'BC é um banco do governo e tem que fazer política do governo' Em entrevista exclusiva à Carta Maior, o economista e cientista político Luiz Carlos Bresser Pereira recusa-se a transformar a política fiscal dos governos petistas em vilã de um futuro sombrio. “Existem dois tipos de economistas horríveis: os ortodoxos, para os quais todos os problemas do mundo se resolvem com mais ajuste fiscal, e os keynesianos vulgares, para quem tudo se resolve com mais gasto público”, afirma. Para ele, desde 1998, o Brasil não descuida da questão fiscal. Outro mito que Bresser derruba é o de que a autonomia do Banco Central é fundamental para a administração da crise.
Maria Inês Nassif
SÃO PAULO - Desde que deixou definitivamente o PSDB – e, com ele, a militância partidária – o advogado, administrador de empresas, economista e cientista político Luiz Carlos Bresser Pereira reencontrou o ninho teórico. Reassumiu, agora sem a timidez imposta por compromissos partidários, o desenvolvimentismo, e tem sido um atento crítico do neoliberalismo.
Em entrevista exclusiva à Carta Maior, Bresser recusa-se a transformar a política fiscal dos governos petistas em vilã de um futuro sombrio. “Existem dois tipos de economistas horríveis: os ortodoxos, para os quais todos os problemas do mundo se resolvem com mais ajuste fiscal, e os keynesianos vulgares, para quem tudo se resolve com mais gasto público”, afirma.
Na sua análise, desde 1998 o país não descuida da questão fiscal. “Esse discurso é burrice”, garante. Inflação deixou de ser o maior dos problemas do Brasil desde o Plano Real, em 1994. Os riscos maiores para o país, diante da crise mundial, são – e desde 1994 – câmbio e juros. Embora o mercado tenha feito um ajuste no preço do dólar, que está em torno de R$ 1,90, esse valor só garante um “equilíbrio corrente”. O “equilíbrio industrial”, que livraria o Brasil do fantasma da doença holandesa (reprimarização da economia), apenas viria com o dólar no patamar de R$ 2,30, e desde que, chegando a esse valor, o governo administrasse para mantê-lo.
Outro mito que Bresser derruba é o de que a autonomia do Banco Central é fundamental para a administração da crise. “O Banco Central é um banco do governo, é parte do governo e tem que fazer a política do governo. Essa história de autonomia do Banco Central não faz nenhum sentido”, afirma. E dá um crédito à administração de Dilma Rouseff: para ele, o Executivo percebeu que deveria ser ativo na condução da economia, para evitar que uma eventual queda da economia chinesa faça muitos estragos: “Dona Dilma, seu ministro da Fazenda [Guido Mantega] e seu presidente do Banco Central [Alexandre Tombini] estão de parabéns”.
Abaixo, a íntegra da entrevista com Bresser Pereira:
CARTA MAIOR: O Brasil consegue sair dessa crise sem se machucar demais? Em que hipótese e fazendo quais opções?
LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA: A crise internacional não está resolvida. Devido à gravidade da crise de 2008, a recuperação é muito lenta e a isso somou-se outra crise, a do euro, que tem uma origem parcialmente independente – o fato é que o euro foi um equívoco, porque criou uma moeda comum e fez com que os países deixassem de ter suas próprias moedas e seus próprios bancos centrais. Eles ficaram impossibilitados de fazer duas coisas que, por exemplo, Estados Unidos e Inglaterra estão fazendo: desvalorizar moeda ou imprimir moeda para enfrentar a crise. A Europa, como um conjunto, poderia até fazer isso, mas com grande dificuldade. Grécia e Espanha não podem.
CARTA MAIOR: Isso é a falência do modelo de união monetária?
BRESSER: O modelo do euro foi um equívoco. Eu fui um grande defensor dele, mas, para que desse certo, era preciso que houvesse um poder central muito mais forte e um Banco Cental Europeu perfeitamente integrado à lógica do Estado europeu. A Europa teria que ser um Estado. Na prática, não é. Os líderes europeus estão se apercebendo disso. Alguma coisa eles vão ter que fazer, mas está muito complicado.
CARTA MAIOR: Como se consegue desamarrar uma crise que foi toda montada em torno da ideia de livre mercado e tem elementos de regulação muito reduzidos? Como reverter um sistema mundial montado na especulação?
BRESSER: Isso nós fizemos nos anos 30 e, ainda que lentamente, estamos fazendo nesses anos. Houve uma regulação bancária, embora ainda insuficiente. Foram estabelecidos prazos para aumento do capital dos bancos – longos, mas o fato concreto é que se aumentaram os requerimentos de capital dos bancos e a regulamentação está acontecendo. Os EUA aprovaram uma lei que não é nenhuma maravilha, mas caminha nessa direção. Num artigo recente bastante interessante, no Economic Prospects, John Key diz que a crise foi desperdiçada, no sentido de que parece que não se aprendeu nada. Não é verdade. O que é verdade é que não se aprende com a rapidez que a gente gostaria e os resultados não surgem também com a rapidez que se espera. Mas o fato é que o neoliberalismo, mesmo desmoralizado, ainda tem seguidores.
E a teoria econômica neoclássica, que ao meu ver está igualmente desmoralizada porque era o “fundamento científico” das políticas neoliberais, levou o Prêmio Nobel deste ano com dois economistas desse tipo, os norte-americanos Thomas Sargent e Christopher Sims. É verdade que o Nobel não premiou o liberalismo radical do Sargent, mas suas técnicas de pesquisa econométrica (e eu sou favorável a técnicas sofisticadas que os econometristas desenvolvem), mas a teoria macroeconômica liberal que ele abraça é uma fraude. As pessoas não compreendem as diferenças e dão o Nobel para uma pessoa que está associada à visão de mercados autônomos e autorregulados, o que é um escândalo total.
CARTA MAIOR: Com que o Brasil deve tomar cuidado nessa crise?
BRESSER: Dois problemas são dominantes no Brasil desde que a inflação foi controlada, em 1994: a alta taxa de juros e a taxa de câmbio sobreapreciada.
CARTA MAIOR: A inflação não voltou a preocupar?
BRESSER: A inflação não é um problema fundamental. Claro que temos sempre de estar preocupados com isso, mas este, hoje, não é nosso problema principal. É importante apenas para quem gosta de juros altos. Como tínhamos problemas para resolver a inflação entre 1980 e 1994, desde 1994 nosso problema passou a ser uma taxa de juros e uma taxa de câmbio anormais. A boa notícia é que o governo, nesses últimos meses, resolveu afinal dar uma guinada para uma política keynesiano-estruturalista, ou desenvolvimentista, o que dá esperanças.
CARTA MAIOR: O país tem tempo para reverter essa tendência de primarização da economia?
BRESSER: O tempo sempre existe. Essa primarização é uma consequência da taxa de câmbio sobreapreciada, que decorre, em parte, da taxa de juros elevada que atrai capitais. Além da entrada excessiva de capitais (absolutamente desnecessária, pois não precisamos da poupança externa para crescer), a primarização tem outra causa, a doença holandesa, que não está sendo enfrentada. A taxa de câmbio em torno de R$ 1,90, como está hoje, usando o meu modelo, corresponde ao “equilíbrio corrente”, ou seja, é uma taxa de câmbio que equilibra intertemporalmente a conta corrente do país. Mas esta não é a taxa de câmbio de equilíbrio industrial, ou seja, aquela que reverteria a desindustrialização e tornaria internacionalmente competitivas empresas que fossem competentes tecnológica ou administrativamente.
CARTA MAIOR: Quanto teria que custar o dólar, em reais, para isso, para haver equilíbrio industrial sem que se tenha a impressão de que chegamos ao caos?
BRESSER: Algo em torno de R$ 2,30. E tem que chegar lá e administrar para não deixar cair. Com esse patamar, o Brasil iria crescer muito perto do que a China cresce. Sem isso, não cresce nada.
CARTA MAIOR: Existe, por parte do governo, algum plano estruturado de desenvolvimento, ou as coisas estão acontecendo por erro e acerto?
BRESSER: Nas economias capitalistas como a nossa, não faz sentido ter um plano integral. O que é fundamental é que o governo planeje duas áreas: infraestrutura e indústria de base, ou indústria pesada. E administre com mão de ferro o setor financeiro. São esses três setores que exigem planejamento. As decisões sobre infraestrutura, como as hidrelétricas que estamos fazendo, demoram anos para serem colocadas em funcionamento e grandes somas de capital. Isso exige um planejamento que o mercado não tem a menor condição de fazer. O resto da economia – a indústria de transformação, a agricultura em geral, o comércio etc –, isso é mercado, e mais mercado, e mais mercado. Porque aí nós temos empresários, profissionais e trabalhadores competentes. Aí, funciona. A regulação e o planejamento são fundamentais nesses três setores.
CARTA MAIOR: O Banco Central de Alexandre Tombini tem esse perfil?
BRESSER: O Banco Central é um banco do governo, é parte do governo e tem que fazer a política do governo. Essa história de autonomia do Banco Central não faz nenhum sentido. O objetivo do BC é manter o sistema financeiro como um todo sob controle. Ou seja, não só combater a inflação, mas impedir que exista crise financeira. O BC dos Estados Unidos (o Fed) fracassou ao não evitar uma crise bancária. Além da crise bancária, o Brasil tem que evitar a crise de balanço de pagamentos. E por que nós temos crise no balanço de pagamentos, e eles não? Porque eles tomam emprestado na sua própria moeda – não apenas os Estados Unidos, mas os países ricos, com essa exceção maluca que são os países da Zona do Euro, que não é propriamente a sua moeda. Enquanto nós crescermos com poupança externa, estamos tomando emprestado em outra moeda, que não temos condições de emitir. Por isso, além de contribuir para o equilíbrio econômico, o Banco Central tem essas três funções: controlar a inflação e evitar esses dois tipos de crises financeiras.
CARTA MAIOR: Essa quase concordância que se percebe hoje entre Banco Central e Ministério da Fazenda, então, não é ruim para a economia?
BRESSER: Não coloca nada em risco. Nós temos um bom economista no BC – ou bons economistas, no plural. O Tombini me parece muito seguro, eu não o conheço pessoalmente mas causa boa impressão. Ele se baseia na experiência recente da Turquia. Aquele país, durante muitos anos, manteve uma grande competição com o Brasil para ver quem tinha juros mais altos. Geralmente a gente ganhava, é lógico, mas a Turquia chegava perto (risos). Até que, há uns quatro ou cinco anos, aproveitou um certo desaquecimento da economia e fez uma baixa de juros firme, levando-os para níveis internacionais. E aí a inflação não se moveu, a taxa de câmbio depreciou 40% e a economia turca está bombando. Essa coisa eu não estou inventando. Eu li isso numa entrevista que o Tombini deu para a Folha há umas três semanas.
CARTA MAIOR: E a questão fiscal, que continua a ser discutida como se fosse o fim do mundo?
BRESSER: Existem dois tipos de economistas horríveis: os ortodoxos, para os quais todos os problemas do mundo se resolvem com mais ajuste fiscal, e os keynesianos vulgares, para quem tudo se resolve com mais gasto público. É uma burrice. O Brasil atingiu todos os seus objetivos fiscais nesses anos todos – exceto em 2009, o que estava perfeitamente correto – acordados, combinados etc, e no entanto continuam reclamando. Não é esse o problema.
CARTA MAIOR: Esse é um discurso politico, então?
BRESSER: Também é um discurso politico, mas é um discurso burro. A burrice ortodoxa é a formulinha pronta: qualquer problema resolve-se cortando a despesa pública. Tem um movimento ideológico, simpático, porque se diz que com a redução do Estado os impostos vão diminuir. E aí o keynesiano vulgar pensa: todos os problemas se resolvem aumentando o gasto público. Às vezes o problema é a área fiscal mesmo, que nunca pode ser desleixada. Mas, no Brasil, nós não estamos descuidando disso. Desde 1998 o Brasil vem adotando uma política fiscal correta.
CARTA MAIOR: O problema, então, são os juros e o câmbio?
BRESSER: O problema macro, sim. Existem outros também. O país tem mil problemas do lado da oferta. Mas o fundamental, que mudaria o quadro do Brasil de maneira enorme em pouco tempo, é o ajuste de juros e câmbio. Oferta é muito importante, tem efeito de médio prazo, não de curto prazo, e está sendo cuidada.
CARTA MAIOR: Não na velocidade que se desejaria.
BRESSER: De fato. Eu tenho dito que o Brasil, depois da redemocratização, caminhou muito fortemente na própria democracia, e portanto nas liberdades, e melhorou muito na área social. E a parte econômica foi devagar. O nosso desenvolvimento social foi substancialmente melhor do que o nosso desenvolvimento econômico. Os dois caminham mais ou menos juntos, mas às vezes um vai na frente e o outro, atrás. No tempo dos militares, o econômico ia na frente do social. Nós invertemos. Foi bom, mas eu gostaria que os bons resultados na área social fossem acompanhados por bons resultados na area econômica.
CARTA MAIOR: Na parte econômica, estamos na direção certa?
BRESSER: A questão internacional é muito importante e tem repercussão sobre o Brasil. E refletirá principalmente sobre o Brasil conforme atingir a China. A China acabou de tomar medidas de intervenção, comprando mais ações dos grandes bancos, que já são estatais, porque sua bolsa de valores está caindo. E isso é preocupante.
Os analistas estão dizendo que a China vai reduzir seu crescimento de 11% para 9%. Isso está bom ainda, mas se for de 9% para 5% nós estamos mal-arrumados. O bom foi que o governo brasileiro percebeu isso e se antecipou. A dona Dilma, o seu ministro da Fazenda e o seu presidente do Banco Central estão de parabéns.
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