Do Sul 21
Milton Ribeiro
O Centro Cultural Porto Belo, localizado na Av. Lucas de Oliveira, 919, bairro Bela Vista, em Porto Alegre, é uma casa aprazível, corriqueira naquela região nobre da cidade. O nome Porto Belo remete a uma praia catarinense. O logotipo é um barquinho navegando no mar sobre ondas. Com maior imaginação, o desenho também pode parecer a parte de cima de um biquini de uma mulher que se banha no mar. Não obstante a casa, tudo leva a pensar em praia. É como se não estivéssemos em Porto Alegre.
Neste domingo (2), haverá uma comemoração na sede do Centro Cultural, pois a organização mater da entidade está completando 83 anos de vida. A agenda determina uma apresentação sobre a Prelazia Pessoal da Igreja Católica que parece ser a razão da existência da Porto Belo, o Opus Dei (“Obra de Deus”, também conhecido como “A Obra”). No evento, também se falará na marca da santidade deixada no mundo pela existência de seu Fundador, São Josemaría Escrivá — canonizado em Roma no dia 6 de outubro de 2002 — , assim como pela de outros membros que estão em processo de canonização.
Apesar da simpatia que lhe dedicava Karol Wojtyła — no que é imitado por Joseph Ratzinger — , antigamente o Opus Dei era uma organização menos pública. O livro de Dan Brown, O Código Da Vinci, e a velocíssima canonização de Escrivá trouxeram-na à tona, porém ela não gosta de falar. Em contato com a diretora do Centro Cultural porto-alegrense, fomos gentilmente passados ao jornalista responsável pela assessoria de comunicação do Opus Dei. Mas, após alguns telefonemas, recebemos um e-mail em tom igualmente cordial, mas firme, informando-nos que “Todas as informações necessárias você encontra no site do Opus Dei, principalmente na área ‘O que é o Opus Dei’”.
A organização
A Opus Dei – expressão em latim que significa “Obra de Deus” – foi fundada pelo espanhol Josemaría Escrivá de Balaguer em 1928. Ela é uma prelazia pessoal. Prelazias pessoais são circunscrições eclesiásticas previstas pelo Concílio Vaticano II e pelo Código de Direito Canônico. Elas são constituídas com a finalidade de levar a cabo determinadas tarefas pastorais. Os fiéis das prelazias pessoais continuam pertencendo às igrejas locais ou às dioceses onde têm o seu domicílio.
Porém, segundo seus críticos dentro e fora da Igreja, o Opus Dei solicita a seus membros seguirem as ordens do prelado (o líder máximo do Opus, que fica em Roma), em vez de obedecer à autoridade católica local. Simplificando, é como se o grupo fosse um braço independente da Igreja que não deve explicações a mais ninguém, além do Papa.
O Opus Dei diz que “sua missão consiste em difundir a mensagem de que o trabalho e as circunstâncias do dia-a-dia são ocasiões de encontro com Deus, de serviço aos outros e de melhora da sociedade. O Opus Dei colabora com as igrejas locais, oferecendo meios de formação cristã (palestras, retiros, atenção sacerdotal), dirigidos a pessoas que desejam renovar sua vida espiritual e seu apostolado”.
O Opus Dei nasceu na Espanha pouco antes do franquismo e floresceu durante o mesmo. Dizendo-se inovadora, condena livros e, segundo 100% dos relatos de quem a abandona, incentiva a autoflagelação, além de desejar às mulheres a santificação no trabalho doméstico. O teólogo Leonardo Boff define o Opus Dei como: “um tipo de fundamentalismo que trata de restaurar a antiga ordem fundamentada no matrimônio entre o poder político e o poder central”. Com efeito, Escrivá foi confessor do generalíssmo Francisco Franco e vários membros da Prelazia ocuparam cargos na ditadura espanhola. Alguns foram até ministros de estado.
A participação política
Obscurantista, misógina e reacionária, os críticos da Opus Dei também a chamam de “máfia santa”. Outros a acusam de ser outra Igreja dentro da Igreja, com poderes excepcionais e muito dinheiro sendo colocado a serviço de um conservadorismo atroz. Em parte, essa fama se deve às relações históricas que cultivou e trata de cultivar com governos, principalmente àquela citada, mantida com o regime fascista do ditador espanhol Francisco Franco, de 1939 a 1975. Ou seja, tudo o que o Opus Dei não desejaria seria o Estado Laico.
No fim da década de 40, a Prelazia iniciou sua caminhada rumo à América Latina. Foi simples conquistar simpatia em países onde há oligarquias pretensamente hispânicas que buscam diferenciar-se da maioria. Alberto Moncada, outro dissidente, conta em seu livro La evolución del Opus Dei: “os jesuítas decidiram que seu papel na América Latina não deveria continuar sendo a educação dos filhos da burguesia, e então apareceu para a Opus Dei a ocasião de substituí-los”.
Era natural, da mesma forma, que alguns quadros dos regimes nascidos dos golpes de Estado de 1966 e 1976, na Argentina, e 1973, no Uruguai, fossem também quadros da Opus Dei. A organização já controlou a Educação na Argentina durante o período entre 1966-70, época do ditador militar Juan Carlos Onganía.
Já no Chile, a Opus Dei foi para o pinochetismo o que havia sido para o franquismo na Espanha. O principal ideólogo do regime, Jaime Guzmán, era membro numerário da organização, assim como centenas de quadros civis e militares. Também os 3 principais membros da junta militar que tomou o poder no Chile, o general Augusto Pinochet, o general Jaime Estrada Leigh e o almirante José Merino, eram membros supranumerários ou cooperadores da Opus Dei. Algumas semanas após o golpe, Escrivá de Balaguer deslocou-se a Santiago do Chile para celebrar uma missa de ação de graças em honra de quem chamou de seu “filho espiritual”, Augusto Pinochet. No México, a Obra conseguiu fazer Miguel de la Madrid presidente da República em 1982, iniciando a reversão da rígida separação entre Estado e Igreja imposta por Benito Juárez entre 1857 e 1861.
No Brasil, Geraldo Alckmin nega relações com a organização, mas os indícios e acusações partem de todos os lados, inclusive de membros de seu partido, o PSDB. Alckmin seria um supranumerário. Em telegrama de 2006, vazado pelo WikiLeaks, o então secretário de Subprefeituras do governo de São Paulo, André Matarazzo, confirmou claramente a suspeita. “Sua postura é inequívoca”. Porém, o que se sabe com certeza era que seu tio, José Geraldo Rodrigues Alckmin, nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) por Médici em 1972, orgulhava-se de pertencer à prelazia.
O milagre de São Josemaría
Também em Roma a simpatia pela Opus Dei parece ser imensa. Em 20 de dezembro de 2001, o papa João Paulo II realizou uma das mais rápidas canonizações conhecidas. O decreto reconheceu uma cura milagrosa obtida por intercessão do Beato Josemaría Escrivá. O caso diz respeito a um médico espanhol que sofria de radiodermite nas mãos. A radiodermite é uma lesão cutânea que surge em caso de contaminação radioativa ou exposição superficial excessiva a Raios X. Desenvolve-se rapidamente. Mas o médico espanhol Manuel Nevado Rey curou-se em 1992 após receber de um amigo uma imagem de Escrivá. Esta teria “intercedido”, pois a partir do dia em que começou a rezar ao Beato Josemaría Escrivá por sua cura, as mãos foram melhorando e, mais ou menos em quinze dias, as lesões desapareceram totalmente. Isto teria ocorrido em 1992. O processo canônico terminou em 1994 e, no dia 10 de Julho de 1997, a Consulta Médica da Congregação para as Causas dos Santos estabeleceu por unanimidade o seguinte diagnóstico: “malignização de radiodermite crônica grave de 3º grau, em fase de irreversibilidade”. A cura total das lesões, confirmada pelos exames objetivos efetuados no paciente em 1992, 1994 e 1997, foi declarada pela Consulta Médica como “muito rápida, completa e duradoura, cientificamente inexplicável”.
Então, apenas 17 anos após a sua morte, Escrivá tornou-se “o justo entre os justos mais rapidamente elevado aos altares em toda a história da Igreja”, êxito posteriormente ultrapassado por Madre Teresa de Calcutá”, como diz o site da organização.
O tamanho da Opus Dei
Dos 90 mil membros do Opus Dei no mundo, 98% são leigos, homens e mulheres. Os restantes são sacerdotes. São 1.600 membros na África, 4.700 na Ásia e Oceania, 29.500 nas Américas e 49.200 na Europa. A organização chegou ao Brasil na década de 1950. Instalou-se inicialmente em Marília, no interior de São Paulo, e de lá acabou migrando para a capital, onde hoje mantém centros nos bairros do Pacaembu, de Vila Mariana, de Pinheiros e do Itaim, entre outros. Está presente também nas cidades de Campinas (SP), São José dos Campos (SP), Rio de Janeiro (RJ), Niterói (RJ), Belo Horizonte (MG), Brasília (DF), Curitiba (PR), Londrina (PR) e Porto Alegre (RS). Entre numerários, agregados, supernumerários e cooperadores, estima-se que o Opus tenha cerca de 1 700 integrantes em nosso país.
Segundo a entidade, quem solicita a incorporação ao Opus Dei é movido por um chamamento divino. A maioria dos fiéis, 70% são homens e mulheres, na maioria casados, que apenas participam na Obra de Deus na medida em que as suas atividades pessoais e familiares o permitam — são os membros supranumerários. Já os numerários são pessoas que se comprometem a viver no celibato, trabalhando como sacerdotes leigos que colaboram com “todas as suas forças e disponibilidade total” nas tarefas apostólicas particulares da Opus Dei. Normalmente, estes residem nos Centros da Prelatura. Cabe-lhes a formação dos fiéis e a direção das atividades apostólicas. Os agregados são leigos que, vivendo “no celibato apostólico”, residem com suas famílias. É-lhes exigida também dedicação total à Opus Dei. Os cooperadores são aqueles que, não sendo membros da Opus Dei, colaboram nas suas tarefas, com “a oração, a esmola e mesmo o seu trabalho”. Segundo a bibliografia que a entidade dispõe, podem até ser indivíduos que não sejam católicos.
Seus membros pregam a catequese mundial e a busca pessoal da santidade. São impostas a eles uma série de obrigações: aconselham a obediência cega a diretores espirituais — os quais saberiam “o que Deus quer” – , encorajam a autoflagelação como penitência, o cumprimento de 3 horas diárias de deveres espirituais e desaconselham a compra de livros sem aprovação da Obra.
As trevas
Porém, além da participação política, o que garante a sombria fama que a organização tem são as copiosas narrativas sobre como vivem seus membros. Estes não estariam muito longe da caricatura de um dos principais personagens do romance O Código da Vinci. Trata-se de um albino encapuzado, Silas, que parece ter fetiche pela autoflagelação. Inúmeros relatos de ex-membros da Opus Dei dão conta de que esta é incentivada como meio de atingir uma espiritualidade mais profunda.
O objeto mais ligado ao Opus é o cilício. Ele vem substituir a aspereza da pele de cabra usada pelos religiosos do passado com a intenção de purificação. Ela também machucava a pele por sua aspereza sem, contudo, perfurar a carne nem fazer sangrar. O cilício metálico é uma corrente afiada com pontas na parte de dentro e que se coloca habitualmente envolvendo a coxa ou o peito. São semelhantes às gargantilhas punks, só que com as pontas voltadas em direção à pele. Geralmente, o cilício é usado por duas horas por dia, exceto aos domingos. Há lojas especializadas na venda desses e de outros produtos religiosos, onde membros do Opus Dei podem fazer compras. No site, os clientes apresentam os resultados:
Ele deixa minha pele irritada e com comichões. Nunca uso no mesmo local. Mesmo depois de algumas horas é impossível se acostumar. Continua a irritar a pele, a coçar e, por vezes, deixa feridas. É uma ótima forma de penitência e me lembra de como Jesus sofreu por mim e de que tenho de estar sempre consciente da minha natureza pecadora e lutar contra a tentação.
Porém, se desejarmos ler textos de oposição à Opus Dei, talvez os mais violentos não sejam da autoria de ateus, de políticos, nem de autores como Dan Brown ou de pessoas ligadas a outras religiões. Os textos mais violentos são os intestinos, saídos de dentro da Igreja Católica e da própria “Obra”, principalmente através de testemunhos de ex-participantes. Por exemplo, a crítica à canonização de Escrivá não recebeu nada mais virulento do que este artigo da Associação Cultural Santo Tomás. E há muitos relatos de ex-membros protestando que, quando saem, após terem entregado todo seu dinheiro e todos seus bens à Obra, após terem passado anos longe de sua profissão para dedicar-se a trabalhos internos, não recebem nenhum auxílio financeiro. Aos que reclamam, a Obra sempre responde da mesma maneira: “As portas sempre estiveram abertas de par em par para sair”. Quem sai diz que esta frase é mentirosa.
A rejeição de tantas entidades e a “incompreensão” de quem pensa que a organização tem caráter no mínimo medieval, faz com que a Opus Dei se feche à imprensa. Mas os clubes, colégios e centros culturais como o Porto Belo são, na realidade, a porta de entrada da chamada Obra. Se “salir del Opus Dei no es fácil, no hay ninguna puerta abierta, están cerradas las puertas exteriores y las interiores, y cada uno las empuja como puede”, como disse um ex-membro, entrar lá para documentar também requer “empujar”, ou empurrar, a porta. Ou aceitar o “chamamento divino”.
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