- Bruno Amabile Bracco
Defensor Público
I. DA UNIDADE ÀS DIVISÕES
Um dos temas mais importantes e recorrentes em toda a história do pensamento humano diz respeito aos paradoxos.
Segundo um antiquíssimo mito grego, havia, no princípio dos tempos, apenas um grande Ovo Cósmico flutuando num espaço infinito. Para a ciência, o Universo, antes do Big Bang, estava condensado em um minúsculo ponto coeso. Platão, em O Banquete, sugere, por meio de Aristófanes, que o ser humano era, no princípio, a um só tempo homem e mulher – e o mito da androginia original aparece também, segundo alguns autores, no Gênesis bíblico. No início, enfim, não havia qualquer divisão, e este estado de absoluta indiferenciação era plenamente pacífico.
Eis que, segundo o mito grego, surge uma grande espada que se movimenta ameaçadoramente em direção ao Ovo Cósmico: é o Grande Separador. O Universo explode e tem início. Surgem céus e terras, homens e mulheres, luzes e trevas. As estações se fazem. A vida surge, trazendo consigo a morte. Há, agora, o em cima e o embaixo. Há, agora, a esquerda e a direita.
Uma infinidade de símbolos religiosos parece dizer respeito a essas dualidades da existência: da Roda de Samsara hindu e budista ao yin e yang Taoista, da estrela de Davi judaica à cruz cristã. Heráclito dizia que todas as coisas se manifestam pela oposição e da oposição resulta a mais bela harmonia. [1] Para Kierkegaard, o paradoxo é substância fundamental de todas as questões mais elevadas. [2] “O paradoxo pertence ao bem espiritual mais elevado”, disse ainda Jung. “O significado unívoco é um sinal de fraqueza”. [3]
2. O DIÁLOGO E SEU ROMPIMENTO
Para David Bohm, um dos maiores físicos do último século, a palavra diálogo se relaciona à ideia de uma corrente de significados (“logos”) que passa em meio aos interlocutores. Em um diálogo verdadeiro, busca-se louvar e engrandecer essa corrente de significados. Sua essência, portanto, não é o embate, mas um alegre jogo em que todos ganham, na medida em que cada um contribui um tanto para a formação de um sentido que, em última análise, pode manter unida a teia social.
[4] Diz Buber que o diálogo se aperfeiçoa “quando o monstro da alteridade – que ainda há pouco em nós soprava o seu gélido hálito demoníaco e que agora se liberta graças ao ressuscitar da nossa afirmação do outro, que conhece e destrói qualquer negação – transforma-se no poderoso anjo da união com o qual sonhávamos no útero materno”. [5] Por meio do diálogo, revivemos, enfim, a união essencial em que todos os paradoxos se abraçam e se completam.
No entanto, a história do pensamento humano tem se mostrado bastante avessa ao diálogo. Em vez de atenção à corrente de significados que perpassa cada discurso, observamos um reiterado embate entre verdades que se pretendem absolutas. Em vez da riqueza de paradoxos que se complementam, vemos retumbantes batalhas e frentes opostas em ferrenhas disputas. Porque reiteradamente capturados por nossos próprios padrões mentais, diz Bohm, encaramos a posição oposta como problemática.
“Enquanto um paradoxo for tratado como problema ele jamais poderá se dissolver. Ao contrário, o ‘problema’ nada mais fará do que aumentar e proliferar, numa confusão sempre crescente”. [6] De acordo com Sá, os mais entusiasmados discursos certos da própria verdade se fazem, inevitavelmente, uma enorme e contraproducente violência: “violência do discurso contra o próprio discurso, já que quer banir todos os conflitos e proclamar o ‘fim do caminho’”. [7]
3. A ESQUERDA E A DIREITA
Parece ser a cada dia menos possível ficar indiferente aos monumentais embates entre a “esquerda” e a “direita”. No cenário mundial, os últimos meses – marcados por um estremecimento das relações entre Estados Unidos e Rússia, vendo-se, por exemplo, um ataque a avião russo realizado por um país membro da OTAN, incidente que não acontecia desde a Guerra Fria – parecem reacender chamas que, em realidade, jamais se apagaram. No cenário nacional, as últimas eleições presidenciais se tornaram o estopim de discussões ferrenhas em toda parte, discussões essas que, entre crises políticas e econômicas, podem tornar a ganhar força a qualquer momento. E, em nossas relações particulares, dos jantares em família às redes sociais, o mesmo conflito se repete.
É emblemático que, neste cenário de embates apaixonados entres lados que se pretendem absolutamente verdadeiros, as atuais eleições presidenciais norte-americanas desenhem um panorama antes inconcebível. Em vez dos nomes “certos” de Hillary Clinton e Jeb Bush – representantes da “esquerda” e da “direita” tradicionais do conhecido jogo político ianque –, ganham cada vez mais força Bernie Sanders e Donald Trump. A vitória de Sanders, no lado democrata, parece menos provável do que a de Trump no lado republicano, mas, de todo modo, a força por eles adquirida já nos diz muito. Trump e Sanders, em comparação a Bush e Hillary, caminham um tanto mais para os lados na linha das ideologias políticas. Certamente não teriam a mesma força em contexto de maior moderação.
Tudo isso não é necessariamente ruim. Claro que não. Há uma crescente abertura a novas ideias, por cada vez mais gente: há vinte anos, quem ousaria, por exemplo, admitir que um candidato como Bernie Sanders pudesse ter a mínima chance numa corrida presidencial? Hoje, suas ideias podem ser combatidas, mas ao menos são trazidas à discussão. Tenho observado um número muito grande de pessoas que hoje, diferentemente do que faziam há poucos anos, se envolvem com entusiasmo em debates políticos. Frentes que se combatem enfaticamente despertam a nossa atenção. Gostamos de tomar partido. “Sem Contrários não há progressão. Atração e Repulsão, Razão e Energia, Amor e Ódio são necessários à existência humana”, já escreveu o poeta William Blake. [8]
4. DIÁLOGO E ARGUMENTAÇÃO
Um discurso muito comum, de ambos os lados do espectro, é no sentido de que argumentações radicais se justificam não necessariamente porque o que postulam seja sensato ou aplicável, mas porque é preciso, por vezes, oferecer uma antítese à tese posta, para, assim, chegar-se, de maneira hegeliana, à síntese. Então, por exemplo, o discurso da chamada criminologia crítica radical, em resposta à situação posta de um sistema penal estigmatizante, classista, opressor e cruel, defenderá o abolicionismo penal. Do outro lado, a resposta de Trump à chamada “ameaça terrorista” é a xenofóbica construção de muros que haverão de proteger os Estados Unidos do atemorizante mundo externo.
Não quero, aqui, defender ou criticar nenhuma dessas posições em si, materialmente consideradas. Quero, porém, questioná-las como estratégias argumentativas.
Quando lançamos mão de qualquer discurso visto como extremista ou radical, por mais que o discurso se dê em resposta a um extremismo anterior, despertamos, automaticamente, resistência. Cada discurso extremo se fecha ao diálogo, porque basta a si mesmo. Quando a proposta apresentada é no sentido da imediata construção de muros, automaticamente termina a possibilidade de qualquer discussão complexa sobre o intrincado problema da imigração. Quando a proposta apresentada é no sentido do imediato abolicionismo penal, automaticamente termina a possibilidade de discussão complexa sobre o intrincado problema não apenas do sistema prisional, mas da justiça criminal como um todo.
Quando o discurso traz, em si mesmo, o fechamento ao diálogo, o que resta é o conflito. Se o diálogo, por sua própria natureza, une os interlocutores, o conflito os afasta. Marie-Louise von Franz escreveu: “A divisão contemporânea da sociedade numa direita e numa esquerda não passa de uma dissociação neurótica, que reflete na arena do mundo o que acontece no moderno homem individual: uma divisão do próprio interior, que faz com que a sombra — ou seja, aquilo que é inaceitável para a consciência — seja projetada num oponente..., algo que provoca uma perda constantemente maior do instinto e, em especial, uma perda da caritas, o amor ao próximo, tão necessário ao mundo contemporâneo”. [9] A caritas e o verdadeiro diálogo demandam de nós novas posturas.
Este parece ser, atualmente, o grande drama que precisaremos enfrentar. Pouco importa, verdadeiramente, se nos inclinamos à esquerda ou à direita: é natural que nos inclinemos a algum dos lados. A sabedoria talvez comece, contudo, quando, sem abandonar nossos pontos de vista, nos abrimos à possibilidade de haver verdades justapostas e concomitantes, ou diferentes aspectos da verdade. Alvaro Pires diz, neste sentido, que devemos deixar de lado paradigmas tradicionalmente combatentes, abrindo espaço a um paradigma interrelacional: agora, os lados a princípio contrapostos passam a ser vistos como eixos justapostos, cujo diálogo é essencial à melhor compreensão da realidade; [10] “devemos modificar nossa representação metateórica do objeto de estudo abrindo espaço a uma visão mais complexa daquilo que a realidade de fato é”. [11] Em vez de verdades pretensamente absolutas, escreveu Sá, “um ensaio sempre permeado de uma dialética incessante, da contradição, da negação, da flutuação, no qual jamais se conseguirá atingir a sistematização, a saber, um sistema plenamente idêntico a si mesmo”. [12]
É uma postura radicalmente nova. Agora, o problema, em última análise, deixa de ser o inimigo que imaginamos nos confrontar – e que, em realidade, apenas desnuda um outro aspecto de uma realidade que, desde a separação primordial, se apresenta a nós em incontáveis fragmentos e múltiplas facetas. Agora, nossa postura se torna, em si mesma, um novo discurso, por trás do discurso explícito propriamente dito. E este novo discurso, embora implícito, é muito mais potente porque, em vez de criar resistências, as remove. Quando nos abrimos ao verdadeiro diálogo, dizemos, nesta abertura mesma, que o diálogo deve prevalecer. E, em última análise, esta talvez seja a única força realmente capaz de derrubar os maiores muros físicos e ideológicos.
Bruno Amábile Bracco é Mestre e Doutorando em Criminologia pela USP, Defensor Público do Estado de SP, autor do livro "Carl Jung e o Direito Penal".
Nenhum comentário:
Postar um comentário