sábado, 22 de outubro de 2011

Banqueiros querem parar o trem da história


Da Carta Maior


Se nas ruas da indignação ainda há quem conceba enfrentar a crise à margem do poder de Estado, do outro lado da trincheira os banqueiros não alimentam dúvidas, nem acreditam em querubins.
Nos últimos dias, dois fatos ilustraram essa duplicidade. Sábado (15), milhões de pessoas manifestaram-se em um milhar de cidades do planeta contra o colapso econômico impulsionada pela supremacia das finanças sem lei. Na segunda-feira seguinte, 17, de forma inusitada, o banqueiro Emilio Botín, dono do Santander, foi categórico ao arremeter contra a restauração do poder de Estado sobre o setor: "É preciso frear o trem da regulação", sentenciou, emprestando uma bandeira a seus pares em reunião internacional, na Espanha.
Banqueiros falam pouco. Não precisam gastar saliva. O dinheiro fala por eles. O recado de Botín é um sintoma da gravidade alcançada por uma crise que interligou a finança privada e a finança pública numa entropia corrosiva de ajuste incontornável.
A dúvida paralisante é quem arcará com o fardo de elevada octanagem, que pode se traduzir em sacrifícios sociais explosivos ou em perdas patrimoniais robustas.
É justamente a repartição desse ônus que a fala de Don Bottin pretendeu influenciar brandindo contra 'o trem da regulação'.
O impasse entre os interesses das ruas e aqueles condensados na sentença do banqueiro explica a desconcertante incapacidade das lideranças do euro em oferecer respostas ao conflito emblemático desta crise: o explosivo laboratório do colapso grego (leia reportagens do correspondente de Carta Maior em Atenas).
A dívida da Grécia - 300 bi de euros - é impagável. Mas um calote desorganizado significaria a espoleta de uma desastrosa replicação de insolvências latentes (Itália, Espanha, Portugal, Bélgica, Irlanda etc). Para o bem e para o mal, a Grécia é a prefiguração do futuro do euro.
E é isso que inquieta Don Botín.
A Grécia lava nas ruas a roupa suja de um matrimônio harmonioso enquanto a desregulação neoliberal permitiu, a um lado, oferecer crédito ilimitado; ao outro, acomodar um mix de isenção fiscal para os ricos,endividamento galopante para o Estado e manutenção de serviços sociais ao conjunto da população (estamos falando da Europa).
A ruptura do idílio impõe uma repactuação entre os atores para que o conjunto possa seguir a vida. Precede o passo seguinte da história, porém, a litigiosa distribuição das perdas e danos do ciclo que se fecha.
Há perguntas incômodas na agenda oculta das cúpulas do euro. Quanto os bancos credores estão dispostos a perder é a principal delas. Qual o 'desconto' da dívida que concordam em conceder para evitar uma entropia que, na Grécia, já flerta com a conflagração civil?
Especialistas calculam como inevitável um deságio superior a 50%. Significa que de cada 10 euros emprestados a Atenas, os bancos abririam mão de cinco - mais o alongamento de prazos do saldo e novos aportes para rebocar o país do pântano.
E ainda não é tudo. Antes de conceder o desconto, os bancos terão que fazer provisões. Reforçar o caixa com dinheiro próprio para que o mercado, de um modo geral, tenha a certeza de que a renegociação das dívidas não implicará no esfarelamento das instituições.Em bom português, significa cortar bônus de quem manda no banco -inclusive o dos donos, a exemplo de 'Don' Botín. E achatar dividendos de seus acionistas --o que costuma ter repercussões em espiral descendente no valor de mercado das ações. Bancos franceses, por exemplo, detentores de um bom pedaço do mico grego, perderam 45% do valor de mercado este ano.
A lenga-lenga em torno da crise do euro evidencia cada vez mais que essas coisas não acontecerão espontaneamente.
Ao mesmo tempo, quatro encontros europeus de cúpula, todos emergenciais, previstos para acontecer de hoje, sábado, até a próxima quarta-feira,dia 25, ilustram a premência de um desenlace que devolva parâmetros e certezas aos mercados e à sociedade.
'Don' Botín e seus pares esticam a corda para empurrar ao setor público o custo de uma recapitalização ampla, geral irrestrita da banca - que pode exigir um reforço da ordem de quase dois trilhões de euros do fundo europeu de estabilização.
De onde sairia o dinheiro, se a maioria dos Estados já claudica em honrar até os níveis atuais de endividamento? Seria subtraído das respectivas populações na forma de cortes de gastos, supressão adicional de direitos, salários, empregos e serviços sociais? Quem se habilita a ser o novo Papandreu? Ou o próximo Zapatero?
O banqueiro Emilio Botín sabe muito bem onde vão desaguar essas perguntas incomodas.
Se a pressão das ruas dobrar a fidelidade atual dos governantes aos mercados, o passo seguinte será a imposição de uma dura disciplina regulatória sobre a banca.
Roosevelt, ancorado em pressão social, fez quase uma estatização branca nos EUA, em 1933, obrigando as tesourarias a agir de forma coordenada com políticas públicas de saneamento financeiro, retomado do crescimento e preservação da estabilidade social.
Entende-se a ordem emitida por 'Don' Botín dois dias depois das grandes mobilizações de massa que destacaram o 15 de outubro como um divisor no calendário a crise mundial: "Parem o trem da regulação".
Parar a história é um desejo intrínseco à natureza das classes dominantes. Don Botín está no seu papel. As ruas é que não podem mais ignorar a disputa em torno desse comboio. Sobretudo, não podem abstrair que mudanças na sua direção pressupõem ter, no mínimo, forte poder de indução sobre o maquinista: o poder de Estado.
Postado por Saul Leblon às 19:53

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