quarta-feira, 21 de novembro de 2012

A inexplicável dosimetria das penas



Doses Inexplicáveis

Marcos Coimbra

Para quem não é jurista, um dos aspectos mais estranhos do julgamento do mensalão é a tal dosimetria.
Quando passaram a discuti-la e aplicar a cada condenado a pena que entendiam cabível, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) iniciaram uma etapa que o cidadão comum tem dificuldade de entender.
A dosimetria seria uma ciência exata? Aquelas cujos postulados e resultados se expressam na enésima casa decimal? Em que cada milímetro faz diferença e um grama muda tudo?

Para quem está acostumado com as disciplinas que estudam a sociedade e o comportamento dos indivíduos, tamanha precisão não faz sentido. Equivale a supor que as pessoas e seus atos podem ser transformados em fórmulas matemáticas.  

Que sentido real pode haver em uma pena de dezenas de anos, alguns meses e “cinco dias”? O que a fração expressa?

Ficar detido por dez, vinte, trinta, quarenta anos não é punição abundantemente suficiente? O que representam os meses e dias adicionais?

No fundo, tanta precisão serve apenas para fazer parecer que a dosimetria é impessoal, que consiste na aplicação neutra de regras científicas. Que o cálculo do tempo de castigo não decorre do arbítrio do julgador.

Mas não é apenas na aritmética que a dosimetria do STF é surpreendente.

Os réus até agora condenados receberam penas completamente fora da tradição jurídica brasileira. A começar pelos integrantes do “núcleo publicitário”, aos quais couberam as mais severas.

Qual o sentido de mandar para a cadeia por um período de 20 anos, no mínimo, pessoas que não cometeram qualquer crime de sangue, que não colocaram em perigo  a vida de ninguém, que não representam risco para a ordem pública, com antecedentes comparáveis aos de qualquer pessoa até 2005?
Que foram julgados em primeira e última instância simultaneamente, em nome de uma decisão discutível que estendeu a eles o foro privilegiado? Que, por isso, perderam o direito ao recurso?

A ideia de que os ilícitos que cometeram são tão graves quanto os que levam assassinos cruéis para as grades é despropositada. É falsa a noção de que “roubaram o dinheiro que iria para hospitais, escolas e creches” e que isso seria motivo bastante para emprisioná-los.

Nem com malabarismos é possível afirmar que o esquema de arrecadação irregular de que participaram “tirou o leite da boca das criancinhas pobres”. É só olhar os autos do processo.

Resta o argumento de que penas dessa magnitude têm “função pedagógica” e desencorajariam outros das mesmas práticas.

Primeiro, nada ensina que a hipótese seja verdadeira, como ilustram os casos de regimes  autoritários como o chinês, que estabelece a pena de morte para crimes de colarinho branco e se defronta com problemas cada vez mais graves em relação a eles.

Em segundo lugar, porque o excesso punitivo pode ser tão deseducador quanto a impunidade.
As prisões desproporcionais dos envolvidos no “mensalão” apenas mostram que alguns são punidos, enquanto a vasta maioria dos que fazem coisas iguais fica livre. O tamanho do castigo confirma a excepcionalidade.

É como se alguém tivesse que ser punido com excesso para garantir que tudo continue como antes.
Mas a duração das penas talvez tenha outra explicação.

Em alemão, existe uma palavra que poderíamos importar: Schadenfeude. Quer dizer sentir prazer com a dor alheia, ficar contente com o castigo do outro. E mais alegre se sofrer muito.

Os germanistas do STF devem conhecer a frase de Schopenhauer: “Sentir inveja é humano, saborear esse sentimento é diabólico”.

O Tribunal ainda tem tempo de se corrigir.

Barbosa Assume STF na quinta



Do Correio Braziliense

História no STF

Carlos Alexandre

Em dois dias, o Brasil testemunhará momento histórico: Joaquim Barbosa assume a Presidência do Supremo Tribunal Federal. O acontecimento de tamanha importância permite diversas leituras, compatíveis com o personagem complexo que, nos próximos dois anos, ocupará o mais alto cargo de um dos poderes da República. Dono de biografia singular e fascinante, o ministro apresenta currículo que o credencia com louvor a ocupar posto de tal magnitude. A admirável história pessoal — negro, filho de pedreiro e de dona de casa, aluno de escola pública — já seria suficiente para inspirar milhões de brasileiros.

Por seu lado, a ascensão de Joaquim Barbosa deve ser vista pelo significado que representa em um país que passou mais de 300 anos sob o regime da escravidão. Um negro comandar a mais alta Corte de Justiça do país, na mesma semana de homenagens ao herói Zumbi, simboliza o avanço incontestável de uma nação que acumula uma dívida incalculável com múltiplas gerações de brasileiros subjugados ao longo de séculos. 

A chegada do ministro negro à Presidência do STF ocorre, igualmente, semanas após a ampliação do sistema de cotas sociais no ensino superior. Apesar das críticas e ressalvas, os resultados demonstram que, do ponto de vista dos estudantes, a universidade significa oportunidade real e preciosa de conquistar posição mais digna. 

 É certo que as universidades oferecem contribuição limitada para nossos problemas educacionais — o desafio consiste em melhorar a qualidade do ensino fundamental e médio, além de estimular cursos profissionalizantes. Mas as políticas inclusivas constituem fator de transformação social que não pode ser menosprezado. Pelas próximas décadas, a sociedade brasileira terá como desafio permanente criar maneiras de reparar tão longo período de injustiça e dominação sobre parcela significativa de brasileiros. 

A trajetória do menino de Paracatu também remete à história de outro negro, este havaiano. Por duas vezes, Barack Obama conseguiu a façanha de ocupar o cargo mais importante de uma nação que, há pouco mais de meio século, era marcada pela segregação racial. Esses dois personagens são exemplos concretos da força maior da democracia — dar oportunidade a todos os cidadãos.

Barbosão afronta hoje o congresso no STF



Da Carta Maior

Antes da posse, Barbosa já pode se indispor com Legislativo

A previsão é que, nesta quarta (21), a perda dos mandatos dos deputados condenados entre em pauta no julgamento da ação penal 470. A posição de Barbosa é que o STF decida pela cassação, mas a Câmara defende que o assunto seja discutido pela Casa, como prevê a Constituição. O conflito poderá causar constrangimentos durante a posse dele, na quinta (22), já que os presidentes das duas casas do Legislativo confirmaram presença. Aliás, a expectativa geral é que até a presidenta Dilma Rousseff seja alvo dos discursos dos oradores da cerimônia.

Najla Passos

Brasília - O relator do processo ação penal 470, Joaquim Barbosa, será empossado presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), nesta quinta (22), em cerimônia para 2,5 mil pessoas, incluindo as maiores autoridades do país, do mundo jurídico, ativistas raciais, clebridades e familiares do ministro. Antes disso, porém, conduzirá, nesta quarta (21), a 44ª sessão do julgamento do “mensalão” na qualidade de presidente interino. E promete atacar uma pauta polêmica, que poderá resultar no primeiro entrevero da sua gestão com com outro poder da República: a questão da cassação do mandado dos deputados condenados na ação penal.

A questão é polêmica porque Joaquim Barbosa irá propor que o STF defina pela perda do mandato, mas o presidente da Câmara, Marco Maia (PT-RS) já deixou claro que irá lutar para que a casa dê a última palavra sobre o assunto, como prevê a Constituição, em seu artigo 55. A cassação afeta os deputados João Paulo Cunha (PT-SP), Pedro Henry (PP-MT) e Valdemar Costa Neto (PR-SP), além do ex-presidente do PT, José Genoino (PT-SP), que é suplente, mas manifestou intenção de assumir seu mandato a partir de janeiro.

Barbosa tentou colocar o tema em pauta, na quarta (14), durante a sessão de despedida do seu antecessor na presidência, o ex-ministro Ayres Britto. Saiu derrotado porque, naquele momento, o entendimento foi o de que calendário inicial, definido por ele próprio, previa a continuidade da dosimetria da pena dos réus do chamado núcleo financeiro. O episódio gerou bate-boca com o relator da ação, Ricardo Lewandowsky. Nesta quarta, porém, a discussão do assunto já está prevista. E se a posição do relator sair vitoriosa, causará constrangimentos aos presidentes da Câmara e do Senado, que já confirmaram presença na sua posse.

A presidenta Dilma Rousseff, que também confirmou presença, é outra que pode ter que ouvir o que não quer durante o evento. E sem poder responder, porque o rígido cerimonial do STF não dá voz aos presidentes dos demais poderes. Barbosa até quebrou o protocolo para sua posse, mas foi para convidar o ministro Luiz Fux para falar na cerimônia, no lugar do decano da corte, ministro Celso de Mello, como manda a tradição. O discurso de Fux, que acompanha o colega em 99% dos seus votos, é um dos que pode significar risco de constragimento à presidenta.

O mais provável, porém, é que os ataques partam do presidente da OAB, Ophir Cavalcanti que, conforme notas salpicadas pela imprensa, irá subir o tom para condenar o “mensalão” e o partido de Dilma, como já o fez em posses anteriores do judicário, perante o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Estratégia que o deixa bem com a imprensa, mas o coloca em rota de colisão com os mais renomados advogados do país, que atuam no caso.

Nessas quatro meses de julgamento, não foram poucas às críticas dos criminalistas à Ophir. Nos bastidores do julgamento, vários deles o condenaram por concentrar seus esforços exclusivamente em agradar a mídia, enquanto a categoria sofria sérias restrições na defesa dos réus e era cada vez mais criminalizada perante à sociedade.

Os ministros do STF também estão preocupados, mas menos com a cerimônia do que como o temperamento explosivo de Barbosa repercutirá no dia a dia da corte. Desde que assumiu sua vaga no STF, em 2003, já protagonizou bate-bocas pouco civilizados com Cezar Peluso, Gilmar Mendes, Marco Aurélio Mello e, reiteradamente, Ricardo Lewandowski, para ficar nos entreveros mais recentes. Além disso, já anunciou à imprensa que, na presidência do STF, irá decidir individualmente tudo o que o regimento lhe permitir, com o objetivo de dar “mais agilidade” aos trabalhos.

Os arrombos de destemperos do relator do “mensalão” – que lhe renderam fama de destemido e implacável quando, na sua mira, estavam os políticos do PT – começam a incomodar também fora dos poderes. A mesma imprensa que o elegera o heroi nacional pelo seu desempenho no “mensalão” já usa adjetivos mais amenos para defini-lo. Analistas mais críticos avaliam que é questão de tempo – pouco tempo – que todo o pensamento conservador brasileiro passe a hostilizá-lo. Mas há também quem aposte que as habilidades adquiridas pelo ministro na condução do “mensalão” podem retardar o fim da lua-de-mel. Afinal, Barbosa se tornou fonte confiável dos principais veículos do país. E, ao que tudo indica, soube captar muito bem suas pautas e anseios.

Encontro marcado entre Joaquim Barbosa X Gilmar Mendes

O próximo embate Joaquim Barbosa vs Gilmar Mendes


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Spy vs SPY, Gilmar vs Joaquim Barbosa. Nos últimos anos, esse duelo esteve presente na história do STF (Supremo Tribunal Federal). Arrefeceu no julgamento do "mensalão". Gilmar mostrou-se um Ministro extraordinariamente discreto, praticamente acompanhando o relator em todos os votos.

Poderia ser cautela, depois de ter se exposto no episódio do encontro com o ex-presidente Lula. Poderia ser por tranquilidade, vendo Barbosa endossar todas as teses que o militante Gilmar queria endossadas, embora o garantista Gilmar pudesse discordar.

Mas, provavelmente, a razão foi de ordem pessoal.

Em vários momentos do processo, Barbosa adiantou suas linhas de atuação na presidência do STF. A mais insistente foi a afirmação de que não aceitaria mais parentes de juízes advogando junto a tribunais dos quais os juízes participem. Em matérias de ontem e hoje, voltou a reiterar esse princípio.

O TSE (Tribunal Superior Eleitoral) é um tribunal para julgar denúncias eleitorais. Tem na sua composição, como Ministro substituto, Gilmar Mendes. Como presidente, sempre um Ministro do STF.

Uma das advogadas mais atuantes é Guiomar Feitosa de Albuquerque Lima Mendes, esposa de Gilmar. Quando da lei que impedia parentes de trabalhar em locais de trabalho da autoridade em questão, Guiomar estava lotada no gabinete de um dos ministros do STF. Depois de imensa discussão, acabou afastando-se, aposentando-se e indo trabalhar no escritório do advogado Sérgio Bermudez – o mesmo que, na condição de advogado de Daniel Dantas, conquistou dois habeas corpus seguidos de Gilmar, em favor de Dantas.
Na condição de membro do escritório de Bermudez, Guiomar é titular de 22 processos no TSE. Flávio Jardim, outro membro do escritório Bermudez, mais 63.

Guiomar certamente protagonizará o primeiro capítulo da novela Spy vs Spy, com Joaquim Barbosa na condições de presidente do STF.

PS - Como já havia adiantado aqui no Blog, a CPI de Cachoeira nada apurou de concreto sobre Gilmar Mendes.

O repúdio da consulta popular ao julgamento do "mensalão"



Nota da Consulta Popular sobre Ação Penal 470.  Foi aprovada pela plenária do dia 18 de novembro

da Consulta Popular, sugestão do advogado Aton Fon Filho e do jornalista Igor Felippe
A quase totalidade dos ministros do Supremo Tribunal Federal, seduzidos e submetidos às tentações e pressões da grande mídia porta-voz do neoliberalismo assumiu o papel desempenhado outrora pelos feitores de escravos e, mais recentemente, pelos integrantes dos organismos repressivos da ditadura militar, perseguindo os lutadores políticos em defesa dos interesses dos exploradores.

Pretende-se que o fato de emanar do órgão máximo do Poder Judiciário brasileiro obrigaria à aceitação e reconhecimento da decisão resultante da Ação Penal 470, ainda quando o processo e a sentença tenham sido feridos em sua legalidade e legitimidade por negativa de obediência ao princípio do juiz natural, quebra do princípio da isonomia, violação ao direito de defesa e instituição do princípio de presunção da culpabilidade em substituição ao de presunção de inocência.

A maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal violou o princípio do juiz natural, uma vez que não tinham competência para julgar os réus que não ostentavam condição que obrigasse ao foro privilegiado.
Ao decidir, porém, arrogar-se tal competência, a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal escolheu conscientemente quebrar o princípio da isonomia, estabelecendo distinções entre acusados, já que em outras situações, inclusive na ação penal em que são réus dirigentes do PSDB, reconheceram sua incompetência para o julgamento e desmembraram o processo.

Fica claro, com isso, que a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal estava decidida a violar o direito de defesa, impedindo que os acusados pudessem ter o direito de recurso em face das decisões que viessem a ser proferidas, antecipando sua intenção de condenar e impedindo que o próprio Poder Judiciário pudesse reexaminar a causa.

A maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal decidiu impedir o reexame judicial da causa pela via recursal porque já havia, antecipadamente, optado por afrontar a Constituição Federal e a lei processual penal instituindo princípios pelo quais os acusados são presumivelmente culpados em razão dos cargos que ocupem – a tese do domínio funcional do fato; devem provar que acusações publicadas pela imprensa não são verdadeiras – inversão do ônus probante, tudo de modo a fazer poeira do princípio constitucional de presunção de inocência.

A Consulta Popular manifesta que a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal arrogou-se o papel de escolher, por suas próprias opções políticas, as correntes de opinião que devam ter a possibilidade de exercer os poderes Executivo e Legislativo no Brasil, consumando a um só tempo os processos de judicialização da política e politização do judiciário.

Essa maioria de ministros toma de assalto não apenas o Poder Judiciário, reduzido a sua vontade quando o juiz natural deixa de existir, mas os demais Poderes da República, ao anunciar que pode destituir seus ocupantes sem provas, sem validade das acusações, somente por ocuparem seus cargos e exercerem suas funções.

Mais do que um julgamento de fancaria, tratou-se de um golpe contra o Estado constitucional.
Mas a decisão da maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal não expressa apenas sua afronta à Lei Maior da República. Anunciou por meio dessa decisão bastarda e ilícita, que os juízes podem e devem doravante judicializar as lutas sociais e perseguir com as mesmas ilegalidades os movimentos e militantes sociais, afirmadas as manifestações do povo como crimes e o direito dos exploradores como o único possível na sociedade brasileira.

A Consulta Popular convoca, por isso tudo, a sociedade brasileira, os homens e mulheres de nosso povo e os lutadores e lutadoras sociais a manifestarem solidariedade aos vitimados pelas ilegalidades e injustiças perpetradas pela maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal.

A Consulta Popular convoca, a que se manifeste repúdio à violação da Constituição, à politização do Poder Judiciário e à judicialização e criminalização da política e das lutas sociais.

A Consulta Popular convoca a que lutemos pela revogação das condenações e das penas ilegalmente impostas.

A Consulta Popular convoca a que unamos nossas forças para as duras tarefas que se exige e anunciam para a defesa da democracia.
Pátria Livre, Venceremos!

4ª Plenária Nacional Soledad Barrett Viedma da Consulta Popular – 18 de Novembro de 2012

PS do Viomundo 1: A Consulta Popular existe há 15 anos. É uma organização política que reúne militantes de atuam em movimentos sociais, sindicatos e organizações de jovens em todo o Brasil. Seus integrantes defendem a construção de uma força social organizada do povo brasileiro para implementar um programa político de mudanças estruturais na sociedade e combater os inimigos centrais da classe trabalhadora, entre os quais o neoliberalismo, a mídia corporativa e o sistema financeiro.  Para saber mais da Consulta Popular, clique aqui.

PS do Viomundo 2: A IV Plenária Nacional, encerrada no dia 18 de novembro, recebeu o nome Soledad Barrett Viedma. Foi uma homenagem à jovem militante assassinada em 8 de janeiro de 1973 pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, em Recife (PE), após ser denunciada pelo agente infiltrado Cabo Anselmo.

Uma visão política das relações Brasil/Irã nos governos Lula/Dilma

Da Carta Capital

O acerto da “política iraniana” de Lula

por Felipe Flores Pinto*

Caracterizada por comedimento e sobriedade, a diplomacia brasileira sofreu mudanças com a eleição do presidente Lula, em 2002, que decidiu imprimir nova dinâmica à atuação externa do Brasil, decidido a desafiar a ordem internacional estabelecida e a testar os limites de suas possibilidades de ação. Sua personalidade exuberante e falstaffiana logo se viu refletir na política exterior de seu governo. Puseram-se em movimento iniciativas ambiciosas —integração física da América do Sul, aproximação com a África e com o mundo árabe, protagonismo na Rodada Doha, entre outras. Em 2010, o Brasil e a Turquia, ganharam notoriedade ao tentar mediar as negociações envolvendo o programa nuclear do Irã, o que resultou na “Declaração de Teerã”, proposta visando a que o Irã abrisse mão de cerca de uma tonelada de combustível nuclear (urânio levemente enriquecido) em troca de material especialmente destinado à produção de rádioisótopos medicinais. O acordo terminou rejeitado pelos EUA e outros atores envolvidos nas negociações.


Foto: Agência Brasil

À direita e à esquerda, jornalistas acusaram Lula e o chanceler Celso Amorim de manchar a reputação do Brasil ao dar crédito e reforçar a legitimidade de um regime tido por muitos como execrável. Graduados diplomatas aposentados (e pelo menos um ex-chanceler) qualificaram a iniciativa de Lula como “o maior erro da história da diplomacia brasileira”. Choveram acusações de anti-americanismo, esquerdismo, terceiro-mundismo e, até, anti-semitismo. Muitas das críticas são certamente imerecidas. Argumentos que atribuem a aproximação de Lula com Irã a suposto ranço anti-americano do governo ou à alegada vaidade do presidente são absolutamente descabidos. Tive a honra de servir de 2005 a 2010 na Embaixada do Brasil em Teerã, sob três diferentes embaixadores, profissionais que jamais deixaram convicções pessoais interferirem em seu trabalho ou receberam instruções de Brasília que comprometessem interesses nacionais ou a posição moral do País em matéria de direitos humanos ou não-proliferação nuclear.

Tal simplificação ignora a perspectiva histórica. Pelo menos desde o governo Collor foram levadas a cabo iniciativas de aproximação. Em 1992, Collor — aproveitando o processo de reconstrução do país persa após o término da Guerra Irã-Iraque — decidiu lançar a maior iniciativa da história das relações Brasil-Irã em termos econômicos, quando foi realizada a III Comissão Mista Brasil-Irã. Foram assinados contratos de vários milhões de dólares, e, ao menos uma grande empreiteira brasileira chegou a realizar obras de infraestrutura no Irã. Contudo, as promissoras oportunidades, que poderiam fazer o Irã desempenhar papel comparável ao do Iraque nos anos 70 e 80 para o Brasil em termos de presença econômica brasileira no Oriente Médio, foram canceladas pelo impeachment.

Em 2000, Brasil e Irã estabeleceram mecanismo anual de consultas políticas bilaterais, encabeçado pelos Subsecretários-Gerais Políticos das respectivas Chancelarias. No mesmo ano, os Presidentes Mohammad Khatami e Fernando Henrique Cardoso se encontraram à margem da Assembléia-Geral da ONU. Em 2003, a Petrobrás assinou contrato com a estatal petrolífera iraniana NIOC para a exploração de blocos “off-shore” no Golfo Pérsico.

Equívoco ou não, a atenção do mundo se voltou para o Brasil. Lugar-comum recorrente apontado é o de que o Brasil desperdiçou parte de seu prestígio ou “capital politico” internacional ao tentar intervir na condição de mediador do affair nuclear iraniano. Como sabemos desde Maquiavel, prestígio e boas ações não andam necessariamente juntos. Angaria-se prestígio por práticas que levem alguém a ser amado por outrem, ou, então, temido. A República Islâmica é notável exemplo da segunda hipótese.

É estranho que um país como o Irã — simultaneamente em grave situação econômica, combalido por décadas de embargos e isolamento, com seu sistema politico em estado de quase paralisia e com pífio poderio militar em comparação aos demais atores regionais do Oriente Médio — represente tamanha ameaça, a ponto de uma superpotência militar como Israel chegue a rotulá-lo como “ameaça existencial”.

Basicamente, trata-se de uma questão de prestígio acumulado pela República Islâmica. Ao longo de suas três décadas de existência, o regime de Teerã aplica uma lógica de “guerra assimétrica” à sua política externa, agravando problemas regionais já existentes de maneira a manter seus rivais estratégicos de mãos atadas, compensando, assim, seus limitados recursos de poder militar e também angariando temível prestígio com isso.

Manipulando magistralmente a “cortina de fumaça” proporcionada pelo fundamentalismo islâmico, a elite política iraniana foi capaz de projetar externamente a imagem de um regime fanático, impiedoso e feroz, certamente na tentativa de mascarar seu reduzido poder nacional real. No jogo de pôquer do sistema internacional, poucos conseguem jogar blefando com uma “mão fraca” como os iranianos.
Não importa se Brasil e Turquia erraram ou não. Ambos países fizeram algo que impressionou, enfureceu, aborreceu ou maravilhou as demais nações — e isso revertou em enorme prestígio.

Ficam evidentes as deficiências do regime global de paz e segurança. Se após quase dez anos um regime internacional se vê absolutamente incapaz de lidar com o “dossiê” nuclear iraniano, fazendo avanços insignificantes e oferecendo perspectivas futuras pouco encorajadoras, há grande chance de que algo esteja profundamente errado com esse regime.

Essa percepção se fortalece ao verificarmos que dois outsiders, Brasil e Turquia, foram capazes de realizações significativas onde outros falharam (ou sequer tentaram).

Haverá sempre espaço para o duvidoso argumento de que Brasil e Turquia foram ludibriados pela República Islâmica, como parte de enganoso processo destinado somente a ganhar tempo. Implícita a este argumento é a visão de que países como Brasil e Turquia devem deixar este assunto para os os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, mais a Alemanha, países supostamente mais “qualificados” e aptos a se engajarem nessas negociações (“saiam do ‘playground’ e dêem lugar para os meninos mais crescidos!”). Quase sempre o argumento funda-se em duas premissas altamente questionáveis:

1) A República Islâmica é um regime intrinsecamente maléfico e insano, circunstância que leva o Irã a agir invariavelmente imbuído de má-fé e o impede de agir como um integrante civilizado em meio ao concerto das nações;

2) A condução dos assuntos mais importantes da agenda internacional devem ser reservados exclusivamente aos “meninos crescidos”, membros permanentes do Conselho de Segurança, pois dispõem de mais experiência e sabem o que é o melhor para os demais.

No sistema internacional atual, vige regra não-escrita que confere uma espécie de privilégio aos P-5 sobre os temas de suprema importância relacionados à paz e segurança internacionais, ainda considerados nos dias de hoje “chasse gardée” dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança — prática costumeira refletindo estado de coisas ultrapassado, insustentável no longo prazo.

O fracasso em lidar com o programa nuclear iraniano é sintoma da falência do sistema de governança global. Se o regime internacional de paz e segurança não permitir a países como Brasil e Turquia exercerem papéis na ordem internacional compatíveis com suas capacidades e aspirações nacionais, jamais será capaz de solucionar crises como o “dossiê” nuclear iraniano.

O Brasil se colocou em posição de maior poder. Nos telegramas da Embaixada americana em Brasília vazados pelo WikiLeaks enviados entre 2005 e 2009, achamos várias afirmações de diplomatas francamente críticas da política externa brasileira para Oriente Médio: “As posições pouco felizes do Brasil e seus pronunciamentos imprecisos em relação ao Oriente Médio turva as águas para a política e os interesses dos Estados Unidos no Oriente Médio.”, or “Os lugares-comuns repletos de clichês repetidos pelos funcionários brasileiros são uma indicação de falta de compreensão sobre o Oriente Médio, o que é problemático para um governo que se propõe a ter envolvimento naquela região. Destaco a que faz referência a viagem do Chanceler Amorim em 2005: “A viagem de Amorim criou confusão e enviou sinais ambíguos, além de evidenciar o perigo de um “grupo de apoio de retaguarda” [referência a proposta brasileira no contexto do processo de paz Israel-

Palestina] inadvertidamente se tornar um “grupo de sabotagem da retaguarda”. Evidentemente, a última afirmação foi proferida antes do momento em que Lula resolveu iniciar sua aproximação, mas acredito que reflete perfeitamente o sentimento geral do Departamento de Estado em relação ao Brasil e sua “política iraniana”, imediatamente após a Declaração de Teerã.

Coisa curiosa — se alguém se coloca em posição de sabotar os planos mais caros da superpotência mundial, esse fato por si só tornará esse alguém poderoso. Quando você deixa de ser simples inconveniente e se torna um sério aborrecimento para o poder hegemônico, é bastante provável que você passe a ser considerado mais importante, e mais pessoas passarão a prestar atenção.

O Brasil desfrutará de melhor posição no caso de mudança do regime no Irã. Até mesmo figuras da oposição ao regime iraniano reconheceram que o acordo envolvendo a troca do urânio foi manobra positiva que poderia ter levado à melhora do cenário político do Irã. É possível que alguns iranianos tenham ficado ressentidos com Lula pelo fato de que ele, de certa forma, concedeu algum capital político a Ahmadinejad. No entanto, a grande maoria do povo do Irã vê o Brasil como um país fraterno, que jamais submeteu outros povos ao jugo do colonialismo e que compartilha diversos pontos de vista em uma série de temas da agenda internacional.

É lamentável que o Brasil seja entre os BRIC o único cuja dependência econômica e tecnológica em relação aos EUA é tão profunda que inviabiliza o estabelecimento de laços comerciais mais próximos com o Irã. Gigantes brasileiros como Petrobrás, Vale, Embraer ou Banco do Brasil se acovardam e não se atrevem a fazer negócios com o Irã, em razão de seu extensivo envolvimento com o mercado americano.

Recentemente, a Petrobrás sucumbiu à pressão americana e fechou seu escritório em Teerã, suspendendo todas as suas atividades. Enquanto isso, Rússia, China, Índia e até mesmo alguns aliados europeus dos Estados Unidos encontraram maneiras de realizar seus negócios com o Irã, contornando a aplicação das sanções.

Após trinta anos de embargo econômico, com extensa frota decadente e sucateada de aeronaves, plataformas de petróleo e unidades FPSO, o Irã seria o mercado natural para empresas brasileiras como a Embraer, ou a construtora naval OSX, de Eike Batista. No dia em que as sanções contra o Irã forem levantadas, o Irã poderá facilmente se tornar no principal cliente dessas empresas, com a possibilidade de venda de vários bilhões em termos de manufatura de alto valor agregado.

Críticos assinalam que o Irã não é parceiro commercial relevante para o Brasil, afirmação absolutamente falsa que ignora uma série de fatos:

1. Até 2011, o Irã era o quinto maior cliente do agronegócio brasileiro. Na verdade, o Brasil supre quase metade das importações iranianas de alimentos. A participação brasileira no mercado iraniano de algumas commodities agrícolas como açúcar, carne bovina, frango, soja, milho e óleo vegetal é superior a 50%. O comércio de alimentos entre os dois países é certamente estratégico, especialmente para o Irã, que depende pesadamente do Brasil para assegurar sua segurança alimentar.

2. O intercâmbio comercial total (US$ 2.1 bi, em 2010) é praticamente equivalente ao volume de exportações brasileiras para o Irã, já que o volume de importações brasileiras do Irã é insignificante (cerca de US$ 5 mi). Não creio que o Brasil apresente tamanho superávit commercial (99,9%) com nenhum outro país do mundo.

3. Não fosse a subserviência das companhias brasileiras frente às diretrizes financeiras impostas por Washington, o comércio bilateral Brasil-Irã poderia facilmente alcançar cifras entre US$ 3 e 10 bi.

4. O Irã é provavelmente o maior mercado potencial no mundo nos setores de aviação civil, construção naval, mineração, serviços para indústria petrolífera e compras governamentais — não apenas para as já citadas Petrobrás, Vale, Embraer e EBX — mas também para as grandes empreiteiras Odebrecht, Camargo Correa, Andrade Gutierrez e Queiroz Galvão; outras representantes da indústria pesada (Usiminas, Gerdau, Votorantim) e empresas brasileiras na área de software e automação industrial.

No plano político, a eleição de Dilma Roussef parece ter esfriado as relações Brasil-Irã. Infere-se que isso decorre da sensibilidade que temas de direitos humanos têm para a Presidenta, em razão de sua trajetória pessoal, o que a levaria a rechaçar tentativas de aproximação da República Islâmica. No plano econômico, comércio bilateral decresce rapidamente diante da incapacidade brasileira de driblar as sanções unilaterais americanas e européias.

O desafio que se coloca é o de se formular uma política para o Irã — país que o Brasil não pode se dar ao luxo de ignorar se realmente tem aspirações a uma vaga permanente no Conselho de Segurança.

*Diplomata de carreira. As idéias desenvolvidas neste artigos são expressas a título pessoal e não refletem necessariamente a posição oficial do Ministério das Relações Exteriores.