QUI, 16/10/2014 - 07:20
A “paternidade” do Bolsa Família e a necessidade de redefinição do debate
por Sergio Reis
Mais uma vez, assistimos ontem, no debate entre os presidenciáveis Dilma Rousseff e Aécio Neves, uma disputa a respeito da “paternidade” do Bolsa Família. Enquanto Aécio insistia na tese de que esse programa de transferência condicionada de renda tinha como origem um conjunto de ações de assistência social iniciados no Governo FHC, Dilma assinalava que, tanto do ponto de vista do escopo como alcance, não havia como estabelecer esse DNA entre as iniciativas. Como “prova” de seu argumento, Aécio apresentava um trecho da legislação que criou o Bolsa Família no qual se apresentava a ideia de que ele nada mais seria do que a união entre 4 políticas focalizadas da gestão de seu partido. Mais de 10 anos após sua criação, o tão polêmico e rechaçado programa, mais uma vez, é alvo de apropriações em cenário eleitoral.
A postura de Aécio e do PSDB é curiosa porque, ao reivindicar a paternidade do Bolsa Família, acaba por deixar órfãos milhares de eleitores tucanos que, na realidade, gostariam de ver o programa encerrado. Aliás, é um movimento curioso observar tantos críticos daquilo que chamam de “assistencialismo” buscarem reivindicar, nas redes sociais, a autoria desse projeto tão republicano – mas que é visto, em outros momentos, como instigador do ócio, da desídia, do compadrio e do voto de cabresto. Que bom seria se essa disputa ocorresse em virtude de um ganho de consciência do conservadorismo – não parece ser o caso.
Também causa um certo espanto que Aécio venha a utilizar a lei que criou o programa como fundamento para sua defesa quando, em outros discursos, promete transformar o Bolsa Família em “lei”. Por trás desses mecanismos, a mesma estratégia de apropriação de cunho populista, meramente eleitoral, a qual também pautou a campanha de Marina Silva (que prometeu um “décimo terceiro” para os beneficiários a três dias do primeiro turno) e, em 2010, a de José Serra (que propôs, no meio do segundo turno, “dobrar” o pecúnio).
Parece ser necessário, para que o debate seja qualificado, que transcendamos a lógica formal/legal, de forma a fazer com que expandamos a compreensão acerca do grau de mudanças que conformam o Bolsa Família quando o comparamos com outras iniciativas de transferências condicionadas de renda, tal qual, mais uma vez, parece querer fazer o PSDB. De outra forma, se continuarmos a buscar uma mera origem “primeva” de uma política pública, teríamos sempre, p.ex., de disputar o legado das creches a partir dos jardins de infância de Mario de Andrade ou, para ficarmos em um tema mais caro a Aécio, a abertura dos mercados – defendida como vanguarda pelo PSDB e realizada antes por Collor de Mello.
Um olhar como esse, voltado a identificar apenas quem teve a primeira ideia a respeito de um dado tema, não é sensível para lidar com as complexidades da política pública, sobre suas características de gestão, sobre os desafios de implementação. Conforme tão bem já ponderou a própria presidenta-candidata, desenhar políticas-piloto é, realmente, um mérito do PSDB. O problema está em sua conversão em ações sistêmicas, com vocação para lidar com os reais objetivos que conformam a própria formulação do programa – e, principalmente, com o tamanho do desafio contido em um país de dimensões continentais como o Brasil. Se faz algum sentido pensar em “paternidade” de alguma política pública, aí está um referencial possível: o quanto ela é capaz de atender aos objetivos a que, originalmente, se propõe, e quais os resultados concretos a partir do momento em que é implantada?
Para contribuir com a discussão, gostaria de transcrever um trecho de um artigo que apresentei, em coautoria com Aline Zero Soares, no último Congresso Latinoamericano de Administração Pública (CLAD), realizado no Uruguai em Novembro de 2013. Nele, construímos o argumento de que o Bolsa Família é parte de um projeto maior e mais robusto de reconfiguração da visão de cidadania contida no modelo de gestão pública tocado pelo governo federal a partir de 2003. Seguem, abaixo, trechos que explicam o regime de mudanças fundamentais – que traduzem, em termos mais sensíveis, o porquê da “autoria” do Bolsa Família não estar nas mãos da administração responsável pelo país no exercício anterior, e as razões que demandam uma redefinição desse debate em outros termos:
“Uma primeira dimensão a ser apresentada dentro da hipótese analítica da ocorrência de indícios de desenvolvimento de um modo distinto de se conceber e realizar a gestão pública em âmbito federal nos últimos dez anos diz respeito à relação entre Estado e cidadão. Em uma primeira análise, pode-se compreender a essa interação por meio de duas questões básicas: 1) que visão o Estado tem a respeito do indivíduo quando formula e implementa suas políticas públicas?; 2) que expectativas ou papéis o Estado atribui ao cidadão com relação às próprias atividades compreendidas como precípuas enquanto razões de ser de um governo? (...)
Com relação à primeira questão apresentada, pode-se compreendê-la melhor por meio da análise dos fundamentos de uma política pública – que, por sua razão de ser, é necessariamente voltada para um conjunto da sociedade. Em abstrato, elementos básicos na composição de uma policy podem ser apresentados da seguinte maneira, tal qual uma tipologia básica: 1) qual é o núcleo (ou unidade) básica beneficiária e o que pressupõe sua escolha; 2) de que forma o benefício é ofertado pelo Estado e por aquele realizado; 3) qual a razão de ser para a seleção de beneficiários – e por que há quem não tenha sido selecionado. (...)
De fato, esse programa – considerado como a principal estratégia do governo do Partido dos Trabalhadores no campo da assistência social – representou, em um primeiro sentido, a confluência de quatro políticas sociais setoriais que começaram a ser desenvolvidas ainda durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso: o Bolsa-Escola, o Auxílio-Gás, o Bolsa-Alimentação e o Cartão-Alimentação (SENNA, 2006). No entanto, diferenças exemplares com relação às três questões tipológicas suscitadas acima contribuem para explicar a ressignificação da cidadania dada a partir da gestão pública ao longo dos últimos dez anos.
Em primeiro lugar, uma sensível alteração com relação ao rol de beneficiários dessa política social é observável: anteriormente, os principais favorecidos foram concebidos como integrantes de núcleos familiares, mas conceituados dentro de um entendimento ortodoxo: eram inelegíveis gestantes, nutrizes ou casais sem filhos (Idem, ibidem). Com efeito, tal escolha acabava por beneficiar um certo conjunto de favorecidos em detrimento de outros, possivelmente mais vulneráveis no interior de um agrupamento social já considerado extremamente frágil. A partir de 2003, entretanto, não apenas tais sujeitos foram integrados à política como a ideia mesma de beneficiário expandiu-se qualitativa e quantitativamente: o núcleo familiar passou a ser compreendido como uma unidade mais ampla, não mais necessariamente consanguínea, de tal forma a compreender a comunidade fática, real, que coabita um dado recinto e que realiza, lato sensu, a ideia de família, contrapondo-se a um certo entendimento restrito prévio – de origem possivelmente não-laica – que despotencializava o alcance dessa política social. Mais ainda, como se sabe, atribuiu-se a responsabilidade pela gestão do cartão que permite a retirada dos benefícios para as mulheres, o que representa uma histórica reconfiguração a respeito das relações de gênero em um país com larga tradição patriarcal (FREYRE, 1933).
Nesse contexto, a escolha governamental de atribuir às mulheres a competência pelo recebimento do pecúnio e a eliminação de uma série de pré-requisitos com relação ao rol de favorecidos expressam mudanças fundamentais a respeito de como o Estado passou a observar a cidadania e, por conseguinte, a sua própria capacidade de interferência na realidade social para produzir uma outra forma de republicanismo a partir da assistência social. Se tal política tinha elementos vigentes em período prévio, ela acabou por ser transformada em uma estratégia mais ampla para a transmutação de iniquidades postas também em regimes simbólicos da realidade brasileira, o que permite a constatação, mediante o exemplo do PBF, do desenvolvimento de uma visão mais ampla e potente a respeito do cidadão.
Secundariamente, um outro conjunto de mudanças relevantes de estratégia para a implementação dessa política de assistência social também permite vislumbrar um outro entendimento sobre a relação entre Estado e cidadão que passou a se desenvolver nos últimos dez anos. Previamente, os benefícios direcionados aos cidadãos haviam sido desenhados ou com fins específicos e estipulados ou já eram restritos a priori. Na prática, os favorecidos ou recebiam seu benefício em sua forma acabada – uma cesta básica, um botijão de gás – ou tinham direito apenas à realização da troca do pecúnio recebido por determinados produtos. Com a instauração do Bolsa Família, essa lógica foi completamente alterada, de tal maneira que o cidadão passou a ter liberdade para o consumo de quaisquer bens ou produtos. De fato, é possível observar aí outra transformação significativa acerca da visão do Estado sobre os cidadãos: se, anteriormente, apresentava-se certa desconfiança na capacidade cognitiva, na autodeterminação e mesmo na consciência moral dos favorecidos por lhes obrigar a consumir um rol extremamente limitado de produtos, posteriormente tais restrições deixaram de existir. Não mais passou a vigorar o entendimento facilmente atribuível como autoritário por parte do Estado de enxergar os cidadãos em situação de vulnerabilidade como incapazes de realizar escolhas ou de se compreender, de forma efetivamente paternalista, que apenas a Administração sabe o que é que os sujeitos factualmente precisam para sua sobrevivência.
Percebe-se, então, que pela ampliação da liberdade de escolha que passa a ter o beneficiário arregimenta-se ou direciona-se o fulcro da política social em questão como a objetivação de um direito, e não a concessão de uma mera benesse ou benfeitoria do Estado. Nesse sentido, cabe ainda discutir a reconfiguração conceitual acerca da ideia de condicionalidade, que expressa, em um sentido primevo, a “contrapartida” dada pelo favorecido para a sustentação de sua participação no PBF. Em linhas gerais, a continuidade da concessão do benefício depende de índices de frequência escolar e de vacinação e de realização de exames médicos por parte dos dependentes. Se, por um lado, há autores que concebem tal situação como uma limitação ao escopo do direito à assistência social (LAVINAS, 2004), por outro é possível compreender tal lógica sob outro prisma, a saber, a de que a participação dos favorecidos em políticas públicas de saúde e educação na realidade funciona como estratégia de ampliação da cobertura dessas políticas públicas para aqueles que se encontram em maior situação de vulnerabilidade e que, historicamente, foram os mais prejudicados pela ausência da atuação do Estado e do alcance incompleto das políticas sociais fundamentais para a realização da cidadania. Em outras palavras, portanto, a condicionalidade não funciona, efetivamente, apenas como dever para o beneficiário[1], mas sim, e mais relevante, como artifício para fazer com que os entes da federação responsáveis por tais serviços públicos expandam-nos de forma a fazer com que aqueles cidadãos passem a acessá-los, o que potencialmente constitui novidade histórica enquanto política pública de Estado para os setores mais situacionalmente subalternos da sociedade brasileira.
Terciariamente, faz-se necessário discutir os critérios de definição dos beneficiários. Enquanto essa escolha se fazia por meio de estratégias dissociadas (como ocorrera ao longo do segundo governo FHC), a política de assistência social desenvolvida em âmbito federal propunha um modelo de seleção distinto para cada mecanismo. Com efeito, o estabelecimento de critérios específicos para a determinação dos grupos de beneficiários redundava na circunstância de haver cidadãos em condição socioeconômica similar que recebiam um, dois, três, ou todos os quatro tipos de assistência disponibilizados (SENNA, 2006). Na prática, para além de significar um problema relevante em termos da coordenação interministerial, expressava ainda uma lacuna fundamental com relação à compreensão do problema da vulnerabilidade social. Isso porque, efetivamente, entendendo-se que exclusão social seja uma resultante – de grande complexidade – de déficits de cidadania, déficits econômicos e históricos de longa duração, o tratamento diferenciado para a resolução de especificidades pode significar uma grande sensibilidade técnica do ponto de vista da gestão, ao passo que soluções customizadas para situações que não sejam peculiares entre si revelam, na realidade, uma atuação estatal incapaz de tratar os cidadãos na forma equânime necessária para, no caso, superar a desigualdade social ao mesmo de forma sustentada e criteriosa.
De outra forma, a unificação das estratégias de promoção da assistência social por meio da criação de um único programa significou, de um ponto de vista mais conceitual, a compreensão do problema da vulnerabilidade de uma forma mais integrada, sem deixar de se admiti-la como complexa. Isso porque a adoção de uma saída pecuniária como tática para a implementação da política permitiu maior maleabilidade para o trato de contextos específicos de exclusão, isto é, a admissão de uma bolsa financeira viabiliza ao beneficiário e ao poder público adotarem as trajetórias que forem adequadas a cada realidade. Além disso, o mecanismo financeiro supracitado acaba ainda por influenciar o desenvolvimento de um expressivo processo de dinamização de mercados locais, proporcionando um efetivo efeito multiplicador na economia. O pecúnio, portanto, reforça a cidadania também mediante o fortalecimento do vínculo dos cidadãos às suas comunidades, dando sentido mais amplo à ideia de proteção social.” (REIS & SOARES, “Modelos de governança e ferramentas de gestão pública em macropolíticas federais brasileiras”, CLAD, 2013, pp. 2-5).
Portanto, para além do alcance consideravelmente superior do Bolsa Família com relação às ações focalizadas que o antecederam (50 milhões de beneficiários versus 5 milhões), há todo um conjunto de pressupostos conceituais e esquemas de gestão que fazem com que existam diferenças constitutivas tais dentre as iniciativas que redundem na caracterização delas como feitos qualitativamente distintos.
Mais importante do que isso, contudo, está o entendimento maior, para o projeto partidário, do que é ou poderia ser uma política social, do quanto essa visão se conecta à ideologia do partido – seja a que consta em programas, seja a efetivamente verbalizada, seja a praticada nos governos. E aí, inelutavelmente, há um abismo entre PT e PSDB. No tucanato, existiu historicamente um setor minoritário com alguma vocação progressista, com algum interesse na mitigação da desigualdade social – por meio, é claro, da intervenção do Estado. Os governos conduzidos por esse partido, no entanto, sempre adotaram estratégias tímidas, extremamente modestas, “pilotos” de políticas voltadas ao fortalecimento da cidadania com base nos primados apresentados acima.
Com o avanço do PT ao poder, no entanto, o PSDB foi se deslocando cada vez mais à direita, buscando manter uma “representatividade” capaz de lhe permitir a sobrevivência institucional. Conquistaram a direita, e então o discurso e práxis do partido foram se tornando uma salada mista capaz de combinar liberalismo econômico com conservadorismo político – fontes bastante distantes da socialdemocracia. As políticas sociais seriam combatidas por seus eleitores e até por seus congressistas, convencidos de que sua falsa antítese – a meritocracia – seria a solução republicana. No período eleitoral, no entanto, a retórica da sobrevivência falava mais alto em meio a um país ainda fortemente pautado pela desigualdade – e, portanto, baseado, para seu progresso, no sucesso das iniciativas anticíclicas do PT. Nesse curto-circuito, a tão-elitista direita brasileira permaneceria órfã, mas ainda ligada ao tucanato como a opção possível para a manutenção de seu “direito à distinção”. O Brasil não é para principiantes.
Em síntese, enfim, o que está em jogo, no caso do Bolsa Família, não é bem a sua “paternidade”, mas sim os conceitos que estão por trás das políticas sociais empreendidas por Lula e Dilma e por FHC, como esses pressupostos se ligam às visões ideológicas mais profundas de cada partido, como essas sensíveis diferenças são traduzidas a partir de mecanismos mais ou menos efetivos, eficientes e eficazes de gestão, e quais as promessas de aperfeiçoamento dessas iniciativas para os próximos anos. Na retórica de Aécio, no limiar, parece estar apenas o “não vou acabar com o programa”, o que é a síntese clara da esquizofrenia programática em que se enfiou o PSDB, ao longo desses últimos anos, para buscar vitórias eleitorais.
[1] Um contra-exemplo válido para a compreensão da possível dimensão de um “dever” para o beneficiário de uma política social – na medida em que imputa ao próprio indivíduo a responsabilidade completa pela recepção do pecúnio em questão – é a hipótese (largamente desenvolvida, por exemplo, no contexto da disputa presidencial ocorrida em 2010) de mudança dos parâmetros do Bolsa Família de tal maneira a permitir a transferência de renda apenas para favorecidos cujos dependentes atinjam certo desempenho acadêmico nas escolas. Naturalmente, um modelo de política de assistência social que diga respeito à meritocracia como pressuposto para sua realização aproximar-se-ia de uma concepção de gestão pública típica do gerencialismo ou da gestão para resultados, afastando-se simultaneamente, no caso, da leitura que considera a assistência social uma garantia per se da cidadania, inclusive conforme prevê a Constituição Federal.
http://jornalggn.com.br/blog/sergiorgreis/a-%E2%80%9Cpaternidade%E2%80%9D-do-bolsa-familia-e-a-necessidade-de-redefinicao-do-debate
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