segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Como a Irmandade Muçulmana espera chegar ao poder



O caminho das urnas é uma trilha desimpedida para este grupo com raízes no Egito profundo, presente nos subúrbios mais pobres com uma rede de assistência social de uma eficácia de causar inveja ao Estado mais socialdemocrata do mundo. Mas são discretos, quase invisíveis. Assim que a revolução triunfou eles se juntaram à coalizão democrática formada por mais de 30 partidos políticos de todas as etiquetas: desde os laicos até eles, presentes com seu braço político, o recém criado Partido da Liberdade e Justiça. A reportagem é de Eduardo Febbro, direto do Cairo.

Há vitórias silenciosas, medidas, manejadas com a arte de um relojoeiro que controla a mecânica de um relógio. A Irmandade Muçulmana, movimento fundamentalista egípcio criado em 1928 e proibido desde 1954, regula os tempos políticos, seguro de sua vitória passada e da que o espera nas urnas no próximo dia 28 de novembro, quando serão eleitos os representantes da Assembleia do Povo, a Câmara baixa. Os membros da Irmandade Muçulmana têm sido atores obrigatórios da revolução egípcia da Praça Tahrir. No entanto, com o calendário eleitoral já fixado, não querem nem se apressar, nem pesar demasiado, nem ser muito visíveis, nem tampouco conquistar o poder com um só movimento. A divisa de seus criadores diz: “Deus é nossa meta, o profeta nosso chefe, o Corão nossa Constituição, a jihad nosso caminho, martírio nossa esperança”.

O caminho das urnas é uma trilha desimpedida para este grupo com raízes no Egito profundo, presente nos subúrbios mais pobres com uma rede de assistência social de uma eficácia de causar inveja ao Estado mais socialdemocrata do mundo. Mas são discretos, quase invisíveis. Assim que a revolução triunfou eles se juntaram à coalizão democrática formada por mais de 30 partidos políticos de todas as etiquetas: desde os laicos até eles, presentes com seu braço político, o recém criado Partido da Liberdade e Justiça.

Azab Mostafa, um membro do partido, explicou ao jornal egípcio Al-Masryque a Irmandade “reduziu as candidaturas de 50% para 40% quando ingressaram na coalizão democrática”. A discrição é sua identidade. Nos anos de Mubarak, a Irmandade carecia de existência oficial e só chegou ao Parlamento graças a pactos com o poder que permitiu-lhe, em 2005, ganhar uma quinta parte das cadeiras com o disfarce de candidaturas independentes. Trata-se do movimento político religioso mais antigo do mundo árabe. Sua estratégia atual consiste em não infundir medo, em demonstrar que são sociáveis, que a democracia pode contar com eles, que não são os barbudos agressivos que o Ocidente pintou em seu imaginário.

Por meio de alianças com os demais partidos, a Irmandade espera influenciar na elaboração da futura Constituição. Esse é o pesadelo dos partidos laicos do Egito, tanto os históricos como Wafd, Ghad ou a Frente Democrática, ou os criados com o terremoto da revolução da Praça Tahrir, o Partido dos Egípcios Livre ou o Partido Socialdemocrata. Esses movimentos temem que a Irmandade, por meio de seu braço político, o PLJ (Partido da Liberdade e Justiça) decida o caráter da futura Carta Magna e que, com isso, o equilíbrio da igualdade entre os cidadãos seja afetado.

O Islã político e social da confraria buscou uma identidade de partido sem as referências que tanto assustam. Em maio passado, Mohamed Saad el-Katatni, uma das figuras mais eminentes da organização, oficializou no braço político da Irmandade mediante a criação do PLJ. Segundo definiu o dirigente do novo partido, Mohamed Morsy, este grupo é um “partido civil com fundamentos muçulmanos”. Morsy acrescentou na conferência de imprensa que “os partidos religiosos pertencem à Idade Média.” Como prova disso, o vice-presidente do PLJ é nada mais nada menos que Rafik Habib, um prestigiado intelectual cristão cuja presença em um partido oriundo de um movimento islâmico suscitou a ira da comunidade cristã do Egito (cerca de 10 milhões de pessoas).

Habib defende seu posto em uma esfera onde ninguém esconde que a confraria busca formar um Estado islâmico: “A Irmandade – dizem – quer um Estado baseado na charia, mas, ao mesmo tempo, um Estado moderno, civil e democrático, com leis e instituições, que instaure a igualdade dos direitos e deveres para todos os cidadãos”.

A história demonstrou que a discrição pode ser sinal de êxito. Com sutileza, segundos planos e trabalho social disciplinado, a Irmandade sobreviveu a mais de 80 anos de repressão. Uma pesquisa recente mostra que 75% dos egípcios tem confiança na organização. Essa confiança, porém, perdeu parte de sua compacidade com os efeitos da revolução. Os jovens se revelaram contra o caráter monolítico e rígido da Irmandade e entraram em dissidência, criando o partido da corrente egípcia. Mohamed Qassas, uma das figuras mais visíveis desse ramo dissidente, não acredita em uma vitória arrasadora da Irmandade: “o mapa do Egito se modificou, há novos partidos, novos sentimentos; assim, as eleições não podem ser analisadas com a lupa tradicional”.

O Partido da Liberdade e Justiça tem as portas abertas. Seu programa foi criado sem nenhuma referência islamistas. O PLJ defende a independência da justiça, a proteção do sistema democrático e a instauração de um Estado de Direito. Um dos pontos mais controversos, que era a criação de um conselho religioso encarregado de dar seu acordo às decisões do Parlamento, desapareceu dos textos. “Tudo muda no Egito, inclusive a Irmandade Muçulmana”, diz Mohamed Qassas. Os partidos laicos, porém, desconfiam dessa mudança e chegam mesmo a acusar a Irmandade de ter feito acordos secretos com os militares que dirigem o país. Imad Gad, um dos fundadores do Partido Socialdemocrata egípcio, alega que “para a Irmandade os valores que contam, a única coisa que vale é chegar ao poder”. 

A esquerda egípcia e os partidos laicos acusam a organização de impedir que seus militantes participem das manifestações – o que é certo, eles não vão – para diminuir a força dos movimentos sociais que pululam no país e encurralam o Conselho Supremo das Forças Armadas. Em troca disso, o PLJ teria negociado um peso mais consistente no Egito democrático em gestação. “Isso é falso”, respondem seus dirigentes. O certo é que os militantes da Irmandade já não enchem a Praça Tahrir.

A autonomia do PLJ em relação à Irmandade é mais do que discutível. No entanto, a organização não costuma cometer muitos erros estratégicos. O tempo lento é seu melhor aliado. A revolução, não obstante, também a obrigou a apertar o passo. A revolta das novas gerações também soou no interior da Irmandade. Como assinala Abdelmoneim Aboulfoutouh, uma das figuras mais influentes da corrente reformista da Irmandade, “a organização se encontra sob pressão: por um lado estão os jovens, que questionam a verticalidade, por outro, os reformistas da ala esquerda, mais além estão os salafistas – que defendem uma interpretação rigorosa do Islã, e, no meio de tudo isso, está o povo e seus novos interlocutores sociais, esses jovens revolucionários dos comitês populares e dos comitês revolucionários que surgiram com a revolta da Praça Tahrir e que disputam com a Irmandade a sua base social histórica. São muitas coisas ao mesmo tempo”. A ver como o grande relojoeiro disciplina uma mecânica cujas peças já não domina como antes.

Tradução: Katarina Peixoto


Fotos: Al-Masry 

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