Independentemente de possíveis erros e injustiças que o julgamento da Ação Penal 470 possa ter cometido e das controvérsias que se seguirão a seu respeito, uma das suas várias conseqüências, ao menos, é possível de ser assentada: houve um aumento do risco da prática da corrupção e isto provocará temor nos políticos e nos funcionários públicos quanto à tentação de cometer este delito. A prisão dos condenados – políticos que foram poderosos e banqueiros, entre eles – suscita a idéia de que a impunidade para com a corrupção teve um marco fincado, uma linha divisória traçada, que precisam ser respeitados. Se até agora o baixo risco compensava a corrupção, a punição é um desestímulo.
 
Os julgamentos dos próximos casos de corrupção – o mensalão mineiro, o propinoduto no Estado de São Paulo, os fiscais da Prefeitura, o presidente destituído do Tribunal de Justiça da Bahia, o mensalão do DEM em Brasília etc., - evidentemente, terão que confirmar este marco. Se não o confirmarem, a impressão que ficará é que a AP 470 foi parcial e que se constituiu numa vingança contra o PT. É preciso notar que se a condenação e as prisões constrangem políticos e funcionários públicos, elas constrangem também o judiciário. Para que não seja acusado de parcialidade, este poder terá que positivar o julgamento do mensalão como prática recorrente, como uma espécie de cláusula vinculante, válida para os outros casos de corrupção. Isto significa que a condenação de corruptos terá que ser critério geral do judiciário de agora em diante. Se isto ocorrer, a AP 470 terá exercido o efeito do chamado “terror originário” ou “terror fundante”, referido por Maquiavel.
 
O Terror Originário
 
A tese de Maquiavel é a de que nos Estados bem fundados, o ato da  fundação está envolvido no processo de produção de um terror originário. Este terror nasce de atos de força e de violência perpetrados pelo líder da fundação ou pode estar codificado na lei rigorosa ou na religião que estabelece obrigatoriedades severas. Normalmente, o terror aparece de forma combinada nos três modelos: na violência punitiva da espada pública, na lei ou na religião. A função principal do terror originário é o de difundir o medo do castigo e garantir a vigência da lei e da nova ordem que ele estabelece. O ato mais conhecido e popular de terror originário foi aquele perpetrado por Moisés que, ao descer do monte onde havia recebido as tábuas da lei, encontrou o povo adorando um bezerro de ouro. Ele mandou passar no fio da espada cerca de 23 mil homens, o que infundiu o terrível medo do castigo para o caso da violação da lei. Rômulo, Teseu e Ciro, os outros heróis de Maquiavel, também perpetraram a violência originária para fazer valer os estatutos legais e legitimar na nova ordem.
 
Para Maquiavel, O terror originário é uma exigência mesma do caráter ambivalente dos seres humanos, definido como natureza e como cultura, como bestia (animal) e como ser racional. Sendo a natureza humana portadora da potência universal da maldade, sem o medo suscitado pelo terror originário, o poder não se constituirá adequadamente e a lei não terá a força de codificar a violência monopolizada e legítima do Estado. Consequentemente, a lei não terá força de desenvolver-se e gerar as condições de um viver civil adequado e civilizado e o homem tenderá a praticar o mal sempre que possível. O medo do castigo é uma exigência mesma para criar os impulsos necessários à civilização do homem e ao controle da bestia.
 
Para que sua eficiência perdure, o terror originário terá que ser reposto recorrentemente, seja pela excelência e força das leis, seja por expurgos, ou seja, por atos exemplares, capazes de mantê-lo vivo na mente dos povos na forma do medo do castigo. O terror originário expressa, assim, o nascimento da própria virtude (virtù) dos povos, dos governantes e das instituições, sem a qual os corpos políticos se corrompem.
 
A República de Roma antiga nos oferece inúmeros exemplos de reposição do terror originário. Um dos casos mais emblemáticos foi o do Cônsul e general Tito Mânlio Torquato. Dada situação defícil do exército romano na guerra contra os latinos, o seu filho, também chamado Tito Mânlio, decidiu atacar os inimigos por conta própria, com um grupo de soldados. A indisciplina obrigou o general a julgar seu próprio filho, condenando-o à morte, embora o amasse profundamente. A crueldade da pena e a dor do pai causaram consternação e temor em todo o exército, fator que estimulou a bravura. O exemplo dos governantes e dos líderes na observância da lei, a punição das más ações e a premiação das boas, praticadas em favor do bem público, são estímulos potentes para a vigência e a prática das virtudes cívicas e para a difusão da moralidade política e social.
 
Brasil: Um Estado Mal Fundado
 
O Brasil não se enquadra nem nas tipologias antigas (Israel, Roma, Pérsia, Atenas), nem nas tipologias modernas (Estados Unidos), de Estados bem fundados. Estados mal fundados tendem a ficar por longos tempos extraviados, na busca de um rumo. Nunca tivemos um terror originário que representasse um acerto de contas com a antiga ordem dominante e fundasse uma nova, com base na lei, na justiça e na equidade. Sequer tivemos uma fundação enquanto nação. Na Independência, os donos da nova ordem foram os que estavam no poder na antiga. A República representou a continuidade do mando de setores do velho estamento, agora associados às oligarquias estaduais.
 
As leis nunca funcionaram a partir do princípio da igualdade – pressuposto das democracias modernas. O seu enorme emaranhado e a sua falta de clareza são a base da impunidade e da permissividade corrupta. Elas sempre serviram de instrumentos de violência e de punição de escravos, de negros e de pobres e de massacre de índios. No Brasil, temos ainda um vasto império do mando pessoal que sufoca a lei isenta pela vontade do arbítrio. A aplicação da justiça é enviesada e as estatísticas carcerárias estão aí para provar que os pobres são seletivamente punidos. Os líderes são exímios na promoção do mau exemplo. Nas solenidades de concessão de medalhas nos finais de ano, os poderosos se premiam a si mesmo e aos áulicos, quando não até alguns corruptos. As virtudes, os bons exemplos, as ciências, os inventos, nunca são condecorados.
 
O atual quadro de coisas gerou uma exaustão da sociedade para com o sistema político e para com as instituições, situação agravada pela crise de lideranças e de perspectivas. A reforma do Código de Processo Penal é urgente, assim como outras reformas institucionais, pois se trata de um imperativo para a democratização do Brasil. Em junho, setores da sociedade perceberam que as mudanças só virão com a pressão das ruas. O ano de 2014 oferece uma enorme oportunidade para que o sossego do marketing político e as campanhas de TV sejam acossados pelo calor das ruas.
 
Aldo Fornazieri – Cientista Político e Professor da Escola de Sociologia e Política
 
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