Do Opera Mundi
Chegando ao Vale Imperial da Califórnia no começo de abril, pode-se ver a neve que cobre as pedras do deserto e as casinhas da Polícia de Fronteira, que emergem ao longo do caminho. A estrada Kumeyaay Freeway corre paralela ao trecho mexicano da Rumorosa e desce até uma zona agrícola organizada e tranquila.
Holtsville é um centro habitado por pouco mais de cinco mil pessoas no Vale Imperial. Durante o século XX, foi famoso como sede do Imperial Valley Carrot Festival, o festival da cenoura. A mesma Imperial Valley (nome em inglês) é um dos condados que mais concentram atividades agrícola nos Estados Unidos. Porém, essa terra fértil também tem espaço para hospedar e esconder os corpos sem nome de quase 700 imigrantes.
Federico Mastrogiovanni/Opera Mundi
As centenas de cruzes fincadas no cemitério de Holtsville trazem a mesma frase: "Não esqueçcam de nós"
As centenas de cruzes fincadas no cemitério de Holtsville trazem a mesma frase: "Não esqueçcam de nós"
Hoje, o pequeno povoado californiano de Holtsville poderia se tornar famoso por abrigar um cemitério de desconhecidos, quase todos presumivelmente imigrantes mexicanos e centro-americanos, que ocupam silenciosamente o pátio dos fundos do cemitério municipal, o Terrace Park Cemetery, onde descansa em paz também Erik H. Silva, o primeiro marine de origem mexicana morto na operação Liberdade Iraquiana, em 4 de abril de 2003, aos 24 anos.
A partir de 1997, o espaço que fora dedicado aos mortos "sem nome" no cemitério de El Centro, a cidade mais importante do condado, se esgotou. Decidiu-se então abrir uma vala comum na vizinha Holtsville.
“O número de mortos começou a aumentar em 1997, quando surgiram os primeiros resultados da Operação Guardião", lembra Enrique Morones, fundador da organização de defesa dos direitos humanos Border Angels e ganhador, em 2009, do prêmio mexicano de direitos humanos. "E também quando os imigrantes mexicanos e centro-americanos começaram a cruzar a fronteira pelo deserto desta região. Eles começaram a ser enterrados no cemitério de El Centro, mas este logo ficou lotado, com os primeiros 25 ou 30 corpos. Então começaram a enterrá-los por aqui. O que cabe destacar é a conexão direta que existe entre as leis migratórias racistas dos EUA e as milhares de mortes que ocorrem ao longo de toda a fronteira com o México. Não são mortes casuais, trata-se de uma política migratória que provoca a morte sistematicamente”.
A área tem cerca de três mil metros quadrados e fica ao lado do verde e tranquilo cemitério, cheio de flores. Trata-se de uma esplanada de terra simples, riscada por centenas de pequenos tijolos cinzas ou marrons, dispostos a um metro um do outro. Cada tijolo identifica o local de sepultamento de uma pessoa e faz parte de longas fileiras paralelas de pequenas cruzes.
As cruzes são montadas e decoradas por estudantes das universidades de San Diego, que enviam voluntários à organização dos Border Angels. "É uma forma de não esquecer esses mortos", explica uma jovem da Universidade Estadual de San Diego, "pois sua identidade já não é conhecida e eles não têm ninguém que os visite ou recorde. Pelo menos nós lhes colocamos uma cruz."
Sempre houve mortes nesta zona fronteiriça, por causa das condições extremas do deserto, por hipotermia, por causa da exposição ao frio das noites e do inverno, desidratação provocada pelo calor do verão, afogamento durante a travessia do rio. Mas o número de vítimas aumentou muito com as novas políticas migratórias.
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Nos últimos anos, aumentou o fluxo de corpos sem nome, afirma Martín Sánchez, encarregado das sepulturas no pequeno cemitério. “Nos últimos anos têm chegado com mais frequência corpos encontrados pela Patrulha de Fronteira ou por outroas pessoas”, diz o empregado, que trabalha aqui desde o início. “Mas podemos encontrar um corpo a cada semana ou não encontrar nada durante seis meses. É como se eles caíssem aqui. Logo lhes damos um número e uma placa de cimento. E pronto. Podem ser encontrados aqui no deserto, ou na montanha rumo a San Diego, ou no rio."
Os quase 700 corpos enterrados em Holtsville quase superam o número de túmulos “normais” no cemitério. Não parece um número muito elevado quando se considera o comprimento da fronteira que separa o México dos EUA, mas é impressionante quando se pensa no pequeno trecho de fronteira onde os corpos foram encontrados, e no fato de quase todos serem desconhecidos. Em um cemitério normal de um povoado como Holtsville, os túmulos sem nome não chegam a poucas dezenas em várias décadas.
Os corpos enterrados na vala comum geralmente são encontrados pela polícia de fronteira e, às vezes, pelos voluntários dos Border Angels ou mesmo por alguém que está apenas de passagem.
"John Doe"
“Quando são encontrados, são levados ao necrotério do condado”, conta Martín. “Os corpos, ou os ossos, dependendo do que se encontra, permanecem ali por alguns dias. São feitas análises de DNA e são registradas suas impressões digitais. Espera-se algum tempo, caso alguém venha reclamá-los. Mas isso nunca acontece. Só uma vez uma senhora veio do México reclamar de um parente que havia desaparecido. Foi possível encontrar seu registro graças às impressões digitais, e seu corpo foi levado ao México. Mas, em geral, depois de alguns dias de espera, os corpos são levados para a vala e escreve-se em um tijolo 'John Doe', se for um homem ou menino, e 'Jane Doe' se for uma mulher ou menina."
Esse nomes são normalmente utilizados nos EUA para indicar pessoas não identificadas ou desconhecidas.
No condado de Imperial Valley, a maioria das pessoas não conhece este lugar. E as instituições evitam falar do tema ou encontrar as associações de voluntários que, de vez em quando, vêm deixar cruzes e flores para os mortos, que sensibilizam sobre a imigração.
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As autoridades do condado de Holtsville, que se encarrega do enterro dos desconhecidos, embora se ocupem dos corpos, preferem não tornar público o fato de haver tantos imigrantes sepultados em seu território. "Os funcionários do condado não querem que se fale dessa vala comum, nem que se fale desses 700 mortos sem nome", afirma John Hernández, ativista mexicano e presidente do centro multicultural Our Roots de El Centro.
"Aliás, nome eles têm, só que ninguém sabe qual é. Muitas vezes os responsáveis pelo cemitério tiram as cruzes que colocamos aqui, porque é contra o regulamento do local. Não querem que se chame a atenção para este lugar, nem da mídia, nem das organizaçoes. Então, voltamos e recolocamos as cruzes, para que esses mortos não sejam esquecidos". É por isso que os voluntários dos Border Angels insistem em levar os jovens das escolas e universidades para ver o lugar.
Os Border Angels são uma associação civil da Califórnia que, desde 1986, oferece serviços de advocacia, educação e apoio humanitário aos imigrantes da fronteira, por meio da instalação de estações de água no deserto e da distribuição de roupas e alimentos aos imigrantes e boias-frias. No lado político, eles fazem pressão por uma reforma migratória integral.
Os quase 700 corpos enterrados no cemitério de Holtsville representam apenas uma parte das mortes “sem nome” que ocorrem a cada dia na fronteira entre o México e os Estados Unidos.
Segundo um informe elaborado pela associação de defesa dos direitos humanos No More Deaths e pela Coalizão de Direitos Humanos, que atuam na fronteira entre Sonora e Arizona, os corpos encontrados apenas na zona fronteiriça de Tucson entre 1º de outubro de 2009 e 30 de setembro de 2010 seriam 253. A maioria desses mortos não foi reconhecida e continua sem nome. Segundo essas organizações, de 1º de outubro de 2010 até hoje, morreram 59 imigrantes na mesma zona.
Nas fileiras de pequenas cruzes coloridas, que vigiam os tijolos dos muitos John e Jane Does, os voluntários das organizações sociais da fronteira fazem sóbrias orações laicas para lembrar as centenas de mortos esquecidos, para que nunca se considere um acontecimento normal a morte resultante da aplicação de leis migratórias.
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