6/9/2011, Pepe Escobar, Asia Times Online
Traduzido pelo coletivo da Vila Vudu
Chega de falar da derrubada do Grande Gaddafi. Agora, chegamos aos finalmentes: será Afeganistão 2.0, Iraque 2.0, ou uma mistura dos dois.
Os “rebeldes da OTAN” sempre garantiram que não querem ocupação estrangeira. Mas a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) – sem a qual não haveria vitória dos “rebeldes” – não pode governar a Líbia sem coturnos em solo. Assim sendo, examinam-se hoje vários cenários virtuais no quartel-general da OTAN em Mons, Bélgica – a OTAN protegida sob o estofamento de veludo da ONU.
Segundo planos já vazados, mais cedo ou mais tarde podem aparecer por lá soldados das monarquias do Golfo Persa e aliados amigáveis, como a Jordânia e, especialmente, como a Turquia, que é membro da OTAN e interessada em embolsar vastos contratos comerciais. Dificilmente alguma nação africana fará parte do grupo – dado que a Líbia foi “relocalizada” e, agora, é parte das Arábias.
O Conselho Nacional de Transição aceitará – ou será forçado a aceitar – se, ou quando, a Líbia entrar em espiral de total caos. Mesmo assim não será produto fácil de vender internamente – com as furiosamente disparatadas facções dos ‘rebeldes da OTAN’ já empenhados freneticamente em consolidar seus respectivos feudos e prontas para saltarem, umas nos pescoços das outras.
Não se vê nem sinal, até aqui, de que o Conselho Nacional de Transição tenha qualquer ideia sobre o que fazer para administrar a complexa paisagem política dentro da Líbia, além das repetidas genuflexões ante o altar das nações membros da OTAN.
Guns e nada de roses
Na Líbia, praticamente toda a população está hoje armada até os dentes. A economia está paralisada. E já está em campo a mais feroz briga de gatos-do-mato pelo controle dos bilhões de dólares congelados dos líbios.
A tribo Obeidi está furiosa com o Conselho Nacional de Transição, porque não há nem sinal de investigação para saber quem matou o comandante militar do exército “rebelde” Abdul Fattah Younis dia 29 de julho. Já ameaçaram fazer justiça pelas próprias mãos.
Os principais suspeitos do assassinato são os homens da Brigada Abu Ubaidah bin Jarrah – uma milícia islâmica fundamentalista linha duríssima que rejeitou a intervenção da OTAN, recusou-se a combater sob comando do Conselho Nacional de Transição e declarou “infiéis” o Conselho e a OTAN.
Há também a pergunta que tantos tentam afogar em petróleo: quando o ramo da al-Qaeda na Líbia, a nuvem de guerrilha islâmica conhecida como Grupo Islâmico de Combate na Líbia [ing. Lybia Islamic Fighting Group (LIFG)], organizará seu próprio golpe para derrubar o Conselho Nacional de Transição?
Por toda Trípoli veem-se os ecos gráficos do inferno das milícias armadas que se viu no Iraque. O general Abdelhakim Belhaj - que trabalhou para a CIA-EUA e foi prisioneiro da “guerra ao terror” – original do círculo de Derna, o marco zero do fundamentalismo islâmico na Líbia – é o líder do novíssimo Conselho Militar de Trípoli.
Já houve acusações, feitas por outras milícias, de que Belhaj não combateu na “libertação” de Trípoli e, portanto, tem de deixar o posto – verdade ou mentira, é o que o Conselho anda dizendo. Isso significa que, mais dia menos dia, a nuvem indefinida conhecida como LIFG-al-Qaeda estará empenhada num dos lados da guerra de guerrilhas que virá – contra o Conselho Nacional de Transição, contra outras milícias ou contra todos.
Em Trípoli, rebeldes de Zintan, nas montanhas do oeste do país, controlam o aeroporto. O banco central, o porto de Trípoli e o gabinete do primeiro-ministro são controlados por rebeldes de Misrata. Berberes da cidade de montanha de Yafran controlam a praça central de Trípoli, coberta com dísticos de “Revolucionários de Yafran”, escritos com spray. Todos demarcam claramente os respectivos territórios, como aviso.
Como o Conselho Nacional de Transição, como unidade política, já está se comportando como pato manco; como as milícias não sumirão no ar – não é preciso muita imaginação pra prever que a Líbia será um novo Líbano. No Líbano, a guerra começou quando toda a cidade dividiu-se, cada subúrbio de um grupo: ou sunitas, ou xiitas, ou cristãos maronitas, ou nasseristas ou druzos.
Além do mais, a libanização da Líbia também inclui a mortal tentação muçulmana – que se espalha como vírus por toda a Primavera Árabe.
Pelo menos 600 salafistas que combateram na resistência sunita iraquiana contra os EUA foram libertados pelos “rebeldes” e deixaram a prisão de Abu Salim. É fácil prever que tirarão o máximo proveito possível das muitas Kalashnikovs e dos lança-granadas Sam-7, soviéticos, de ombro, para combate antiaéreo, aproveitando-os para reequipar sua milícia islâmica ultra linha-dura – sem se afastar de sua própria agenda e de sua própria guerra de guerrilhas.
Bem-vindos à nossa “democracia” racista
A União Africana (US) não reconhecerá o Conselho Nacional de Transição. Está acusando os “rebeldes” da OTAN de matar indiscriminadamente negros africanos, metidos todos num mesmo saco, identificados como “mercenários”.
Segundo Jean Ping, da União Africana, “o Conselho Nacional de Transição parece confundir pessoas de pele negra e mercenários (...) [Dão a impressão de que, para eles] todos os negros são mercenários. Um 1/3 da população líbia é negra. Para o Conselho Nacional de Transição, são todos mercenários”.
O pequeno porto de Sayad, 25 km a oeste de Trípoli, foi convertido em campo de refugiados para africanos negros apavorados com a nova “Líbia livre”. A organização Médicos sem Fronteira descobriu o campo dia 27 de agosto. Os refugiados dizem que, desde fevereiro, começaram a ser expulsos pelos donos das empresas e lojas onde trabalhavam, sempre acusados de serem mercenários – e, desde então, têm sido sistematicamente perseguidos.
Segundo a mitologia “rebelde”, o regime de Muammar Gaddafi seria protegido essencialmente por murtazaka (“mercenários”). A verdade é que Gaddafi empregou apenas um contingente de combatentes africanos negros – do Chad e do Sudão e tuaregues do Niger e do Mali. A maioria dos africanos negros subsaharianos que vivem na Líbia são trabalhadores migrantes, com empregos legais.
Para ver em que direção está andando essa coisa toda, é preciso olhar para o deserto. O imenso deserto líbio não foi conquistado pela OTAN. O Conselho Nacional de Transição praticamente não tem acesso a nenhuma gota d’água líbia e não chega a parte considerável do petróleo.
Gaddafi tem a chance de “trabalhar o deserto”, de negociar com várias tribos, de comprar e firmar a solidariedades delas e de organizar uma guerra de guerrilha de longo prazo.
A Argélia está envolvida em luta terrível contra a Al-Qaeda-no-Maghreb. Os 1.000 km da longa, porosa fronteira entre Argélia e Líbia continua aberta. Gaddafi pode facilmente plantar seus guerrilheiros no deserto do sul, com paraíso seguro na Argélia – ou até no Niger. Essa possibilidade já pôs o Conselho Nacional de Transição em estado de terror e pânico.
A operação “humanitária” da OTAN já despejou no mínimo 30 mil bombas sobre a Líbia, nos últimos poucos meses. Pode-se dizer com segurança que muitos milhares de líbios foram mortos nos bombardeios. O bombardeio não pára nunca: mais um pouco, os únicos alvos da OTAN serão os mesmos – civis e não civis – que, em teoria, há alguns dias, a OTAN estaria “protegendo”.
Um Grande Gaddafi derrotado pode vir a revelar-se muito mais perigoso que um Grande Gaddafi no poder. A verdadeira guerra está começando agora. Será infinitamente mais dramática – e será trágica. Porque agora será uma guerra norte-africana darwiniana, guerra de todos contra todos, na qual só o mais forte sobreviverá.
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