TER, 28/10/2014 - 11:58
ATUALIZADO EM 28/10/2014 - 12:04
Por Maíra Streit, na Revista Fórum
26 de outubro de 2014. Milhares de pessoas vestidas de vermelho, com bandeiras em punho, aguardam a chegada da recém-reeleita presidenta do Brasil. Músicas e palavras de ordem se alternam no entusiasmo de uma plateia ansiosa. Ela chega sorrateiramente, vestida de branco e com uma voz já meio rouca depois de tantos comícios, discursos e compromissos de campanha.
“Brasil, mais uma vez, essa filha tua não fugiu à luta”, afirmou Dilma Rousseff, em seu primeiro pronunciamento depois da confirmação da vitória sobre o adversário Aécio Neves, do PSDB, em uma das disputas mais acirradas da política nacional. A primeira mulher a presidir a maior potência econômica da América Latina disse estar consciente e pronta para a responsabilidade que essa eleição representa.
A oposição já mandou o recado de que, se depender dela, os próximos anos não serão nada fáceis para o governo. Mas Dilma está acostumada a desafios. Em seus 66 anos de vida, os acontecimentos mais marcantes de sua trajetória coincidem com os mais emblemáticos momentos da história do país.
Não contente em tê-la como testemunha, quis o destino que Dilma se tornasse protagonista de um Brasil que clama por mudanças e está disposto a deixar no passado a mácula da pobreza, corrupção e atraso. Em um mandato marcado por incisivas políticas sociais, desafiar os interesses da até então intocada elite econômica foi como mexer em um vespeiro. Não faltaram ataques de toda ordem, inclusive pessoais.
Uma mulher de esquerda ocupar o cargo mais alto da República, em uma sociedade conhecida por seu viés conservador e patriarcal, era ultrajante demais para parte da população. A agressividade das ofensas veio com o peso de séculos de preconceito. Dilma foi logo rotulada de ser dura, centralizadora e intransigente por aqueles que acreditam que somente a resignação e a ternura podem ser consideradas características femininas.
Mas quem é, de fato, a mulher por trás da faixa presidencial? Quem seria Dilma Rousseff na intimidade, longe dos holofotes e das formalidades impostas aos chefes de Estado? Fórum foi ouvir pessoas próximas à presidenta para conhecer melhor as histórias pouco divulgadas de uma das personalidades mais influentes do mundo.
Passado de luta
Nascida em Belo Horizonte, Dilma é filha do empreendedor búlgaro Pedro Rousseff e da dona de casa Dilma Jane. Admiradora das artes desde muito cedo, por influência do pai, a menina começou a se interessar por cinema, música e literatura, sendo reconhecida pelos colegas pela expressiva capacidade intelectual. Frequentava o ambiente artístico e foi apresentada ao jovem Milton Nascimento, em Minas Gerais, por amigos em comum.
Na adolescência, passa a se identificar com ideais libertários, dando início à militância política logo após o golpe militar de 1964. Integrou organizações que defendiam a luta contra a ditadura, como o Comando de Libertação Nacional (Colina) e a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares) e, por isso, passou quase três anos presa e foi duramente torturada.
Nem as sessões de choques elétricos, socos e palmatórias a fizeram entregar informações que pudessem comprometer seus companheiros. “Lembro que, nos primeiros dias, tinha uma exaustão física que eu queria desmaiar, não aguentava mais tanto choque. Eu comecei a ter hemorragia”, contou ao jornalista Luiz Maklouf Carvalho no livro Mulheres que foram à luta armada, em um dos raros momentos em que falou abertamente sobre o assunto. “Tem um nível de dor que você apaga”, completou.
Casou-se aos 19 anos com o jornalista e militante Cláudio Galeno Linhares, com quem ficou por um curto período. Seu segundo casamento foi com o advogado Carlos Araújo, também fortemente atuante na resistência ao regime. Da união, nasceu Paula, única filha do casal, que é mãe de Gabriel, o netinho de 4 anos que costuma ser visto correndo pelos pátios do Palácio da Alvorada.
Ao lado de Carlos, com quem passou quase 30 anos, reconstruiu a vida no Rio Grande do Sul e ajudou na fundação do Partido Trabalhista Brasileiro (PDT). Exerceu o cargo de secretária municipal da Fazenda de Porto Alegre de 1985 a 1988. Foi ainda presidenta da Fundação de Economia e Estatística e, mais tarde, secretária estadual de Minas e Energia, de 1999 a 2002.
Neste ano, participou da equipe que formulou o plano de governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para a área energética e não passou despercebida aos olhos do chefe. Ela foi convidada a ocupar o comando do Ministério de Minas e Energia durante o governo petista e, posteriormente, da Casa Civil.
Amigas desde os tempos de Porto Alegre, a sociológa Miguelina Vecchio atuou com Dilma no movimento de mulheres do PDT. Ela conta que era muito difícil ser respeitada em um ambiente hostil como a política e que muito do que a presidenta Dilma faz pelas mulheres em seus programas de governo vem das dificuldades pessoais. “A prioridade às mulheres, o combate à violência, tudo isso é parte do que ela sofreu. O que ela passou a tornou mais humana e isso fica visível na forma de fazer política”, afirmou.
Miguelina lembra de alguns fatos que marcaram a convivência dela com a presidenta. “Nunca esqueço de um dia em que briguei com o meu marido e passei a noite chorando. Acordei com o rosto inchado e não queria ir à reunião. Ela passou na minha casa, andou comigo de carro com o vidro aberto durante uns 40 minutos, dirigindo, e aquele vento ajudou a desinchar os meus olhos. É o tipo de coisa que as pessoas não contam, do quanto ela é fraterna”, comentou.
Ubiratan de Souza é outro amigo de longa data. Ele passou pela perseguição da ditadura e foi um dos militantes comunistas trocados pelo embaixador suíço sequestrado em 1971. No mês seguinte, foi nomeado por Carlos Lamarca como coordenador das bases da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) no Chile.
Ubiratan se formou no mesmo curso e universidade de Dilma e lembra com carinho da “companheira presidenta”. Ele vê a eleição não como uma conquista pessoal da petista, mas como a consagração de toda uma geração que lutou pela democracia no país. “É muito emocionante porque ela representa a nossa geração, os que estão vivos e aqueles que tombaram [morreram]”.
Ele entrega um segredo de Dilma: ela gosta de dar apelido às pessoas. “Tomei café com ela no primeiro turno e ela me gozou: ‘Bibica, tu anda pintando o cabelo?’, perguntou, porque tenho 66 anos e o cabelo continua preto. É bom saber que ela não perdeu o humor”, ressalta. “Dilma conseguiu firmar uma personalidade altiva, ‘mas sem perder a ternura’, como dizia Che [Guevara]”, lembrou.
“Eu me sinto muito envaidecido de participar da história dela”, afirma ex-companheiro
Carlos Araújo mantém a amizade de Dilma até hoje. Ele fala do passado, mas também sobre o futuro, que imagina ser de profundo crescimento para o país nesse segundo mandato
Fórum - O senhor esteve com a presidenta Dilma um dia antes da votação que a reelegeu. Como foi esse encontro?
Carlos Araújo - A campanha foi muito dura e desgastante. Almocei com ela no sábado. Nós temos uma amizade muito forte, de muito carinho e respeito. A Dilma faz parte da minha família e eu, da dela. A gente conversa pouco sobre política. Quando ela vem para Porto Alegre, quer mais é descansar, rir, brincar.
Fórum - Como vocês se conheceram?
Araújo - Nós nos conhecemos em uma reunião no Rio de Janeiro, durante a clandestinidade. Ela era muito novinha, com uns 21 anos. Foi uma paixão fulminante. A inteligência, a coragem e a postura dela nas reuniões chamaram a minha atenção, além da beleza. Na segunda vez que nos vimos, já começamos a namorar.
Fórum - Durante a ditadura, vocês dois foram presos em locais diferentes. O que o senhor lembra desse período?
Araújo - Ela foi presa antes de mim. Eu fui preso 8 meses depois. Apenas por um pequeno período ficamos na mesma cadeia em São Paulo. A legislação dizia que, quando houvesse um casal, eles poderiam se encontrar e receber juntos as visitas, mas não nos reconheciam como casal [porque não haviam formalizado].
A mãe dela e a minha mãe se uniram, conseguiram entrar com um processo administrativo e obtivemos uma certidão. Os torturadores odeiam as mães [risos]. A gente participou das lutas sempre. Quem ia imaginar que uma pessoa que foi torturada seria presidente da República? Nem ela, nem nós. Mas esse é o processo, o rumo que as coisas tomaram.
Fórum - E essa imagem de durona? É a mesma imagem da Dilma que o senhor conhece?
Araújo - De forma alguma. Ela é muito afetuosa, brincalhona, gosta de ouvir música, ler. Mas é exigente também quando têm que cumprir alguma coisa e não cumprem.
Fórum - Vamos falar sobre a reeleição. Em seu discurso, Dilma sinalizou a reforma política e o combate à impunidade como algumas prioridades. Como o senhor acredita que será esse próximo mandato?
Araújo - A reforma política é essencial. Acredito que ela vai ter um segundo governo melhor do que o primeiro, quando teve que criar muitos programas que estão em desenvolvimento na área social e de infraestrutura. Acredito que o Brasil cresça, os empregos aumentem e os salários também. O terreno está preparado para seguir com esse projeto.
Fórum - A campanha foi bastante difícil, com vários ataques. Essa resistência declarada pela elite do país viria da quantidade de paradigmas rompidos pela presidenta em seu governo?
Araújo - As elites jogaram tudo. E também não existe país no mundo com a mídia como a nossa. Essa concentração de poder não tem que continuar. A Veja e a Globo fazem o que querem e fica tudo por isso mesmo. Tem que ter muitos avanços. Isso vem desde 1930, basta ver no passado, quando depuseram o Getúlio, levaram ele ao suicídio. Se formos ver as manchetes nos jornais de 1954, são as mesmas de agora. Com Jango foi a mesma coisa, com Lula tentaram fazer o mesmo jogo. Tem que ter grandes avanços ainda na regulamentação da mídia.
Fórum – E com o desfecho que vimos no domingo, qual a sensação que fica depois de tudo isso?
Araújo - Toda a nossa geração apostou muito na Dilma e gosta muito dela. É uma sensação de alívio, alegria profunda, contentamento não só pela vitória da Dilma, mas porque não deixamos o retrocesso ser implantado no país. Eu me sinto muito envaidecido de participar da história dela lado a lado, por muitos anos. É um orgulho que eu tenho de ter conhecido uma mulher tão íntegra, inteligente e batalhadora quanto ela.
“É maravilhoso ter sobrevivido para ver esse momento”, diz ministra
A ministra de Políticas para as Mulheres, Eleonora Menicucci, é bastante próxima à presidenta desde a adolescência. Ela relembra os tempos da ditadura, quando as duas dividiram a mesma cela
Fórum – Como a senhora conheceu a presidenta Dilma Rousseff?
Eleonora Menicucci - Nós nos conhecemos em Belo Horizonte ainda na adolescência, depois continuamos a relação durante o período da universidade, eu fazendo Sociologia e ela, Economia. As escolhas das organizações de militância nos separaram, eu fui para uma e ela para outra. Depois nos encontramos no presídio Tiradentes. Ela foi presa um ano antes de mim.
Fórum – E como foi a convivência no período em que estiveram presas juntas durante o regime militar?
Eleonora - Quando cheguei em outubro de 1971, fui recebida por ela com muita solidariedade e companheirismo. O lugar era conhecido como a Torre das Donzelas, pois abrigava de 20 a 50 mulheres presas, o número variava muito. Essa convivência na mesma cela foi muito importante porque consolidamos uma relação de solidariedade e afeto muito forte. Foi muito interessante conviver com ela nesse período. É uma pessoa bem humorada, podendo ser até sarcástica, mas muito generosa.
Era estudiosíssima, queria sempre estudar e dava a mão e o ombro para cada uma das mulheres que chegavam ou iam para a tortura. Tem uma passagem especial. Eu tinha uma filha de um ano e dez meses que me visitava, eu ficava muito mal. E ela me ajudava muito a superar aquele momento. A mãe dela era vizinha da minha mãe em Belo Horizonte e mandava e trazia coisas para minha filha Maria.
Eu fui levada em uma noite para Juiz de Fora. Ir para outro lugar naquele momento significava voltar para mais tortura. Antes de ir, nós conversamos e ela me deu muita força. Eu ia algemada no camburão, em uma viagem muito longa e lembro desse apoio. Conviver com ela e com as outras significou a consolidação, um pacto pela vida. Em um reencontro, muitos anos depois, nós nos abraçamos e choramos. Depois teve a posse, e fui convidada para assumir o ministério.
Fórum – O que a presidenta conserva em relação àquela menina dos anos 1970?
Eleonora - O que ela conserva da jovem que resistiu à ditadura e não fugiu da luta é a solidariedade, a lealdade, a determinação, que muitas vezes nesse mundo patriarcal que nós vivemos é confundido com intransigência. Ela é muito rígida com o cumprimento de metas, com o bom trabalho, com a qualidade do trabalho. E também no compromisso com a democracia. Ela não aceita e nunca aceitou injustiça, nem na cadeia entre as companheiras, e hoje também não. Dilma é muito verdadeira e quero reafirmar isso, que ela é radicalmente a favor da liberdade da expressão e também contra a corrupção. Tentar vinculá-la à corrupção é inaceitável.
Ela é a mulher certa, no momento certo para dirigir o país. Eu tenho o maior orgulho de contribuir. A prioridade que ela dá ao tema das mulheres vem de dentro do coração porque ela sempre foi comprometida com a defesa desses direitos. É muito orgulho. Na celebração de mais esta vitória, ficava me passando um filme pela cabeça, o filme de toda a minha história com ela, a tortura, a cadeia, de como nós sobrevivemos. E como é maravilhoso ter sobrevivido para ver esse momento [se emociona]. É uma vitória da militância e do povo brasileiro. Dilma chora, ri, briga, fica com raiva, reflete. Ela é, antes de tudo, uma mulher comum.
http://jornalggn.com.br/noticia/amigos-e-ex-marido-de-dilma-resgatam-episodios-da-juventude-da-presidente
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