Criada há cinco anos para coibir a violência doméstica e familiar contra as mulheres, a legislação também tem beneficiado homens em várias partes do Brasil
Solange AzevedoNA JUSTIÇA
Novais foi ameaçado pelo ex-companheiro e
conseguiu legalmente que ele se mantivesse distante
Celso Bordegatto, Clodover Mallmann, Edson Santos Novais e Valdecir Maier vivem em diferentes partes do País. Eles não se conhecem, têm idades e profissões variadas. Mas um passado em comum. Todos alegam ter sido severamente perseguidos depois de terminarem uma relação afetiva. Todos foram beneficiados, por decisão judicial, com medidas protetivas previstas pela Lei Maria da Penha. Uma lei criada há cinco anos com o objetivo de coibir a violência doméstica e familiar praticada, há séculos, por homens contra as mulheres. “Não me restava outra alternativa”, afirma o engenheiro agrônomo Bordegatto, 48 anos. “Minha ex me infernizou durante um ano. Eu só queria ter paz. Mas ela dava plantões na frente do prédio onde fui morar. Incomodava os porteiros perguntando se eu estava acompanhado. Danificou o meu carro. Me seguia. Mandava e-mails e mensagens para o meu celular. Telefonava. Me procurava no meu trabalho. Me ameaçou de morte.” A violência no relacionamento, segundo o engenheiro, primeiro foi verbal. Mais tarde, física: “Antes eram apenas discussões. Ela falava alto, se excedia e saía para a rua. Quando partiu para a agressão física, apagando um cigarro no meu peito, eu decidi terminar.”
O casal ficou junto durante dois anos. As rusgas se tornaram insuportáveis quando eles passaram a dividir o mesmo teto. Foram apenas dois meses. Dois meses difíceis. Bordegatto diz que a mulher tem três filhas de casamentos anteriores, que moravam com eles na capital mato-grossense, e que a convivência dela com as duas mais velhas era conturbada. “Nossas brigas eram sem motivo. Acho que ela descontava em mim os problemas com as meninas”, afirma o engenheiro. “Quando me separei e ela não parava de me incomodar, ainda tive de ouvir dos porteiros do meu prédio que ela estava me expondo ao ridículo e que, se eu fosse homem, teria socado ou tirado a vida dela.” O advogado de Bordegatto, Zoroastro Teixeira, acionou a Justiça sustentando que a legislação brasileira não possuía medidas tão eficazes para proteger seu cliente quanto as determinadas pela Lei Maria da Penha. “O juiz aplicou o princípio da isonomia, em que homens e mulheres são iguais perante a lei. E, por analogia, decidiu que a mulher deveria manter distância de, pelo menos, 500 metros do meu cliente. Também não poderia entrar em contato através de qualquer meio de comunicação”, relata Teixeira. Apesar disso, documentos anexados ao processo mostram que, por um bom tempo, ela descumpriu essa decisão e tentou se reaproximar. Só parou quando o advogado comunicou as transgressões à Justiça.Um levantamento feito pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen) mostra que, em dezembro de 2010, havia 58 mulheres presas no Brasil enquadradas na Lei Maria da Penha. Como a lei foi concebida para proteger qualquer mulher em situação de violência doméstica – seja ela companheira, filha, mãe, avó, cunhada – e não existem informações sobre as vítimas dessas detentas no relatório do Depen, não é possível saber quantos e se há homens entre elas. Já as chamadas medidas protetivas de urgência, como as que favoreceram o engenheiro Bordegatto no Estado de Mato Grosso, foram aplicadas em benefício de outros homens em locais como Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Rio de Janeiro e Minas Gerais. O gaúcho Edson Santos Novais, 40 anos, foi um dos que entraram na Justiça. Ele conseguiu se livrar da perseguição e das ameaças do ex-companheiro porque, em fevereiro de 2011, o juiz Osmar de Aguiar Pacheco determinou que o rapaz se mantivesse a, pelo menos, 100 metros de distância e não tentasse nenhum tipo de contato.
AGRESSÃO
A ex-companheira de Bordegatto apagou um cigarro
no peito dele. Foi a gota d’água para a separação
Novais relata que, além da agressão pública, o ex-companheiro o ameaçou: “Vou te pegar, vou te matar. Vou matar a sua família.” “Ele ficou descontrolado quando eu disse que não tinha obrigação de atender as ligações dele”, afirma o operador de máquinas. “Foram três meses de perseguição. Comecei a ter uma certa fobia. Não saía na rua. Só ia de casa para o trabalho e do trabalho para casa.” Depois que o juiz determinou o afastamento, Novais e o ex-companheiro se encontraram casualmente algumas vezes na rua e em estabelecimentos comerciais. Mas sem animosidades. Apenas se cumprimentaram, a distância. A ex-desembargadora Maria Berenice Dias, presidente da Comissão da Diversidade Sexual do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, elogia a decisão do juiz Pacheco. “Foi uma solução factível, de extrema sensibilidade e coragem”, afirma Maria Berenice. “A Lei Maria da Penha não ficará maculada caso seja, eventualmente, aplicada para proteger homens.”
A opinião da ex-desembargadora, no entanto, encontra resistência de grupos feministas. “A Lei Maria da Penha foi criada para proteger as mulheres, historicamente discriminadas na nossa sociedade. Usá-la para beneficiar outros públicos significa desvirtuá-la”, defende a socióloga Wânia Pasinato, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, da Unicamp, e do Núcleo de Estudos da Violência, da USP. “Apesar de isoladas, essas determinações têm de ser contestadas”, acredita a advogada Carmen Hein de Campos, coordenadora nacional do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher. “Como os juízes têm de tomar decisões que envolvem a Lei Maria da Penha num prazo máximo de 48 horas, alguns advogados tentam dar celeridade aos processos forçando a barra.” Carmen lembra que o Código de Processo Civil já permitia que medidas cautelares fossem adotadas para qualquer pessoa. As alterações feitas no Código de Processo Penal, em vigor desde julho, também preveem restrições como as da Lei Maria da Penha.
"A Lei Maria da Penha não ficará maculada nem será desvirtuada
caso seja, eventualmente, aplicada para proteger homens"
Maria Berenice Dias, ex-desembargadora, presidente da
Comissão da Diversidade Sexual do Conselho Federal da OAB
O empresário Clodover Mallmann passou por situação semelhante. Ele vive em Crissiumal, a 500 quilômetros da capital gaúcha. As desavenças com a ex-mulher, que administrava alguns postos de gasolina da família, teriam começado quando Mallmann descobriu que havia um rombo de R$ 2 milhões nas contas da empresa. “Eram casados havia 20 anos”, afirma Dari Dressler, advogado de Mallmann. “Foi iniciado um processo de separação difícil. Ela pediu que ele fosse afastado do lar. Mas, no final, foi ela quem teve de sair de casa.” O juiz determinou que os dois se mantivessem a uma distância mínima de 50 metros e não tentassem nenhum contato. A história repercutiu rápido na cidade e Dressler ficou famoso por defender Mallmann. “Passei a ser chamado de Mário da Penha”, diz o advogado.
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