terça-feira, 5 de julho de 2011

‘O juiz ficará de mãos atadas’

 






Não há mais a sensação de claustrofobia, reforçada pelas dezenas de processos espalhados pelo corredor e pela sala de pouca ventilação dos tempos da 6ª Vara Federal. O agora desembargador Fausto De Sanctis ocupa- um gabinete amplo no prédio do outro lado da rua e os documentos, em menor volume, estão diligentemente organizados em mesas e prateleiras. No horizonte, em vez de fachadas sujas, uma rara aglomeração de árvores na Avenida Paulista, o Parque Mário Covas. Para seres de espírito burocrático, não incomuns no Judiciário, talvez fosse a dose final de acomodação. Mas De Sanctis permanece irremediavelmente irrequieto. Nos últimos meses, absorto nas novas funções e à espera do desenrolar das ações disciplinares contra ele, o magistrado assistiu à completa desmontagem de suas decisões contra criminosos de colarinho-branco. Em um curto espaço de tempo, tribunais superiores suspenderam a Operação Castelo de Areia, que investiga propinas pagas a políticos pela empreiteira Camargo Corrêa, e a condenação do banqueiro Daniel Dantas no curso da Satiagraha. Nada disso parece ter abalado suas convicções. “Não me arrependo de nenhuma decisão”, diz o juiz, cujo trabalho é atacado no Brasil e elogiado fora dele, inclusive nos Estados Unidos. Durante pouco mais de uma hora, resumidos a seguir, De Sanctis lembrou os principais casos na primeira instância e falou da Emenda Peluso, do abuso no uso do habeas corpus, da Marcha da Maconha e, claro, da corrupção no Brasil.

CartaCapital: Nos últimos anos, e nas últimas semanas, o seu trabalho esteve constantemente sob holofotes. O senhor foi muito criticado. Arrepende-se de alguma decisão?

Fausto De Sanctis: Todas as minhas decisões foram refletidas, levaram em consideração as garantias individuais, os fatos, a lei e a necessidade de proteção da sociedade. As decisões de grande repercussão foram pautadas por uma consistência e uma preocupação perene em tentar fazer o melhor. Não me arrependo de nada. Pela natureza dos casos que chegavam à 6ª Vara, pela notoriedade dos acusados, meu trabalho acabou muito exposto, mas nunca busquei os holofotes. Tive a preocupação não só de decidir, de condenar ou absolver, mas de prover a sociedade com os recursos devidos. Ao todo, 38 entidades beneficentes receberam repasses de recursos obtidos de delações premiadas e vendas antecipadas de bens apreendidos em casos julgados por mim. Visei contribuir para uma Justiça de Primeiro Mundo, solidária e igual.
CC: Mas seus adversários o acusam de autoritarismo.

FDS: A desqualificação do julgador é uma técnica de neutralização conhecida. Tenta-se neutralizar a credibilidade daquilo que é feito atacando o juiz, porque se espera e, muitas vezes já se sabe, que a prova é de tamanha evidência que poderá ensejar uma decisão desfavorável ao acusado. Quem leu e lê as minhas decisões sabe que elas foram pautadas apenas pela correção e não por um protagonismo de veia autoritária, do direito penal do inimigo, do filhote de ditadura, como disseram. A grande tarefa de um juiz de uma vara especializada é conciliar o dever de garantir o conteúdo dos direitos mínimos fundamentais com a eficácia da persecução penal. É fácil defender o réu e abandonar a sociedade, o difícil é conciliar a atuação legítima do Estado e a garantia dos direitos humanos, individuais.

CC: Depois de tanta pressão, de enfrentar vários processos disciplinares, de virar alvo de integrantes de cortes superiores, o senhor ainda acredita no exercício independente da magistratura?

FDS: A atuação das varas especializadas mostrou um país, revelou o grau de comprometimento das instituições, inclusive da mídia. Para mim, a importância de tudo o que aconteceu é uma: ficou claro que a hipocrisia não pode mais imperar nos órgãos de poder e nos poderes. O crime organizado confronta o Estado. Mas, em resposta à pergunta: sim, acredito no Poder Judiciário. A maioria absoluta dos juízes atua de maneira absolutamente correta, sem interesse próprio. Sou magistrado por convicção. Em nenhum momento me deixei seduzir por outro caminho. Por acreditar na Justiça é que continuo a ser juiz.

CC: Mas por pouco o senhor não foi punido pelo Conselho Nacional de Justiça.

FDS: O CNJ nada mais fez do que referendar a decisão tomada pelo órgão especial do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, tribunal ao qual estou ligado como desembargador. Em outras palavras, o CNJ assumiu a decisão do tribunal como uma decisão acertada, no sentido de que não cometi nenhuma ilegalidade.

CC: O STJ anulou a Satiagraha sob o argumento de que o uso de agentes da Abin foi ilegal. É possível afirmar isso?

FDS: É muito comum a atuação de órgãos governamentais, agências governamentais, na investigação de fatos de interesse público. Em casos de sigilo, haveria a exigência de autorização judicial a permitir o compartilhamento dessa informação. Desde que a atuação de órgãos como a Abin ou o Banco Central, o INSS, tenha sido pautada dentro dos limites da autorização judicial, é válida. Mas aceitemos o argumento de que a participação foi ilegal. O fato é que as interceptações telefônicas foram enviadas pelas operadoras diretamente ao guardião, o sistema da Polícia Federal. Se a manipulação de documentos pelos agentes da Abin era ilegal, bastaria anular as provas por eles manipuladas. Jamais o teor completo, obtido dentro dos limites legais da autorização judicial.

CC: O que o senhor acha da proposta do ministro Cezar Peluso para apressar a execução das penas e reduzir o tempo de trâmite dos processos?

FDS: O juiz tem de levar em consideração os fatos e as normas. Não é possível mais, como se faz hoje, fazer a interpretação da norma enquanto valor, e dar as costas aos fatos, à realidade. Há quem diga, como Douglas Fisher, que a verdadeira jurisdição constitucional é a ordinária, pois o juiz de primeiro grau está em contato direto com as partes. É incompreensível que o sistema brasileiro abarque o princípio da inocência de tal maneira que exija um transcorrer até o último grau de jurisdição. A Emenda Peluso é muito importante para minimizar os efeitos danosos da morosidade da Justiça. Mas eu incluiria outra questão.

CC: Qual?

FDS: A interpretação e a elasticidade que se dão ao habeas corpus se justificam? Tenho de dizer que o habeas corpus é um instrumento absolutamente necessário, e deve ser usado pelos advogados como recurso constitucional, mas o HC tem sido utilizado como uma maneira de fraudar o devido processo legal, que também é um valor constitucional. É uma maneira de se evitar que o processo tenha o seu trâmite normal, que seja objeto dos seus recursos previstos legalmente e que haja apreciação profunda da prova no campo adequado e não por decisões monocráticas, isoladas, fora do contexto fático e da responsabilidade ética e jurídica.

CC: O que o senhor acha do novo Código de Processo Penal?

FDS: É um movimento garantista radical. Veja o caso da prisão preventiva. Quando estava na 6ª Vara, o índice de prisões preventivas era de 0,25% dos casos. Portanto, não sou fanático pela prisão preventiva. Mas o que o novo código prevê é um absurdo, veda a preventiva para crimes com pena inferior a quatro anos. Isso retira do juiz a possibilidade de apreciar a conveniência ou não da prisão no caso concreto, e isso me assusta. Furtos consumados, crimes econômico-financeiros não são mais passíveis de prisão preventiva. O juiz ficará de mãos atadas se, por exemplo, um acusado ameaçar uma testemunha. O curioso é que as convenções internacionais consideram grave uma pena igual a quatro anos, no Brasil não. Não tenho só críticas. Considero válida a inserção no Código de medidas alternativas à prisão.

CC: Não é a consagração do princípio de que só vai para a cadeia o ladrão de galinha?

FDS: Não posso negar que, ao se fazer um estudo nas cadeias brasileiras, só vamos encontrar pessoas de baixa estatura econômica. E o Judiciário existe para igualar, justiça significa olhar o outro e igualar, ela é condição de bem-estar social e jamais pode ser dissociada da realidade, da sua utilidade. A tarefa do Judiciário é a correção de rumos. O País peca por insistentemente não querer as mudanças necessárias e adequadas. Participei recentemente de um seminário internacional no Peru e as discussões, lá, eram como tratar as organizações criminosas, que são devastadoras do Estado, capazes de influenciar na vontade da Polícia, do Ministério Público, dos políticos e do juiz. Temos de impedir que o crime organizado tome o controle como tem ocorrido em vários países.
CC: O Brasil corre esse risco?

FDS: Não tenho dúvida, o tráfico de drogas usa o País como um corredor natural de distribuição. Fico surpreso com o atual nível de discussão na sociedade. A Marcha da Maconha, para mim, é um exemplo claro do estado de secessão da sociedade brasileira.

CC: Por quê?

FDS: A preocupação de um grupo de privilegiados é com a liberação de uma droga, mas a lei já é totalmente benevolente. Não vejo no Brasil uma marcha por uma educação pública de qualidade, porque não é uma preocupação das elites dominantes, ou pelo combate à corrupção, que é avassaladora. Não vejo uma marcha por uma saúde pública de qualidade. Por quê? Porque as pessoas privilegiadas estão preocupadas em descriminalizar o uso da maconha. Agora, veja, na questão das drogas, o País praticamente já descriminalizou, pois hoje o juiz só pode oferecer ao consumidor uma medida educativa.

CC: Como lidar com o assunto? A repressão, a guerra às drogas, não tem obtido muitos avanços.

FDS: O risco de se liberar simplesmente o consumo de drogas é o de se perder o controle sobre a saúde pública. A discussão- tem de partir de até que ponto o País está pronto para assumir essa massa de viciados que virá com a liberação. Na Nova Zelândia, por exemplo, a BZP, uma droga sintética, foi permitida em determinado momento. Perceberam-se depois seus efeitos danosos. Primeiro, o governo tentou reduzir a distribuição. Por fim, decidiu proibir o consumo novamente. O Brasil não está preparado para receber massa nenhuma de viciados. Não cuidamos nem dos que existem hoje.

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