sexta-feira, 12 de abril de 2013

Qual o limite da taxa de juros?


Marcel Gomes – de São Paulo
Diante de novas turbulências na economia internacional e da retração de mercados consumidores no exterior, o governo brasileiro promoveu ao longo dos últimos meses algumas correções de rota na política econômica. A marca mais visível foi a queda das taxas de juros ao patamar mais baixo da história recente. No entanto, outras variáveis, como o regime de metas de inflação e o câmbio, também apresentam nuances em relação a períodos anteriores, diante de uma meta prioritária: reativar a economia
Entre agosto de 2011 e outubro de 2012, o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central (BC) realizou um longo ciclo de redução da taxa básica de juros da economia, a Selic, com dez cortes consecutivos, até que o histórico patamar de 7,25% fosse atingido. A nova taxa, que segue em vigor, é baixíssima para os padrões brasileiros, mas ainda elevada, segundo o cenário internacional.

Mesmo assim, o movimento gerou efeitos profundos em nossas relações econômicas internas: instituições financeiras foram pressionadas a reduzir juros cobrados de clientes, aplicadores a diversificarem investimentos, o governo federal viu cair o gasto com o financiamento da dívida pública, e até empresários puderam recalcular, para cima, a rentabilidade de novos projetos, diante da queda do custo do capital.

Mas o ciclo de corte da Selic também suscitou dúvidas sobre sua sustentabilidade. Não foram poucos os economistas e comentaristas na mídia que questionaram a viabilidade de mantermos uma taxa em níveis historicamente baixos, sob uma inflação que insiste em se posicionar, desde 2010, acima do centro da meta do IPCA – que é de 4,5%, com margem de tolerância de dois pontos percentuais para cima ou para baixo.
Foto: Divulgação
“Administrartudo isso não é fácil.
As incertezas são muitas, e o
Banco Central precisa agir como
um bom cozinheiro que tem de
acertar o tempero, pôr sal,
pimenta, mas sem deixar picante
demais e estragar o sabor da comida”



Luiz Gonzaga Belluzzo,
economista
Afinal de contas, um país que já foi viciado em inflação alta não estaria pondo em risco a estabilidade monetária conquistada a duras penas? – é pergunta recorrente.

A taxa de juros desperta todo esse interesse porque ela é o instrumento central do regime de metas de inflação, adotado pelo país desde 1999, ano da maxidesvalorização do real. Através dela, os técnicos conseguem aproximar o crescimento projetado ao crescimento potencial de um país, evitando que eventuais gargalos reflitam na evolução dos preços.

Oficialmente, o regime não prevê metas para o câmbio e crescimento econômico, que, no entanto, são considerados na construção do cenário prospectivo para a inflação – e, assim, na definição da Selic.

O problema é que apesar da existência de muitas equações econômicas para auxiliar o cálculo da taxa de juros, elas sempre possuem um grau de incerteza. As decisões dependem da estimativa de variáveis sujeitas a fatores políticos, comerciais, climáticos, entre tantos outros, nacionais e internacionais.

“Administrar tudo isso não é fácil. As incertezas são muitas, e o Banco Central precisa agir como um bom cozinheiro que tem de acertar o tempero, pôr sal, pimenta, mas sem deixar picante demais e estragar o sabor da comida”, compara o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, que considera até aqui positivo o esforço da autoridade monetária para baixar os juros.

MOVIMENTO NATURAL Ciente da importância de legitimar tecnicamente a queda dos juros no país, o BC – cuja assessoria disse à reportagem que não daria entrevista sobre o assunto – vem trazendo nos relatórios trimestrais de inflação estudos e equações econômicas que sustentam tal movimento como algo natural. No relatório divulgado em setembro de 2012, por exemplo, o órgão embasou parte de sua análise nas teses de J. Archibald e L. Hunter presentes no artigo “What Is the Neutral Real Interest Rate and How Can We Use it?”, de 2001.
Foto: Neiva Daltrozo/Secom
Audiência pública de governadores sobre a dívida com a União, no Senado Federal em abril de 2012. Entre outros, estão Geraldo Alckmin (São Paulo), Raimundo Colombo (Santa Catarina) e Tarso Genro (Rio Grande do Sul). Mandatários alegam que contratos firmados em épocas de juros altos comprometem orçamentos dos estados
Nesse trabalho, Archibald e Hunter argumentam que a taxa básica de uma economia é determinada por fundamentos que afetam as decisões de poupança e de investimento dos agentes econômicos, assim como pelo prêmio de risco do país e pela existência de entraves aos fluxos de capitais internacionais. A questão é que, na visão exposta pelo BC no relatório de inflação, mudanças estruturais da economia brasileira têm influenciado essas variáveis a ponto de permitir o corte da Selic. São elas:

1) PRÊMIOS DE RISCOComponente da taxas de juros, incertezas relacionadas à inflação e à credibilidade da moeda se refletem nos prêmios de risco e, portanto, podem elevar o custo dos empréstimos. Para o BC, a estabilização da economia brasileira e a consolidação do regime de metas para a inflação – com cumprimento das metas estabelecidas por oito anos consecutivos – levaram a redução significativa das incertezas macroeconômicas e, por conseguinte, do prêmio de risco. Não é à toa que influentes agências de classificação de risco concederam ao Brasil grau de investimento em anos recentes.
Foto: Francisco Antunes
Sede do BC em Brasília: para o banco, queda na atividade econômica mundial contribuiu para reduzir a taxa de juros doméstica


2) FLUXO DE CAPITAIS A consolidação da estabilidade macroeconômica e a redução dos prêmios de risco renderam ao Brasil acesso aos mercados de capitais internacionais a custos menores. Mais recentemente, esse processo foi intensificado. Em 2011, o ingresso líquido de investimentos estrangeiros diretos no Brasil atingiu o valor recorde de US$ 66,7 bilhões.

3) MUDANÇAS FISCAIS A dívida pública pode ter impacto significativo sobre a taxa de juros. No Brasil, houve consolidação do regime fiscal, com adoção de metas para superávit primário e a Lei de Responsabilidade Fiscal, sancionada em maio de 2000. Essas mudanças ajudaram a reduzir a dívida pública em proporção do PIB. A dívida líquida do setor público consolidado, que em 2002 ultrapassou o patamar de 60% do PIB, foi reduzida recentemente para níveis próximos a 35% do PIB. Além disso, houve mudança substancial no perfil da dívida, agora majoritariamente vinculada à moeda nacional e não mais ao dólar, o que reduz os riscos para o Tesouro Nacional.
4) POUPANÇA A taxa de poupança bruta doméstica como proporção do PIB tem se mantido razoavelmente constante ao longo do período recente, tendo alcançado 17,2% em 2011, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No entanto, a trajetória decrescente da dívida pública, potencializada pela redução dos custos de financiamento, gera condições para que recursos adicionais sejam direcionados para investimento.
5) ESTRUTURA DOS MERCADOS FINANCEIROS Melhorias na estrutura dos mercados financeiros e de crédito podem aumentar a eficiência na alocação de recursos disponíveis na economia, diminuindo a taxa de juros. Para o BC, houve transformações importantes na estrutura dos mercados no Brasil nos últimos anos, como o aumento da participação do crédito no PIB, que passou de aproximadamente 25%, no início de 2001, para cerca de 50%, em junho de 2012.

6) MUDANÇAS INSTITUCIONAIS A “incerteza jurisdicional” na economia brasileira era vista por estudiosos como um dos fatores a explicar os níveis de taxa de juros no país. Mas isso melhorou, não apenas com a consolidação democrática, marcada por seguidas eleições presidenciais, mas também através de reformas específicas como a nova lei de falências, de 2005, e a introdução da alienação fiduciária de imóveis no novo Código Civil.

7) CENÁRIO EXTERNO Diante da integração econômica cada vez maior dos países, a evolução das taxas em outras nações gera efeitos internos. Diante da crise financeira mundial recente, iniciou-se um amplo cenário de baixa dos juros no mundo desenvolvido. De acordo com o BC, estimativas dos modelos estruturais feitos pelo órgão indicam que a queda na atividade econômica mundial, a partir da crise de 2008, também contribuiu para reduzir a taxa de juros doméstica.

TRAJETÓRIA DA INFLAÇÃOMesmo com todas essas mudanças conjunturais, a definição da taxa Selic pelo BC também depende de dois fatores principais: a opção política da autoridade monetária em fazer uma gestão monetária contracionista ou expansionista, e a estimativa de inflação futura.
Foto: Bel Pedrosa
Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central: em sua gestão, a Selic chegou a 45%
Quanto ao primeiro fator, como já foi dito aqui, os economistas definem que há uma taxa de juros considerada de equilíbrio, ou seja, aquela consistente, no médio prazo, com inflação estável e crescimento real do PIB igual ao seu crescimento potencial.

Mas, em determinado momento, é possível que os gestores da economia decidam não buscar o equilíbrio e optem por outra estratégia. Isso ocorreu, por exemplo, em março de 1999, durante a presidência de Armínio Fraga no BC, quando o órgão elevou a Selic a 45% ao ano, com o intuito de segurar uma fuga de capitais e desaquecer a atividade econômica, após a maxidesvalorização do real.
A respeito da estimativa de inflação, é possível dizer que esse é um passo-chave dentro da metodologia do BC para definir a Selic. Para isso, o órgão analisa a evolução – e a estimativa de evolução – dos preços de itens fundamentais para o consumo das famílias, como combustíveis e alimentos.

A ata da reunião do Copom que definiu em outubro de 2012 o último corte da Selic, por exemplo, projetava que não haveria aumento da gasolina e do gás de botijão até o final do ano; reduzia a projeção de alta da tarifa de telefonia fixa a 1,0% em 2012, ante os 1,3% estimados na reunião anterior do órgão; mantinha a alta prevista da eletricidade em 1,4%; e ainda previa um choque de oferta de commodities agrícolas.

Todos esses fatores embasaram a decisão do órgão de cortar a Selic, na ocasião, de 7,50% para 7,25%. “Considerando o balanço de riscos para a inflação, a recuperação da atividade doméstica e a complexidade que envolve o ambiente internacional, o Comitê entende que a estabilidade das condições monetárias por um período de tempo suficientemente prolongado é a estratégia mais adequada para garantir a convergência da inflação para meta, ainda que de forma não linear”, dizia a nota oficial.
HIATO DO PRODUTO Ainda para dimensionar as pressões inflacionárias, as metodologias do BC dependem do cálculo do chamado “hiato do produto”, que é a diferença entre a produção de bens efetiva e potencial. Com ele, é possível antecipar, evidentemente com margem de erro, eventuais pressões de demanda sobre os preços, e tomar medidas.

Para aperfeiçoar a metodologia, o BC vem ao longo do tempo adicionando uma série de novidades no cálculo, que é feito através de métodos distintos e chamados tecnicamente de extração de tendência linear, filtro Hodrick-Prescott (HP), função de produção, e filtro de Kalman – todos também usados pelas autoridades monetárias das principais economias do mundo.
Foto: Adenilson Nune
Posto de gasolina em Salvador: ata do Copom que definiu último corte da Selic projetava que não haveria aumento do combustível até o fim de 2012
Uma das novidades é o emprego da Utilização da Capacidade Instalada (UCI), fornecida na Sondagem Conjuntural da Indústria de Transformação da Fundação Posto de Getulio Vargas (FGV), como alternativa à UCI divulgada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI).

Recente estudo feito por técnicos do BC aponta que o resultado do hiato varia a depender da base de dados utilizada, se da FGV ou da CNI. Agora, com dois resultados distintos, é possível avançar em outras pesquisas que avaliem erros de previsão do passado e permitam fazer uma sintonia fina para o futuro.
A “nova ordem” da política monetária: regime de metas com medidas macroprudenciais
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Foto: Divulgação
“Os bancos centrais foram obrigados
a serem mais pragmáticos com a crise.
Antes, bastava conduzir a política
monetária pensando nos fluxos da
economia. Agora, é preciso ficar de
olho no preço dos ativos” Roberto
Messenberg, técnico de planejamento
e pesquisa do Ipea”

Roberto Messenberg,
técnico de planejamento e pesquisa do Ipea
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Se, até 2008, o regime de metas de inflação, baseado no controle de preços através da taxa de juros, produzia efeitos consistentes, sobretudo em economias estáveis, o mesmo não se pode dizer que ocorra a partir do início da crise financeira internacional, naquele mesmo ano. Como explica o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, o Federal Reserve (FED), banco central dos EUA, executava sua política monetária basicamente mediante o manejo da taxa de juros de curto prazo, controlando, assim, os preços dos ativos.

Mas esse tipo de gestão tornou-se insuficiente após o estouro da bolha imobiliária. Não se tratava mais de uma crise de liquidez, mas da insolvência de famílias e bancos, seguida de declínios do consumo e do investimento. Para recuperar o preço dos ativos e reaquecer a economia, baixar os juros norte- -americanos, a ponto de ter taxas reais negativas, não se mostrou suficiente.

Ben Bernanke, presidente do FED, optou por tornar mais complexa a política monetária e autorizou o órgão a comprar títulos públicos e privados com o objetivo final de recuperar os preços de ativos, sobretudo imóveis residenciais. Dentro dessa política de “relaxamento monetário”, tão criticada pelo governo brasileiro, comentaristas econômicos chegaram sugerir até que o FED oferecesse diretamente dinheiro a empresas e pessoas físicas, a fim de levantar a economia.

“Os bancos centrais foram obrigados a serem mais pragmáticos com a crise. Antes, bastava conduzir a política monetária pensando nos fluxos da economia. Agora, é preciso ficar de olho no preço dos ativos”, explica Roberto Messenberg, técnico de planejamento e pesquisa do Ipea. Essa mudança se refletiu no Brasil com a adoção das chamadas medidas macroprudenciais, em dezembro de 2010. “O regime de metas de inflação não era mais suficiente para resolver todos os problemas, precisávamos de outros instrumentos”, diz ele.

As medidas macroprudenciais anunciadas pelo BC eram focadas nas operações de crédito, tornando mais rígidos os controles dos empréstimos a pessoas físicas e empresas. Além disso, elevaram o compulsório de depósitos nas instituições financeiras e ainda ampliavam a garantia de correntistas com investimentos nos bancos. Com essa estratégia, o BC queria atingir objetivos para os quais antes dependeria apenas de movimentos da Selic.

Na “nova ordem” da política monetária, o regime de metas não foi abandonado, mas o BC passou a utilizar outras armas para defender a moeda, reunidas no arsenal das medidas macroprudenciais. Assim, a inflação deixou de ser a única obsessão dos técnicos, que passaram a olhar também para nível de câmbio, mercado de trabalho e crescimento econômico.

A estratégia deve ser mantida no curto prazo. Em 2013, Messenberg aposta em um cenário de estabilidade da taxa Selic, não apenas porque a estratégia das medidas macroprudenciais veio para ficar, mas também pelo cenário de variáveis positivas previsto para os próximos meses: entrada de capital intensa, índices de inflação pouco pressionados e ausência de choque nas cotações das commodities.

“Ao contrário de gestões passadas, o BC aproveitou bem o espaço que teve, mesmo diante da crise, para reduzir os juros. Agora é importante manter isso”, diz o economista do Ipea. Para ele, a manutenção das taxas nos atuais patamares é importante para que as expectativas dos atores econômicos se acomodem. Afinal, os mesmos que por anos se acostumaram à inflação elevada também têm gravado na memória o histórico dos juros altos. Mudar isso é tarefa para anos.

O voto não filtra caráter

Wanderley Guilherme dos SantosImprimir
Foto: Paulo Barreto
Rogério Lessa Benemond – do Rio de Janeiro
“Wanderley Guilherme dos Santos é, há meio século, uma das vozes mais influentes na Ciência Política brasileira. Aos 27 anos de idade, em 1962, lançou um artigo de ampla repercussão, com o seguinte título: Quem vai dar o golpe no Brasil? Dois anos depois, a análise se mostraria dramaticamente realista. O golpe derrubou o presidente João Goulart e mergulharia o país em 21 anos de ditadura. Professor, analista político, integrante do Conselho de Orientação do Ipea e ex-presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa, Wanderley Guilherme dos Santos fala da situação política do país, dos partidos e do funcionamento da democracia brasileira. Entre outras coisas ele lembra que “A corrupção não está no DNA das pessoas, mas na sociedade. A competição por recursos às vezes extrapola os limites da legalidade”
Foto: Paulo Barreto
Professor e analista, Santos foi presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa, autarquia do Ministério da Cultura, entre 2011 e 2012. Conhecido por suas agudas reflexões sobre a cena política brasileira, nesta entrevista ele aponta algumas linhas mestras para uma reforma política que consolide conquistas democráticas das últimas décadas. Entre seus pontos principais deveriam estar, segundo ele, o papel dos partidos políticos, os vícios do financiamento de campanha por parte deempresas privadas e o combate à corrupção.

Desenvolvimento - Quem é a direita e quem é a esquerda brasileira hoje?

Wanderley Guilherme - Não sei, mas o eleitor sabe. Essa é uma questão a ser discutida no agregado. As pessoas mudam de opinião no decorrer da vida, mas o voto do eleitorado é consistente ao longo do tempo. As mudanças na composição do parlamento são gradativas. A distribuição das preferências é quase sempre a mesma. O termo “direita” se tornou praticamente um xingamento, mas sempre há um lado mais cauteloso. Muita gente já foi de esquerda e depois deixou de ser. Ulysses Guimarães [1916-1992 deputado pelo MDB e principal líder parlamentar de oposição à ditadura] inicialmente apoiou o golpe [de 1964]. Teotônio Vilela [1917-1983, senador governista dos tempos da ditadura que se aliou à oposição] também. Então não me preocupo com essa definição. O eleitor sabe definir melhor o que é direita e esquerda.

Perfil

Wanderley Guilherme dos Santos é professor titular aposentado de Ciência Política na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Nascido em 1935, graduou-se em filosofia pela Universidade do Brasil, atual UFRJ, e doutorou-se em Ciência Política pela Universidade Stanford (EUA). É também integrante do Conselho de Orientação do Ipea.

Fundador do Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (IUPERJ), Santos é autor de trinta livros e vasta obra acadêmica. Entre outros, destacam-se Horizonte do desejo – Instabilidade, fracasso coletivo e inércia social (2006), O cálculo do conflito: estabilidade e crise na política brasileira (2003), O ex-Leviatã brasileiro: do voto disperso ao clientelismo concentrado (2006), Paradoxos do liberalismo: teoria e história uma apologia democrática (1999), Roteiro bibliográfico do pensamento político-social brasileiro (1870- 1975) (2002).
Desenvolvimento - Como seria uma reforma política para amenizar distorções no sistema democrático?

Wanderley Guilherme - Vários pontos podem ser discutidos. Um exemplo: acabar com a figura do suplente. Ele às vezes é um filho ou o financiador da campanha, que não teve um voto sequer. Outro ponto é discutir o financiamento de campanha e as alianças. O voto não filtra caráter. Além disso, falta encarar o maior problema de todos, que é a constitucionalização de todo o território.

Desenvolvimento - O que quer dizer constitucionalização de todo o território?

Wanderley Guilherme - É levar a todos os cantos do país os juizados de pequenas causas, assessoria jurídica e zonas eleitorais. A Constituição tem que valer em todo o território. O problema da corrupção política assumiu essa dimensão porque envolve preferências partidárias. Se olharmos os últimos anos, muitos prefeitos têm sido cassados por problemas com as contas públicas. Vereadores também. Os desbaratamentos que a Polícia Federal e a Procuradoria Geral da República estão fazendo rotineiramente são excepcionais. O Brasil subiu muito, internacionalmente, no quesito combate à corrupção. Durante o período da ditadura, o eleitorado brasileiro cresceu a taxas inéditas no mundo, até porque a Arena [partido do governo] buscava votos no interior e o MDB [oposição] acompanhava para tentar impedir que a situação conseguisse disfarçar o autoritarismo vigente no país. Isso teve um aspecto muito positivo, que foi trazer o interior para as instituições políticas. Os conflitos passaram a aparecer nas tocaias e assassinatos, já que problemas de terra eram assim resolvidos. Hoje, as estruturas partidárias, inclusive a dos partidecos, desempenham papel importantíssimo, porque eles vão buscar votos nos locais mais distantes das capitais. Até porque sabem que nos grandes centros não têm muita chance. Também por isso os partidecos estão crescendo consistentemente em número de vereadores e prefeitos.
Foto: Paulo Barreto
Desenvolvimento - Isso mostra que a propalada bipartidarização (polarização entre PT e PSDB) é apenas relativa?

Wanderley Guilherme - As eleições municipais não confirmaram essa polarização. O PSDB caiu bastante. O PSB cresceu. O PCdoB elegeu dois ou três prefeitos pela primeira vez. Também cresceu. Houve outro pequeno partido que não tinha bancada e elegeu 37 vereadores. Se somarmos todos os pequenos partidos, a curva é igual à do PSB, só que em outro patamar.

Desenvolvimento - Além da constitucionalização, quais seriam os principais itens de uma reforma política?

Wanderley Guilherme - Uma discussão do papel dos partidos é relevante. Nós costumamos acusar de fisiologismo aquele parlamentar que distribui água, oferece atendimento de saúde. Pois bem, na última reunião de trabalho da União Interparlamentar da ONU, frisou-se que os partidos são prestadores de serviço. Que é isso mesmo, os deputados e demais parlamentares têm que saber quais são as necessidades dos eleitores e saber como atendê-las. Uma das coisas que o parlamentar tem que fazer é prestar serviço. Então, discutir o papel dos partidos do ponto de vista da crítica preconceituosa à prestação de serviços à população é um ponto importante porque tanto o parlamentar quanto o burocrata acham que estão fazendo algo ilícito. O burocrata se vê com o direito de dificultar, criar problemas, pedir um dinheiro para o processo andar, porque a cultura política vê esse trabalho não propriamente como ilegal, mas como ilegítimo. Então, acaba dando na pequena corrupção diária. Não se pode tirar o valor de uma atividade absolutamente legítima e necessária.

Desenvolvimento - A corrupção é o maior problema político brasileiro?

Wanderley Guilherme - É um problema importante não apenas do Brasil, mas do mundo inteiro. Basta atentar para o noticiário dos jornais. Sabemos que Bush não foi eleito na Flórida. Existe a ação dos lobbies, não apenas nos EUA, mas também na Rússia ou na China. A corrupção não escolhe ideologia e não se resume à política. Há escândalos na Alemanha e no Japão vez por outra se comete haraquiri...

Desenvolvimento - Quais são os condicionantes disso?

Wanderley Guilherme - Hoje as sociedades são extremamente complexas. Por mais que o Estado seja mínimo, no extremo do liberalismo, ele é um gigante se comparado ao período oligárquico. Naquele tempo, antes da Revolução Industrial, o governo só queria saber do dono da terra, como no Brasil do coronelismo. A política existia apenas para os principais agentes econômicos e não para a grande massa, sobretudo de camponeses e pequenos trabalhadores urbanos. Era um período no qual a corrupção era muito menor, até porque o grupo era menor e menos diferenciado. Hoje há grandes demandas da sociedade que dependem muito do Estado, em políticas como a de saneamento, de educação e de saúde. Significa que a intermediação entre o cidadão e aqueles que formulam as políticas ganha uma dimensão estratégica.

Desenvolvimento - Isso multiplica os interesses que podem ser beneficiados com as decisões de políticas públicas?

Wanderley Guilherme - Sim. Alguém sempre se beneficia de uma política de governo e isso faz da posição de poder um potencial de ilícitos. Há muito mais oportunidades para tanto. É claro que o fato de ser um problema inerente à sociedade de massas não quer dizer que não se deva fazer nada contra. Mas é preciso entender que a corrupção não está no DNA das pessoas, mas da sociedade. A competição por recursos às vezes extrapola os limites da legalidade. É um problema difícil. Pode, sem dúvida, ser muito reduzido, mas é impossível eliminá-lo. Sempre haverá ondas de maior ou menor incidência.
Foto: Paulo Barreto
Desenvolvimento - O chamado mensalão se enquadra nessa definição?

Wanderley Guilherme - Bem, primeiro não houve compra de votos. O Legislativo não tolera e nem pode tolerar isso. Os parlamentares que vendem o voto ficam estigmatizados. Três parlamentares confessaram a venda de votos para aprovação da reeleição do presidente da República, nos anos 1990. Aquilo foi venda de votos. Diferente de um acordo político no qual se firma o compromisso para financiamento de dívidas do partido associado. Este é o chamado caixa dois. Isso não é compra de votos, mas é comum que aconteça. E é ilegal também porque no meio aparecem muitas coisas que nada têm a ver com o caixa dois. Mas para que houvesse o acordo entre partidos aliados não seria necessário dinheiro. Precisamos, na verdade, é apurar o que, na legislação eleitoral, leva os partidos a fazerem o caixa dois.
Foto: Paulo Barreto
A corrupção é um
problema importante
não apenas do Brasil, mas
do mundo inteiro. Basta atentar
para o noticiário dos jornais.
Existe a ação dos lobbies, não
apenas nos EUA, mas também
na Rússia ou na China. A
corrupção não escolhe
ideologia e não se resume
à política
Desenvolvimento - Isso chega à questão do financiamento das campanhas?

Wanderley Guilherme - Sim. Fundamentalmente, é preciso averiguar por que a legislação eleitoral acaba permitindo o aparecimento de crimes muito mais que eleitorais. Não havia sentido para um deputado da base aliada ou do próprio PT vender o voto. Tanto é assim que ninguém sabe onde foi parar o dinheiro, a não ser no caso do marqueteiro Duda Mendonça.

Desenvolvimento - Ele argumenta que, efetivamente, prestou um serviço. O problema estaria na forma de pagamento?

Wanderley Guilherme - Sim. Ele recebeu dinheiro para realizar um trabalho. Os outros não receberam para fazer serviço algum. Foi para pagar o Duda, entre outras coisas. Então, é um processo de corrupção no qual não se sabe o destino do dinheiro. Não aparece, mas deu margem a todo esse processo. É possível que Marcos Valério tenha dado notas aumentando o valor dos serviços prestados. É uma fraude, mas não é compra de votos.
Desenvolvimento - Enquanto fraude, ela poderia ter ocorrido sem que lideranças políticas soubessem?

Wanderley Guilherme - Sim, perfeitamente. Não tenho a menor dúvida que essas lideranças foram injustamente condenadas. Só se soube, por exemplo, que Roberto Jefferson (PTB-RJ) não distribuiu o dinheiro que era para distribuir quando ele o afi rmou. Jeff erson teria que passar para os deputados endividados.

Desenvolvimento - Quem financia campanhas espera receber o “capital” investido depois da eleição?

Wanderley Guilherme - Não é assim. Quem colocou US$ 10 milhões na campanha do Partido Republicano, nos EUA, não vai querer receber um contrato de US$ 12 milhões. Vai querer, depois, é que aprovem reduções de impostos, por exemplo. Então, o que tem que ser discutido é a oportunidade que o sistema cria para a corrupção. No caso dos marqueteiros, o que deve ser questionado é essa necessidade de pagar caro por eles. Esses milhões que Duda Mendonça cobra, todos cobram. Não há partido que não faça isso.

A saúde do Sistema Único


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Foto: Felipe Pilotto
Protesto de servidores da saúde, no Rio de Janeiro, em abril de 2012
Pedro Estevam da Rocha Pomar – de São Paulo
Apesar de resultar do processo democratizante dos anos 1980, o SUS, consagrado na Constituição Federal, não consegue concretizar seu projeto inicial: o de fornecer assistência de saúde universal e eficiente a todos os brasileiros. Segundo livro de técnico do Ipea, fortes interesses privados prejudicariam desempenho do setor público, que padece de falta de recursos por parte do Estado
O título embute uma saudável provocação: SUS: o desafio de ser único (Editora Fiocruz, Rio de Janeiro, 2012), livro do economista e Técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea Carlos Octávio Ocké-Reis. Doutor em saúde coletiva pela Universidade do Estado do Rio de janeiro e pós doutor pela Universidade de Yale, Ocké-Reis mostra não ser possível falar em “desenvolvimento humano”, “democracia” e “igualdade de oportunidades”, sem que haja garantia efetiva de saúde pública e universal no país. O Sistema Único de Saúde não conseguiu, até agora, ser o que anuncia e promete. Não é único e não garante atendimento médico e hospitalar às dezenas de milhões de brasileiras e brasileiros pobres que dele necessitam.

O SUS exibe inúmeras conquistas no campo da saúde pública, a começar pelas vitoriosas campanhas nacionais de vacinação e por êxitos de alcance mundial na batalha contra a Aids. Ocké-Reis assinala que:

O SUS é um dos maiores sistemas públicos de saúde e o segundo em todo o mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, em número de transplantes de órgão. Presta assistência à saúde para milhões de pessoas, a qual vai desde assistência básica até tratamentos que envolvem complexidade tecnológica média e alta, bem como serviços de emergência. Além disso, conta com excelente programa de vacinação, reconhecido internacionalmente. Realiza também pesquisa em diversas áreas da ciência, inclusive com células-tronco.

Contudo, fortes interesses privados podem minar o Sistema. O autor sintetiza esse quadro na apresentação da obra:

“No Brasil, a luta política por melhores condições de saúde e de assistência médica em todos os níveis de atenção é vital. Exige uma consciência profunda acerca da determinação social das doenças, das desigualdades de acesso aos serviços de saúde, do barbarismo da violência urbana e da tragédia cotidiana dos acidentes de trabalho e de trânsito. Esse quadro desafia o Estado a transformar a realidade epidemiológica e as instituições de saúde, visando à melhoria do bem-estar da população brasileira”.
Foto: Reprodução
“O SUS presta assistência à
saúde para milhões de pessoas, a
qual vai desde assistência básica
até tratamentos que envolvem
complexidade tecnológica média
e alta, bem como serviços de
emergência. Além disso, conta
com excelente programa de
vacinação e um programa de
combate ao vírus reconhecido
internacionalmente”


Carlos Octávio Ocké-Reis,
Técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea

SIGNIFICADO HISTÓRICO Ocké-Reis ressalta que a defesa do Sistema vai muito além da área da saúde:

Sem projeto estratégico para fortalecer o SUS, uma visão fiscalista, em que o fomento ao mercado de planos aparece como solução pragmática para desonerar as contas públicas, passa a fazer parte do ideário de setores economicistas no Estado e na sociedade. (...) O subfinanciamento do SUS e a captura da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) revelam uma opção, consciente ou não, pelo crescimento e pela autorregulação do mercado de planos, valorando positivamente o subsistema privado, a estratificação de clientela e a não unicidade do SUS.

A existência de um vasto mercado de “planos de saúde” estimula e acelera um cenário em que a União e os entes federados deixam de financiar adequadamente o SUS, ao passo que agentes privados beneficiam-se de recursos públicos para o setor.

O lançamento da obra, em novembro, coincidiu com o anúncio da aquisição da Amil, até então o maior grupo nacional do setor de “planos de saúde”, pela multinacional norte-americana UnitedHealth. A compra, no valor de R$ 10 bilhões, fere a Constituição Federal (CF). Em seu artigo 199, a Carta é clara: “É vedada a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no País, salvo nos casos previstos em lei”. Em 1998, o artigo foi regulamentado pela Lei nº 9.656. Nenhum dispositivo autorizou a presença de capital externo no setor.

Apesar disso, a transação foi avalizada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e, ao que parece, ignorada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).

Mais do que listar e denunciar com competência acadêmica as principais mazelas da área, SUS: o desafio de ser único apresenta propostas para superar o quadro atual de subfinanciamento, privatização, desmantelamento parcial e deterioração da saúde pública. Controvertidas, elas têm a virtude de contribuir para que o debate sobre o SUS seja recolocado na agenda acadêmica e política nacional.
Foto: Ivan Baldivieso/Agecom
Nos últimos anos, inúmeras manifestações públicas em defesa do SUS foram realizadas. Acima, ato em Salvador, em 2009, com a presença, dentre outros, de Francisco Batista, presidente do Conselho Nacional de Sáude (CNS), e do secretário de saúde da Bahia, Jorge Solla
DIAGNÓSTICO DA CRISE No capítulo “Dilemas para a constituição do Sistema Único de Saúde”, Ocké-Reis examina algumas contradições:

Para começar, constata-se existência de sistemas público e privado paralelos. Apesar de a Constituição designar que a assistência à saúde é direito social e que os recursos devem ser alocados com base na necessidade de utilização e não pela capacidade de pagamento, parte dos cidadãos pode ser coberta por planos privados de saúde e, ao mesmo tempo, utilizar os serviços do SUS, resultando na dupla cobertura para aqueles que podem pagar ou podem ser financiados pelos empregadores: trabalhadores de média e alta rendas, executivos e funcionários públicos.
Foto: Divulgação
“O SUS é, efetivamente, uma
notável conquista da cidadania
brasileira que, já nos estertores
da guerra fria, conseguiu
sepultar um sistema público
dual, construído ao longo do
século XX, no qual conviviam
instituições vinculadas aos
setores de saúde e de previdência
em nível nacional, com
superposição de atribuições e
graves conflitos de competências
em todos os níveis de governo”


Paulo Capel Narvai,
professor titular da Faculdade de Saúde Pública da USP
Mais à frente, ele destaca que:

Os planos de saúde foram patrocinados pelo padrão de financiamento público (isenções fiscais) desde 1968, seguindo, nesse aspecto, o modelo liberal dos Estados Unidos, o qual se fundamenta em subsídios e em benefícios do empregador.

Trata-se, segundo ele, de uma “americanização perversa” do sistema. Em suas palavras, isso a remete à prática de “lobby no Congresso Nacional sobre questões-chave da assistência à saúde, evitando a ampla negociação entre as partes interessadas para fortalecer o sistema público”.

Nesse contexto, assinala Ocké-Reis, um aspecto preocupante é que, “uma vez que os trabalhadores do polo dinâmico da economia estão cobertos pelo mercado de planos de saúde”, “seus representantes políticos não apoiam o SUS no Congresso como seria necessário”. Essa é uma questão-chave. Basta ver que embora a Central Única dos Trabalhadores (CUT), maior central brasileira, inclua a defesa do SUS, assim como a da Previdência Social, entre suas bandeiras históricas, diversos dos sindicatos a ela vinculados contratam planos privados para seus filiados.

CONQUISTA DA CIDADANIA Paulo Capel Narvai, professor titular da Faculdade de Saúde Pública da USP, reforça os argumentos do pesquisador. “O diagnóstico é correto. O SUS é, efetivamente, uma notável conquista da cidadania brasileira que, já nos estertores da Guerra Fria, conseguiu sepultar um sistema público dual, construído ao longo do século XX, no qual conviviam instituições vinculadas aos setores de saúde e de previdência em nível nacional, com superposição de atribuições e graves conflitos de competências em todos os níveis de governo”, explica. “O SUS derivou, politicamente, da campanha das ‘Diretas Já’ para a Presidência da República, cujo impulso renovador, democrático, popular, produziu efeitos importantíssimos sobre o Congresso constituinte. Apenas essa força, originada da organização popular e dos atos públicos que levaram milhões de brasileiros às ruas e praças do País, explica que um punhado de deputados e senadores (em torno de cem) tenha conseguido obter votos majoritariamente favoráveis ao SUS, num Congresso constituinte de 559 membros”. Na interpretação de Narvai, a “esmagadora maioria desses constituintes não queria o SUS, pois não queriam nem ouvir falar de um Estado de Bem-Estar Social no Brasil”, nisso consistindo “a principal contradição do período do nascimento do SUS”, o qual, com toda a sua generosidade, “emergiu num contexto internacional marcado pelo fim da União Soviética, queda do Muro de Berlim e pela avalanche neoliberal que varreu o mundo produzindo efeitos devastadores sobre os sistemas de proteção social universais, que incluíam o direito à saúde”. Assim, o SUS, tal como delineado na CF, jamais se efetivou, conclui o professor da USP. “Prevaleceram, nos anos que se seguiram à sua aprovação, as forças políticas que não tinham compromisso com sua efetivação. Todos os governos federais desde então deram sua contribuição para sepultar o ‘SUS constitucional’, começando com o governo Collor, que se recusou a descentralizar o sistema, manietando Estados e municípios, centralizando decisões e impondo um tremendo subfinanciamento cujos efeitos se fazem sentir até hoje. Nem Lula, nem Dilma conseguiram reverter esse cenário. Não obstante o avanço de várias políticas sociais na última década, o financiamento do SUS, como proporção do PIB, segue inferior a muitos países da América Latina, como Argentina, Chile e México”. Há uma lacuna na obra. SUS: o desafio de ser únicomenciona apenas en passant as organizações sociais (OSs) que hoje são parte ativa do processo de privatização do SUS. Também não aborda a ação de fundações privadas ditas “de apoio” e “filantrópicas” (as quais credenciam-se como OS), que cobram “taxa de gestão” sobre as verbas SUS e implantaram a “segunda porta” – a cessão de determinada porcentagem de leitos e serviços a pacientes de planos privados – em alguns dos hospitais públicos mais importantes do país.
Foto: Ze Carlos Barretta/Folhapress AGO-CIDADES
Edifício escolar abandonado em São Paulo, ocupado por integrantes do Fórum Popular de Saúde, em setembro de 2012. O movimento reivindica sua readequação para funcionar como hospital público
AGÊNCIA MAIS FORTE Uma das principais propostas de Ocké-Reis diz respeito à ANS, instituída pela lei 9.961/2000 com a finalidade de “promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, regulando as operadoras setoriais, inclusive quanto às suas relações com prestadores e consumidores, contribuindo para o desenvolvimento das ações de saúde no país” (artigo 3°). Ele propõe “redefinir os marcos administrativos de gestão da ANS e o modelo regulatório vigente, com o intuito de afirmar e valorizar o preceito normativo da agência reguladora no tocante ao interesse público”.
Foto: Marcello Casal Jr
Pacientes aguardam atendimento no pronto-socorro do Hospital Regional de Taguatinga, Brasília
Ao questionar a validade de uma gestão “pautada pelo pragmatismo, contingenciada pelos conflitos do cotidiano e cingida por um olhar microeconômico”, o autor pretende que o leitor reflita “sobre a necessidade de tornar a ANS capaz de organizar o mercado na perspectiva do interesse público, o que acabaria por justificar e legitimar sua existência no contexto do sistema de saúde brasileiro”. Tal projeto “deve prever mudanças na Constituição de modo a alterar o modelo regulatório visando à integração dos sistemas público e privado de saúde”. Para isso, seria necessário alterar o artigo 199 da CF e o artigo 21 da Lei 8.080 (“a assistência à saúde é livre à iniciativa privada”).

ESTADO CAPTURADO Há enormes dificuldades pela frente, pondera o professor Narvai. “O Estado brasileiro está capturado pelos interesses que querem acumular e reproduzir capital no setor saúde”. Em suas palavras, esses interesses fazem valer sua vontade nos três poderes da República. No Legislativo, dois em cada três deputados tiveram parte de suas campanhas eleitorais financiadas por empresas que operam no mercado de ‘planos de saúde’. Assim, pode não ser necessário alterar a Constituição quanto ao que dispõe sobre saúde. Por outro lado, a proibição do financiamento privado de campanhas eleitorais faria um bem enorme à saúde dos brasileiros.

Mais que isso, sublinha ele: “Respeitar os conselhos de saúde e as deliberações das conferências de saúde sobre ‘planos de saúde’ parece-me de importância estratégica para viabilizar o controle público da atuação dessas empresas. Sem isso, dificilmente a ANS será capaz de ‘organizar o mercado na perspectiva do interesse público’, conforme proposto. Em todo caso, a ANS teria de ter seus dirigentes nomeados a partir de listas construídas democraticamente, de modo transparente e sob controle público, com participação do Conselho Nacional de Saúde”.

Sonia Fleury, professora titular da Fundação Getulio Vargas e uma das principais lideranças da reforma sanitária no Brasil, faz uma ponderação ao livro: “Ele parte da ideia de se criar um único sistema. Sou contra isso, o ‘Sistema Nacional de Saúde’, para juntar o público e o privado. Carlos Octávio [Ocké-Reis] e eu temos o mesmo objetivo, a defesa do SUS, mas penso que essa é uma estratégica politicamente equivocada. Se formos rever a Constituição, vamos perder”. Ela afirma que o setor privado, “que não tem para onde se expandir mais”, advoga a mesma proposta, que a seu ver implica enormes perigos: “O SUS se transformaria num financiador de OSs, PPP (parcerias público-privadas) ou numa articulação mais definida com os planos de saúde”. A professora da FGV defende um movimento inverso: “Maior transparência, maior controle, maior fiscalização. Tornar mais clara a separação entre os sistemas”.
Foto: Ivone Perez/Fiocruz
“O Estado tem que dizer o
que não pode – em matéria
de cobertura dos planos, por
exemplo – mas não estabelecer
qual o melhor modelo. Não é
função da regulação fazer isso. A
função da regulação é coercitiva,
é dizer o que é proibido, impedir
as más práticas”


Sonia Fleury,
professora titular da Fundação Getulio Vargas e uma
das principais lideranças da reforma sanitária no Brasil
RENÚNCIA FISCAL Desde as primeiras páginas do livro, o autor combate a falta de recursos para o Sistema e a renúncia fiscal que favorece as operadoras de planos de saúde e outros agentes particulares. Ele enfatiza que “a expansão do setor privado se realizou mediante o patrocínio de incentivos governamentais, dentre os quais a renúncia de arrecadação fiscal, tendo como contrapartida o subfinanciamento e o sucateamento dos serviços públicos de saúde”.

A renúncia fiscal nos moldes atuais vigora desde 1991 (ano base 1990), sem qualquer limite para a dedução dos gastos das famílias no Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF). Situação semelhante ocorre entre os empregadores, no Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ). “O incentivo econômico subjacente à renúncia acabou por favorecer a expansão da oferta hospitalar privada e, principalmente, o crescimento do mercado de planos de saúde”. O objetivo de Ocké- Reis, tanto quanto recuperar recursos para o Tesouro, é acabar com o estímulo fiscal às adesões da classe média aos planos de saúde.

A magnitude dos recursos envolvidos nas isenções “salta aos olhos dos analistas de políticas de saúde”, lembra o autor, que estimou a renúncia fiscal em saúde, no ano de 2006, em R$ 12,5 bilhões (montante que englobava IRPF, IRPJ, medicamentos e filantropia.

A professora Sonia Fleury vai mais longe. “O absurdo maior é a Desvinculação dos Recursos da União (DRU)”, emenda constitucional que faculta ao governo a livre realocação de 20% do orçamento de todas as áreas para o pagamento das dívidas financeiras. “Esta é, a meu ver, a luta prioritária, mais fácil de ganhar do que querer acabar com as isenções da classe média”.

A professora destaca, como um novo e preocupante fator de subtração de verbas, as desonerações que a administração federal vem promovendo: “Afetam IPI, Cofins e vão afetar profundamente a área da saúde”. Para ela, as isenções fiscais apontadas por Ocké-Reis estão se generalizando pela área industrial. “Tentamos, por meio da Lei da Transparência, inquirir o Ministério da Fazenda sobre o impacto das desonerações, mas não obtivemos resposta”, relata. “Defendo a completa extinção da renúncia fiscal, sem gradualismos de qualquer tipo.
Foto: Marcello Casal Jr
Recepção do pronto-socorro do Hospital Regional do Gama, em Brasília
TECNOCRACIA E MODELO Entre as medidas apontadas pelo autor encontra-se a criação de operadoras-modelo, as benchmarks, que poderiam servir como “um farol para ancorar as ações da ANS quanto à regulação de preços, à cobertura, à qualidade da atenção médica” etc., e assim “contribuir para superar a cultura tecnocrática mais ou menos presente nas ações da ANS e para integrar o mercado ao SUS, resistindo à captura dos oligopólios privados”. A exemplo das anteriores, esta proposta parece abrir uma polêmica conceitual e política.

“O Estado tem que dizer o que não pode – em matéria de cobertura dos planos, por exemplo – mas não estabelecer qual o melhor modelo. Não é função da regulação fazer isso. A função da regulação é coercitiva, é dizer o que é proibido, impedir as más práticas”, argumenta a professora Sonia. Pela mesma razão, ela não vê com bons olhos a criação de um “plano de saúde cogestionário entre servidores públicos federais e governo federal, contando com a participação das instituições públicas”. Ela finaliza dizendo que “O SUS chegou a um ponto tão ruim que os planos sabem que a classe média não tem para onde correr. Veja o que aconteceu no Chile: a melhoria do setor público levou gente da classe média a desistir dos planos. Isso mudará o mercado, e a regulação é para fiscalizar o mercado”.

O silêncio do falso moralista Joaquim Barbosa Torquemada




Joaquim Barbosa em reunião com presidentes de associações de magistrados, as que representam toda a magistratura do país, passou algumas descomposturas nos convidados que foram tratados com laivos de autoritarismo pelo presidente do STF advertindo, inclusive a um dos presentes aquele malsinado encontro que só falasse quando ele, Barbosa, permitisse.

O presidente do STF vem se notabilizando por sua postura "altiva" em defesa da ética. Barbosa tem demonstrado insatisfações públicas com relação ao conúbio existente entre associações de magistrados e patrocínios privados geralmente em resortes onde são feitos os congressos dessas associações de magistrados, chamando atenção para o impedimento ético que esse tipo de patrocínio pode acarretar.

Barbosa também tem levantado a voz para denunciar a relação estreita de juízes com advogados, insinuando que a influência de certos advogados sobre alguns juízes é o que determinam o resultado de uma sentença segundo aquela máxima de que " O bom advogado conhece a lei, o melhor conhece o juíz".

Esses posicionamentos do ministro presidente do STF recebe o aplauso fácil de uma claque sequiosa para mudar os costumes morais do país, quando esses costumes são praticados pelos outros e não por ela .

Agora mesmo o ministro que mais macula a imagem do STF, no presente momento, porque há outro ainda pior, Luis Fux, anunciou aos quatro ventos que fará uma festa de arromba em comemoração aos seus 60 anos para os 180 desembargadores cariocas, o governador Sérgio Cabral, o prefeito Eduardo Paes, os ministros do STF, alguns magistrados do STJ, advogados, a nata do mundo jurídico, seus convidados, em casa de um advogado e bancado com recursos desse advogado.

Registre-se que a filha de Fux trabalha no escritório do advogado que vai bancar com recursos próprios toda festa de Fux e que está outrossim concorrendo a uma vaga de sembargadora no TJ do Rio de Janeiro. Quem faz a lista tríplice? Os desembargadores convidados por Fux. Quem indica? o governador que estará na festa de Fux. Tudo em casa e tudo dominado.

Perguntado sobre o que acha disso Barbosa deu o silêncio como resposta.

Coincidentemente, Fux foi ao lado de Barbosa o ministro que mais endureceu para o lado dos "mensaleiros", talvez por isso Barbosa permaneça em silêncio e não queira verbalizar seu falso moralismo.

Tudo neste país é baseado em falso moralismo e quem mais expôs essa faceta do comportamento brasileiro foi Nelson Rodrigues, o anjo pornográfico, cuja obra permanece atualíssima.

Joaquim Barbosa é uma dessas personagens Rodriguiana considerada uma reserva moral aos olhos da sociedade quando olhada de soslaio, mas se prestarmos bem atenção é mais um desses falsos moralistas que infestam o cenário político nacional.