quarta-feira, 22 de junho de 2011

O Hezbollah e a revolução árabe



Anunciado por milhões de seguidores como “o mentor da resistência” - e demonizado por EUA e Israel como um “terrorista”, a retórica Sayyed Hassan Nasrallah em direção à Síria é igualmente divisionista. [GALLO / GETTY]



Traduzido e comentado pelo pessoal da Vila Vudu





O que está acontecendo com o Hezbollah[1]
O movimento cresceu da ignomínia e da exclusão, da exploração feudal, do viés sectário e ocupa hoje o centro da política libanesa. Em menos de 30 anos, converteu a absoluta insignificância sociopolítica dos xiitas, em contrapeso político decisivo.

Enfrentou o Golias israelense. Sobreviveu aos “incêndios” lançados por políticos árabes que se uniram contra ele, de Amã ao Cairo. Superou os inimigos dentro e fora do Líbano, com política imaginativa e afinada análise política, contra todas as expectativas.

Agora, enquanto resiste ao Golias de Telavive, mas abraça o leão de Damasco, o Hezbollah – Partido de Deus – expõe-se ao risco de ver encolher o compromisso com a revolução árabe e com o próprio passado revolucionário.

Sayyed Hassan Nasrallah: nascido da revolta

Muitos líderes políticos nascem dentro de partidos já existentes. Com Sayyed Hassan aconteceu o contrário: nasceu quatro anos antes de o Hezbollah ser fundado

Mas sempre esteve próximo da revolta dos palestinos e dos iranianos. Sua liderança foi concebida no seio da revolução iraniana.

Aos 21 anos, Nasrallah foi saudado como estrela em nascente pelo falecido Aiatolá Khomeini em Jamaran Husseiniyyah, Norte de Teerã, em 1981. O jovem Nasrallah estava acompanhado de companheiros-em-armas do Amal, outra organização política xiita, e a discussão centrou-se em meios para apoiar a causa palestina e derrotar as potências suprematistas ocidentais. 

Impressionado com o jovem Nasrallah, Khomeini selou a liderança de Sayyid Hassan, ao consagrá-lo e dar-lhe autoridade para coletar e distribuir as taxas religiosas conhecidas como hisbiyyah – inclusive o khums (um quinto de todos os ganhos ou lucros) e o zakat (espécie de imposto islâmico obrigatório, de traços redistributivos).

Khomeini sempre foi muito seletivo, além de frugal, na distribuição das funções do hisbiyyah, funções que não foram do primeiro-secretário geral Subhi al-Tufaily até 1987 e nem de seu sucessor, Sayyid Abbas Musawi, mentor do jovem Nasrallah, em 1986.

Além disso, o papel de Nasrallah foi definido também pelo gesto de Khomeini, que se dirigiu ao jovem chamando-o de "Hojjat al-Islam", título de reconhecimento de superior formação intelectual.

Musawi, que foi professor de Nasrallah no seminário de estudos islâmicos de Najaf, e depois seu mentor no posto de secretário-geral de Hezbollah até ser assassinado em 1992, também via o potencial do jovem Nasrallah como liderança política. Os dois homens foram ligados por profunda camaradagem pessoal, política e intelectual. Ligaram-se e depois desligaram-se do grupo Amal, depois o combateram, e dessas lutas criaram, com outros, uma pequena falange de combatentes zelosos e eficientes que, adiante, se converteria em formidável organização política e militar – o Hezbollah.

“O Che Guevara do Líbano” 

“Deus seja louvado. Deus escolheu um mártir de minha família, ofereceu-nos o dom do martírio e assim nos incluiu na comunidade de famílias dos Santos Mártires”. Com essa fala, Sayyed Hassan enterrou seu filho mais velho, Hadj, morto em combate contra Israel, em setembro de 1997.

No mesmo discurso, Nasrallah agradeceu a Deus a graça de, pelo martírio de Hadj, tê-lo posto, com toda a família, em condições de igualdade com todas as famílias que perderam filhos na luta contra Israel.

A história de Nasrallah merece ser conhecida em detalhes, por dois motivos. Em primeiro lugar, porque Sayyed Nasrallah, no comando político do Hezbollah, rapidamente estabeleceu contato direto e profundo com o eleitorado árabe, porque sempre agiu, pensou e falou como árabe, igual aos mais pobres: conheceu a pobreza, combateu em armas e consistentemente comprometeu-se, também pessoalmente, com os ideais que sempre pregou como pregador muçulmano.

Em segundo lugar, mas não menos importante, e especificamente no que tenha a ver com o triste grupo de líderes árabes que, um a um, estão sendo varridos pela grande revolta árabe de 2011, Nasrallah é caso único: nenhum dos privilégios que os demais líderes árabes fizeram chover sobre as próprias famílias, filhos e filhas – da Líbia à Síria – jamais foram aceitos pelo Hezbollah.

Hadi Nasrallah é mártir da luta contra Israel. Não foi jamais um Saif Gaddafi nem um Gamal Mubarak; e um primo de Nasrallah, Hashim Safi Al-Din, que desde novembro de 2010 comanda a região do sul do Líbano não é algum Rami Makhlouf, conhecido e corrupto bilionário sírio.

“A voz e oráculo dos oprimidos” 

Para mim, dois leitmotifs explicam o Hezbollah: a luta contra a miséria e as carências sociais; e a resistência. Ambos aparecem sempre associados. E ambos ajudaram intelectuais e pensadores políticos como Raghd Harb, e antes dele Musa Al-Sadr, a construir o empoderamento político dos xiitas, traçando uma impressionante trajetória política, pela resistência contra a miséria e as carências dos mais pobres. E a luta de resistência contra a ocupação israelense.

No primeiro manifesto político do Hezbollah, de 1985, “A Carta Aberta” ["al-Risalah al-Maftuhah"], ainda ressoa a retórica de Che- Khomeini: contra o imperialismo, na defesa “dos oprimidos”, “dos mais pobres”, com “justiça”, “autodeterminação” e “liberdade”.

O mar de gente que vi em agosto de 2006, que acorreu para saudar e ouvir Nasrallah depois da guerra de 34 dias contra Israel, foi atraído por essas mensagens. E como naquele dia, acontece ainda hoje. E milhões de árabes o ouvem com reverência, de Rabat a Sana'a.

A oratória de Nasrallah na “Promessa Divina” [al-Wa'd al-Sadiq] quando falou a centenas de milhares de pessoas, foi empolgante – como sempre, o oráculo dos excluídos e humilhados, um gigante, contra a injustiça e a ocupação. No mantra de Nasrallah – a resistência como instrumento para mudar, muqawamah, os pobres encontram consolo e força, uma espécie de redenção, e esperança e força para se reconstruírem como iguais, como seres humanos livres.

Por isso, em 2006, como em 2000, quando Israel foi obrigada a retirar-se do sul do Líbano ocupado, Nasrallah foi envolvido numa onda gigantesca de popularidade pan-árabe e pan-islâmica que o mundo árabe não via desde a morte de Nasser, em setembro de 1970. Um líder de uma seita islâmica minoritária xiita substituiu o sunita Nasser, como encarnação da resistência e da luta por liberdade e igualdade.

Inspirado pelo Imã Khomeini, Nasrallah modernizou o Hezbollah e articulou um projeto político de empoderamento das massas pobres, transformando a Ashurae todo o imaginário da Karabala em potente conjunto de ideias para reinventar, não só a identidade política, mas também a identidade xiita no Líbano.

O Hezbollah e a revolução síria 

Vinda do homem que para milhões de muçulmanos é “o braço e a alma da resistência”  – e o “Che Guevara muçulmano”  – demonizado pelo Congresso dos EUA e por Israel como “terrorista”, a retórica de Nasrallah sobre o regime sírio surpreende por pelo menos dois motivos.

Primeiro, porque a resistência não é divisível. Resistir é resistir, seja a um opressor colonial seja a um ditador local que, no caso da Síria, ocupa estado. Tampouco a liberdade é divisível. Resistir é lutar por liberdade, na Palestina e no Líbano ocupados, ou na Síria ou Iêmen ocupados por ditadores.

Nasrallah foi dos primeiros que manifestou apoio às revoluções no Egito e Tunísia e, mais tarde, aos xiitas que foram às ruas protestar contra a marginalização no Bahrain. Mas não apoiar o levante na Síria – porque o regime apóia amuqawamah e opõe-se ao imperialismo norte-americano e a Israel – é falar com duas línguas.

Na Síria, são as massas que sempre apoiaram a resistência do Hezbollah. A dinastia Assad pouco tem a ver com isso. Além do mais, por razões ou interesses específicos, os Assads apóiam a resistência em Gaza e no sul do Líbano – mas não nas colinas do Golan. Um dia os Assads desaparecerão para sempre. Os sírios lá estarão, sempre. 

Síria: a disputa entre Maher e Bashar

Em segundo lugar, Nasrallah não precisa do apoio do regime sírio – embora, no discurso de maio, Nasrallan tenha manifestado tanto apreço ao povo sírio quanto preocupação com a estabilidade.

Em 2006, em momento de muita sabedoria, Sayyed Hassan disse aos líderes da Jordânia e do Egito, que segurassem a língua e não criticassem o Hezbollah em momento tão crítico – quando no sul do Líbano e em al-Dahiya o Hezbollah enfrentava a chuva de bombas israelenses. O silêncio teria sido mais eloquente também agora, em vez de falar a favor de um regime que, hoje, é culpado de ataque brutais contra cidades e populações sírias.

Os sírios, nas ruas, estão dizendo eloquentemente que desejam uma Síria do povo, para o povo e pelo povo. Não uma dinastia. Há dúvidas sobre se o atual regime ainda conta com o apoio da maioria – Nasrallah parece ter informações que indicam que não, ou não teria falado a favor do governo sírio.

As revoluções árabes tem sido como referendos, em países onde não há eleições e, quando há, têm resultado antecipadamente resolvido.

Tampouco se sabe se Bashar al-Assad ainda está no comando – ou se já é presidente pato-manco, sem poder, completamente controlado por seu irmão mais jovem, Maher, e os asseclas de seu cunhado Asef Shawkat. Se assim for, Bashar já não pode ajudar a muqawamah do Hezbollah no Líbano, como já não pode defender nem os próprios sírios.

É possível que Bashar represente a face melhor da política síria – como pareciam indicar os planos de reformas. Mas o que garante que seja assim, se as reformas jamais acontecerem? Além do mais, hoje que fala grosso na Síria são os tanques de Maher.

Bashar ainda estará no comando? Se estiver, ainda pode conter os massacres comandados por seu irmão Maher.

Hirman – marginalização e miséria 

Os pobres e humilhados do Líbano, inclusive a população xiita, sabem bem o que significam o hirman – marginalização e miséria. Por isso, foram os primeiros a associar-se à revolução árabe.

A linguagem da resistência contra a marginalização e a miséria são laço inquebrável que une os miseráveis das ruas de al-Dahiya al-Janubiyyah e Sidi Bouzid, Dar'aa, Taiz ou Imbaba. Sayyed Hassan Nasrallah sempre manteve o ouvido colado ao chão, atento ao eco dos passos dos mais pobres, dos despossuídos, dos humilhados. Essa sensibilidade é a fonte de onde brota o poderoso arsenal moral do Hezbollah, que não depende de seus mísseis e grandes vitórias militares.

Temos de esperar que Nasrallah reencontre aquela sensibilidade e aquela linguagem, e que corrija o que disse, em apoio a Bashar Al-Assad. Que aconselhe aos sírios reformas radicais, governo eleito, como se lê na “Carta Aberta”, o manifesto do Hezbollah de 1985. Só assim voltará a conectar-se ao ethos da resistência pacífica, como direito dos pobres e humilhados. Em política, nunca é tarde para redescobrir essa via. 

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