continuava pedindo trégua: “A sala de emergência está com lotação de 200% da sua capacidade...”.
Mario Rodrigues
UTI cirúrgica: 83% das operações são feitas pelo SUS
Situações dramáticas como essas não são, infelizmente, novidade no sistema público de saúde do Brasil. O que causa espanto nas cenas descritas acima é o fato de elas acontecerem dentro do maior centro de tratamento e pesquisa de cardiologia do país, que ganhou fama internacional pela sua excelência. Desde que foi inaugurada, em 1977, pelo cirurgião Euryclides de Jesus Zerbini, responsável pelo primeiro transplante de coração do país, essa unidade do Hospital das Clínicas e da Faculdade de Medicina da USP atendeu milhões de pacientes anônimos e famosos. Não por acaso, foi ali, e não em hospitais privados, que políticos como Tancredo Neves (1910-1985), Mario Covas (1930-2001) e Antonio Carlos Magalhães (1927-2007) se trataram no fim de suas vidas.
São histórias e números admiráveis que só reforçam a preocupação quando algo na saúde desse gigante não vai bem. A superlotação do pronto-socorro deve-se à alta demanda, à falta de vagas para internação no instituto e à baixa rotatividade dos leitos, em alguns casos devido à alta complexidade dos pacientes que aparecem ali. “Hoje o pronto-socorro é o nosso principal problema”, afirma o cirurgião Fabio Jatene, que assumiu em janeiro a presidência do conselho diretor do hospital. Há um projeto de obras para aliviar esse quadro. Ao custo de 30 milhões de reais, pleiteados junto aos cofres estaduais, a ampliação possibilitará aumentar de quinze para trinta o número de poltronas usadas por pacientes em observação e melhorar o conforto nos outros leitos, hoje amontoados. Além disso, promete criar trinta vagas para procedimentos de hemodinâmica, como cateterismos e angioplastias, que podem reduzir a necessidade de cirurgias. “Mas a situação do pronto-socorro só vai melhorar quando houver uma reorganização da rede estadual de saúde”, diz Jatene.
Mario Rodrigues
Ambulatório de especialidades: aumento na espera para consultas
Essa ferida aberta já se reflete na opinião dos usuários do Incor. Uma avaliação feita pela Secretaria Estadual de Saúde com 204.000 pacientes de 630 unidades hospitalares e outros centros de todo o estado, entre julho e dezembro de 2010, elegeu os dez melhores hospitais, maternidades e serviços ligados ao Sistema Único de Saúde (SUS). O Incor, que já figurou no ranking, desta vez não aparece na lista dos dez primeiros colocados. O hospital rebate com pesquisa interna que mostra que 97% dos atendidos recomendariam seus serviços. As filas para consultas, exames e cirurgias eletivas aumentaram nos últimos tempos. Pacientes levam mais de um ano para conseguir agendar um básico ecocardiograma; mais de seis meses para cirurgias de válvula ou das coronárias — neste último caso, há cerca de 400 pessoas à espera. Cria-se, assim, um sistema que, como veias já quase obstruídas que não param de receber gordura, corre o risco de entrar em colapso.
Na contramão dessa demanda, o ritmo das cirurgias caiu. O total de operações de coração realizadas nos últimos cinco anos no Incor decresceu 22%. É verdade que as cirurgias, antes inevitáveis em caso de infarto e outras ocorrências similares, perderam terreno para os procedimentos menos invasivos e para os medicamentos que ajudam a prevenir novos ataques, mas nesse mesmo contexto outros hospitais daqui têm aumentado a sua produtividade. No estadual Dante Pazzanese, o número de cirurgias cardíacas cresceu 16% entre 2006 e 2010. O Albert Einstein registrou aumento de 7% (entre 2005 e 2010) e o Sírio-Libanês, 25% desde 2008. Vários deles ampliaram seus serviços e investiram nessa área.
Mario Rodrigues
Laboratório que analisa o potencial de rejeição para transplantes: referência em pesquisa e diagnóstico
O atendimento, no entanto, é um dos três importantes pilares do Incor — os outros são ensino e pesquisa. Atualmente é elaborada ali uma das maiores esperanças mundiais para o desenvolvimento de uma vacina contra a febre reumática. Além disso, alguns dos melhores profissionais do mercado se diplomaram no Incor. Nos últimos anos, porém, o número de alunos de pós-graduação diminuiu paulatinamente. Eram 130 em 2007 e 102 em 2010. Já a quantidade de teses, que era de 47 em 2007, declinou para 35 em 2010. Na área de pesquisa científica, os números também apontam para baixo. Jatene ressalta que o volume mais importante, o de artigos em revistas científicas, não caiu, mas a soma de publicações (se incluídos, além de revistas, livros, teses e comunicações em congressos) foi de 1.438 para 1.045 em quatro anos.
A insatisfação latente com quedas de desempenho extrapolou os muros do hospital. Em 2009, o promotor de saúde pública Arthur Pinto Filho, após receber abaixo-assinado com mais de 100 assinaturas de cardiologistas inconformados com a transferência da área de pneumologia, que antes funcionava no instituto central, para o Incor, abriu inquérito para tomar pé do que ocorria. Acabou convencido de que a situação vem mesmo piorando desde então. A partir de 2007, uma pequena parte dos 535 leitos do Incor passou a ser destinada à especialidade. “A falta dessas vagas agrava as filas de espera”, aponta o promotor. Pinto Filho não é o único a dizer que a inclusão da nova demanda sem aumento da estrutura prejudicou o atendimento de patologias cardíacas. O cirurgião Noedir Stolf, que presidia o conselho da instituição quando a transferência foi feita e hoje é responsável pela divisão de cirurgia cardíaca, afirma que tais leitos fazem falta. “Mas essa foi uma decisão do Hospital das Clínicas, e não uma escolha do Incor”, pondera.
Mario Rodrigues
Prédio do instituto, em Cerqueira César: ampliação em 1998 causou dívidas que se arrastam até hoje
Em outro aspecto, o financeiro, o Incor ainda carrega o fardo de dívidas feitas em gestões passadas pela Fundação Zerbini, órgão privado responsável por administrar e atrair recursos para o hospital, que é público. O montante chegou a superar os 240 milhões de reais, há cinco anos, até que o parcelamento foi negociado com seus credores — o maior deles é o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Honrar os pagamentos sufoca o orçamento e dificulta qualquer tipo de investimento, seja em melhorias salariais para seus funcionários, seja em infraestrutura e equipamentos.
Só no ano passado, o débito engoliu 48 milhões de reais dos 378 milhões da receita anual total. E ainda falta pagar cerca de 123 milhões. O endividamento começou em 1998, quando foi construído o segundo prédio do instituto, na época comandado por uma de suas maiores estrelas, Adib Jatene. Enquanto essa bola de neve só engrossava, o instituto se lançou em outra empreitada: a criação do Incor em Brasília, em 2004. Essa expansão aconteceu na gestão de José Franchini Ramires, que acabou afastado em 2005 pelo conselho deliberativo do Hospital das Clínicas, acusado de má gestão. Três anos depois, no entanto, Ramires recuperou sua cadeira na Justiça. “Herdei dívidas antigas da ampliação do prédio e a unidade de Brasília foi criada com recursos obtidos diretamente para isso”, afirma.
É professor titular de cardiologia clínica da Faculdade de Medicina da USP, cargo que lhe confere também a chefia da divisão dessa área dentro do Incor. Isolado dos demais, contudo, Ramires não integra o conselho que toma as principais decisões do prédio. “Fiquei amarrado devido a disputas políticas”, diz. A consequência direta dessa briga é que a cardiologia, tão fundamental para o instituto, tem menos voz do que deveria.
Nos corredores do hospital, o debate em torno de problemas e soluções cresce com a proximidade do concurso para o novo professor titular da área, que acontecerá entre 3 e 5 de agosto, para a substituição de um docente aposentado. É uma chance de a cardiologia recuperar sua expressividade. A escolha ficará a cargo de uma banca composta pela USP.
Torcidas contrárias e favoráveis aos candidatos inscritos já fazem bastante barulho nos bastidores. Estão no páreo quatro médicos prestigiados (diante da fogueira de vaidades dos estetoscópios, vale ressaltar que são aqui listados em ordem alfabética): Bruno Caramelli, diretor da Unidade Clínica de Medicina Inter disciplinar em Cardiologia; Edimar Bocchi, diretor da Unidade de Insuficiência Cardíaca e Transplante; Luiz Antonio Machado César, diretor da Unidade de Coronariopatia Crônica; e Roberto Kalil Filho, cardiologista da Unidade Clínica de Coronariopatia Aguda e médico da presidente Dilma Rousseff.
Seja qual for o resultado, o importante é que o diálogo se fortaleça e que o coração desse instituto do qual os paulistanos tanto se orgulham volte a bater em bom compasso, como em seus tempos mais prodigiosos.
UM GIGANTE DA MEDICINA
75.000
metros quadrados de área construído em dois prédios
75.000
metros quadrados de área construído em dois prédios
535
leitos, sendo 157 de UTIs de alta complexidade
leitos, sendo 157 de UTIs de alta complexidade
12 salas
de diagnóstico de alta complexidade (tomografia, ressonância e medicina nuclear)
de diagnóstico de alta complexidade (tomografia, ressonância e medicina nuclear)
2 milhões
de exames de análises clínicas por ano
de exames de análises clínicas por ano
378 milhões
de reais foi o valor da receita em 2010
de reais foi o valor da receita em 2010
48 milhões
de reais foram gastos com dívidas no período. Faltam 123 milhões
de reais foram gastos com dívidas no período. Faltam 123 milhões
330.000
exames de diagnóstico de alta complexidade por ano
exames de diagnóstico de alta complexidade por ano
3.000
funcionários, sendo 400 médicos
funcionários, sendo 400 médicos
Nenhum comentário:
Postar um comentário