"Eu estou sendo caçado pela mídia por um crime que não cometi"
Em uma entrevista exclusiva feita durante dois dias, enquanto
jornalistas da grande mídia tentavam caçá-lo no Rio, o cientista
argelino Adlène Hicheur, professor do Instituto de Física da UFRJ,
revelou a sua história e contou como foi sua polêmica prisão e
condenação na França, episódios criticados por físicos e defensores dos
direitos humanos. Acusado de “formação de quadrilha” com terroristas,
ele já não devia mais nada à Justiça francesa quando chegou no Brasil,
onde reconstruía sua carreira, viajando sempre para a Europa para ver a
família, que vive na França. Mas aqui, alvo de uma campanha midiática
deslanchada pela revista Época, que seus colegas (inclusive europeus)
afirmam ser difamatória, Hicheur decidiu que vai deixar o país.
Florência Costa & Shobhan Saxena *
Adlène Hicheur ainda consegue abrir um sorriso atrás da barba escura e
bem desenhada que cobre suas bochechas afundadas. Com uma mochila verde
pendurada em seu ombro esquerdo, ele caminha calmamente na sala e senta
na beira do sofá.
Então, ele começa a falar, falar, falar. Ele adora falar. No meio de
uma frase sobre islamofobia, ele desliza a mão para dentro da bolsa e
saca dois livros. Um deles, em francês, é o clássico “As Veias Abertas
da América Latina”, do uruguaio Eduardo Galeano. “As pessoas não podem
esquecer a sua história. Eu li este livro quando estava na prisão e
estou lendo de novo”, diz. “Nós precisamos conhecer as alternativas,
outras formas de vida”, diz ele, tirando da bolsa outro livro, este em
português: “Por uma outra Globalização”, do renomado geógrafo brasileiro
Milton Santos. “Eu adoro suas ideias. Ele faz uma nova interpretação
do mundo contemporâneo”, comenta, enquanto bebe chá branco em pleno
calor carioca. “Eu gosto de chá. Não preciso de café. Já sou muito
agitado”, conta. Ele coloca a mão dentro da mochila novamente e desta
vez surgem mais dois livros sobre ecologia e desenvolvimento
sustentável.
Hicheur, 39, não precisa de gatilho para começar uma conversa. Parece
que dezenas de ideias borbulham na sua mente ao mesmo tempo. Ele salta,
em questão de minutos, de física de partículas, para geopolítica,
história da Argélia, repressão aos muçulmanos na Europa, álgebra,
culinária, cinema. Há espaço até mesmo para Batman em sua conversa. As
frases saem de sua boca em várias línguas: inglês, francês, português,
de vez em quando com pitadas de árabe.
Ele faz uma pausa apenas para enxugar o suor de sua testa ou para
ajustar os óculos que pousam em seu nariz. Então, a conversa amena
começa a ganhar um tom mais sério: a sua atual situação. Ele se afunda
no sofá e fica em silêncio – por alguns segundos. “Sinto que tem uma
bola no meu estômago – sinto um vazio”, franzindo suas fartas
sobrancelhas. “Eu decidi deixar o Brasil. Não sei ainda para onde vou e
quando, mas vou embora”, contou.
Adlène Hicheur não está deixando o Brasil por sua própria vontade. O
cientista, tido por todos que o conhecem como brilhante, e seus colegas
dizem que ele está sendo empurrado porta afora. Hicheur foi taxado no
Brasil como uma ameaça terrorista real devido às acusações do passado.
Ele protege firmemente a sua privacidade, não deixando que se fotografe
seu rosto, até para não sofrer agressões na rua.
Mas sua vida _ e seu passado _ não é nenhum segredo. Uma simples
procura no google mostra que em 2009, enquanto trabalhava no famoso
Organização Europeia de Pesquisa Nuclear (CERN), que abriga um
superacelerador de partículas, perto de Genebra, na Suíça, ele foi preso
pela polícia francesa. A acusação foi de “formação de quadrilha” com um
grupo terrorista” (Al Qaeda no Mahgreb). Ele passou 30 meses enjaulado.
É também de conhecimento público que a polícia francesa acusou Hicheur
devido a 35 emails e conversas virtuais em fóruns na internet com um
interlocutor que usava pseudônimo e que alegadamente seria um integrante
argelino da Al Qaeda. Durante o julgamento, não se conseguiu apresentar
nenhuma prova ou indício de que ele teria tomado qualquer ação para
concretizar seus comentários. Sua resposta às acusações é bem conhecida
também: ele alega que as conversas online incluíam numerosos tópicos
internacionais, que ele nunca planejou nenhum ataque terrorista com
ninguém. Há até uma página na Wikipedia sobre Hicheur que compara seu
caso com o de Lotfi Raissi, acusado de ser o principal mentor do ataque
terrorista de 11 de setembro de 2001 nos EUA, mas depois foi libertado
sem qualquer acusação.
Também não é segredo que após 949 dias na notória prisão de Fresnes,
em Paris, Adlène Hicheur foi liberado em maio de 2012. Ele deixou o país
um ano depois, com o caso encerrado. Desde então, já no Rio, ele
procurava colocar sua vida nos trilhos novamente – como professor e
pesquisador. Aqui ele estava feliz porque se sentia bem acolhido. Ele já
havia se convencido de que conseguiria apagar a marca de terrorista que
havia sido carimbada em seu rosto na Europa e que o assombrou de 2009,
quando foi preso, a 2013, quando chegou aqui. “Fui capaz de ensinar
física na UFRJ e me dediquei totalmente às minhas pesquisas, além de
escrever artigos acadêmicos. Tudo caminhava muito bem. Isso era tudo o
que eu queria na minha vida e aqui no Brasil eu encontrei espaço para
fazer isso”, lembrou Hicheur.
Ele estava no lugar certo mas provavelmente no momento errado.
Reciclando o passado
No último dia 9, em meio à intensa disputa entre partidos políticos
sobre a “necessidade” de o país adotar uma lei anti-terrorismo, Hicheur
apareceu na capa da revista
Época, com uma reportagem
intitulada “Um terrorista no Brasil”. A matéria afirmava que havia “um
segredo” na biografia do cientista, que estava sendo investigado pela
Polícia Federal. Dizia ainda que ele havia recebido “uma bolsa do
governo e que ensina em uma universidade pública”. A reportagem citou
alguns emails que falavam em atentados terroristas, trocados entre ele e
e um interlocutor chamado Phenix Shadow, que segundo o governo francês
seria um membro da Al Qaeda. Mas Hicheur e seus colegas reagiram
afirmando que a matéria remoeu detalhes velhos do caso já amplamente
noticiados na mídia europeia há seis anos. A foto de um Hicheur barbeado
foi estampada com um título em vermelho: “terrorista”. A reportagem
parecia trazer a mensagem de que o Brasil está sob uma ameaça
terrorista. “Não há segredo em meu currículo. Eu cheguei ao Brasil com
um visto válido, convidado por um centro de pesquisas. Meu caso é muito
conhecido, é passado. Eu sou cientista mas eles me carimbaram como
terrorista ao reciclar de forma vergonhosa uma história velha”,
protestou Hicheur, com um misto de tristeza e raiva.
Isso foi apenas o início de seu pesadelo brasileiro, com toda a
grande mídia atrás dele. Sua foto, retirada do website do Ministério da
Ciência e Tecnologia, ilustrou jornais e revistas, além de reportagens
de televisão. Adlène Hicheur, um cientista que ainda trabalha, a partir
do Brasil, em parceria com o CERN, foi apresentado como um perigo
iminente ao Brasil. “Seu julgamento e condenação foram muito
questionados. Os juízes sabiam disso, senão não o teriam liberado após
três anos”, afirmou Patrick Baudouin, seu advogado, ao jornal
Le Monde, na última quinta-feira.
O Le Monde
publicou uma matéria sobre o escândalo em torno de Hicheur a partir da
reportagem da revista. Mas o próprio jornal francês, que fala de uma
“máquina midiática-política”, coloca a palavra “terrorista” entre aspas.
“Em todo o caso ele cumpriu sua sentença”, acrescentou Baudouin, que é
também diretor da Federação Internacional dos Direitos Humanos.
Mas o estrago já tinha sido feito.
Fatos cruciais foram ignorados no bombardeio contra Hicheur, como o
de que ele foi condenado no dia 5 de maio de 2012 e liberado apenas 10
dias depois. A longa detenção de Hicheur foi criticada por mais de 600
cientistas, incluindo o prêmio Nobel de Física Jack Steinberger, além de
organizações de defesa dos Direitos Humanos na Europa.
Hicheur acredita que está sendo julgado novamente no Brasil, quando
já cumpriu a pena, e por um crime que, segundo ele, nunca cometeu.
“Nem a mídia francesa mostrou uma hostilidade tão exacerbada contra
mim”, disse o físico, que recusou-se a falar com os jornalistas que
invadiram sua sala na UFRJ e bateram na porta de seu apartamento, na
Tijuca. Os repórteres, após entrarem no prédio, que não tem porteiro,
fizeram plantão no corredor de seu andar, até que um colega de Hicheur
chamou a Polícia Federal para retirá-los de lá.
Quatro dias após ele ter se transformado em manchete no país, Hicheur
concordou em nos dar uma entrevista para contar seu lado na história.
“Sem gravadores escondidos e sem fotos”, foi a única condição que ele
apresentou. Ele avisou que poderíamos perguntar qualquer coisa.
Vestindo túnica de algodão azul marinho de manga curta, calça preta e
sandália marrom, e com um boné cobrindo a sua cabeça, Adlène Hicheur
entra na sala da casa de um amigo, aperta as mãos dos jornalistas, e
senta para ser entrevistado.
Hicheur conversa com a urgência de um homem que tem muito a dizer mas
pouco tempo. Sua dicção é serena enquanto ele faz a conexão do que
aconteceu com ele com o contexto político e social mais amplo.
Como um verdadeiro físico, ele explica sua história, como uma equação
onde ciência, política, religião e cultura interajam uma com a outra.
Primeiro Julgamento
Hicheur nasceu em Setif, uma região
montanhosa com florestas verdes e uma cidade com ruas arborizadas, no
norte da Argélia, em 1976. Quando ele tinha um ano, sua família mudou-se
para Isère, na França, levando ele, seus dois irmãos e três irmãs.
Mesmo tendo nascido em uma família simples -- seu pai era operário da
construção civil --, ele ficou em primeiro lugar na turma de mestrado de
Física Teórica na École Normale Supérieure, uma universidade da elite
francesa. Ele fez o doutorado no Laboratório de Física de Partículas de
Annecy-le-Vieux de (Lapp), após breve passagem pelo Stanford Linear
Accelerator Center (Califórnia). Em seguida, foi para o Rutherford
Appleton Laboratory, perto de Oxford, na Inglaterra, onde fez seu
pós-doutorado. Depois, ele foi convidado a trabalhar no Departamento de
Física de Altas Energias da École Polytechnique Fédérale de Lausanne
(EPFL), na Suíça, e trabalhou no experimento LHCb do CERN.
Como uma estrela ascendente do EPFL, Hicheur tinha tudo a seu favor
quando de repente sua vida começou a se desintegrar. No início de 2009
foi diagnosticado com hernia de disco que o fazia sofrer com fortes
ondas de dores na espinha e na perna direita. Ficou confinado na cama da
casa dos pais, em Isère. Algumas vezes as dores eram tão insuportáveis
que ele tinha que tomar injeções de morfina. Ele só conseguia se
locomover com andador.
Mas o pior estava por vir.
No dia 8 de outubro de 2009, a casa dos Hicheurs foi invadida por
homens encapuzados fortemente armados. Eram agentes da polícia e da
inteligência francesa. Hicheur e seu irmão mais novo, Zitouni, um
engenheiro mecânico, foram levados para a delegacia de polícia. Seus
computadores e equipamentos eletrônicos foram confiscados. “Não sabíamos
o que estava acontecendo. Minha mãe, que é diabética, desmaiou e a
polícia não deixou que a socorrêssemos. Mesmo com dores terríveis eu fui
levado para o carro da polícia”, lembrou Hicheur com amargura.
Zitouni foi liberado após poucos dias, mas Hicheur foi acusado de
“formação de quadrilha” com um grupo terrorista e enviado para a prisão
de Fresnes. Sua detenção passou a dominar as manchetes da mídia francesa
e europeia.
‘O terrorista do Big bang’
Em 2009, o CERN estava sob holofotes da mídia global por suas
colisões de altas energias no maior acelerador de partículas do
planeta. O CERN inspirava livros de ficção e filmes com tramas recheadas
de teorias conspiratórias. No início de outubro daquele ano, quando
coincidentemente nós dois visitávamos o CERN em uma viagem de 10 dias
pela Suíça, o entusiasmo em torno do experimento do “Big Bang” (que
procurava descobrir a origem do universo), chegava ao ápice.
“Cientista do Big Bang acusado de ter ligações com o terror”, dizia
uma manchete em um jornal australiano. Outros reproduziam chamadas
semelhantes e aterrorizadoras. Naqueles dias, em conversas com
cientistas no bandejão do CERN, nós percebemos que a notícia explosiva
assustou muitos, mas não convenceu vários de seus colegas mais próximos.
Hicheur, que desde sua prisão tem negado consistentemente sua ligação
com grupos terroristas, diz que paga um preço alto por ser um muçulmano
bem educado na França. “As pessoas aqui não entendem o que significa ser
muçulmano na França nestes dias, o que significa ser um migrante
argelino. Se você é um muçulmano com alto nível cultural e educacional e
ascendeu na vida eles vão te derrubar. Eu fui apresentado como como um
exemplo de terrorista bem-educado, ativo na internet e que se
radicalizou. Eles queriam me punir por minhas opiniões políticas”,
afirmou Hicheur. “Eles queriam apenas destruir a minha reputação. Eles
queriam me desumanizar”, concluiu.
Ele não foi o único que interpretou a sua detenção desta forma.
Jean-Pierre Lees, um físico do Lapp que trabalhou com Hicheur e fez
campanha por sua libertação, disse em 2011 que os promotores “sabiam
muito bem que ele não tinha feito nada sério”. Citado em um artigo da
revista científica internacional “Nature”, Lees disse que Hicheur foi
atingido porque ele é um muçulmano com alto nível de educação
trabalhando em física.
Mas o que aconteceu depois, nas palavras de Hicheur, parecia ter sido
inspirado em um romance de Franz Kafka. Quatro dias após a sua detenção
na delegacia, o juiz que o investigava apresentou acusações contra ele,
decretou a investigação formal e ordenou que ele fosse enviado para a
prisão de Fresnes. Pela lei francesa, juízes lideram a investigação de
crimes. A acusação contra Hicheur é uma das mais comuns em casos
relacionados ao terrorismo na França. Apesar de não haver acusação
concreta de nenhum ato de terror _ planejado ou executado – contra
Hicheur, sua detenção provisória em Fresnes durou quase três anos, com
limitado acesso ao mundo exterior. Um grupo de apoio composto por
cientistas divulgou uma declaração condenando o estilo “Guantanamo” de
encarceramento no caso de Hicheur.
A polícia da Suíça, onde ele viveu e trabalhou até ser preso, o
investigou e não conseguiu encontrar nenhuma evidência contra ele.
Os chefes de Hicheur na Suíça e no Brasil são só elogios a ele e
rejeitam categoricamente que o físico seja culpado. Aurelio Bay, um
cientista suíço que foi seu chefe no Grupo de Altas Energias do EPFL, em
Lausanne, nos enviou um email ressaltando a sua crença na inocência de
seu subordinado. “A Polícia Federal da Suíça averiguou tudo sobre a vida
dele em Lausanne. Não encontraram nada. Eles acharam apenas papeis e
contas velhas, copos sujos e discos rígidos que não tinham nada,” disse
Bay. “Adlène deveria escrever um livro. O ataque é a melhor forma de
defesa”, opiniou Bay.
Foto Shobhan Saxena
Política do terrorismo
Em um dia chuvoso, mas quente, no Rio, Adlène Hicheur não esconde que
sua mãe, de 68 anos e doente, domina a sua mente. “Você não imagina o
que a minha mãe passou quando eu estava na prisão por causa de acusações
falsas e o que ela está sentindo agora que estou sendo perseguido
novamente no Brasil por algo que não fiz”, lamentou.
Hicheur está triste e desapontado, mas ele não caiu na tentação de
mergulhar no sentimentalismo. O cenário do que aconteceu em 2009 e o que
está acontecendo agora está claro em sua cabeça. De fora, a França
parece um país de primeiro mundo com uma robusta democracia e respeito
pelos direitos humanos. Mas uma pessoa que cresceu em bairros
empobrecidos e com muitos imigrantes tem uma percepção diferente do
que seja o Estado francês. Nesta parte da França invisível, direitos são
violados frequentemente, conta Hicheur. Ele acredita que foi alvo do
governo de direita de Nicolas Sarkozy, por ser um cidadão francês de
origem argelina e muçulmano.
“Logo que eu fui levado para a delegacia, o
ministro do Interior da França, Brice Hortefeux, declarou que eles
haviam ‘feito um grande avanço’. Eu o vi na delegacia. Este ministro foi
condenado por racismo. Ele estava com tanta pressa que queria me
condenar antes mesmo de me acusar formalmente”, lembra o cientista,
citando o comentário racista de Hortefeux, amigo próximo de Sarkozy,
contra um homem de origem argelina, em setembro de 2009. Em abril do ano
seguinte este ministro foi multado em €750 por um tribunal francês
devido a comentários racistas.
Em 2012, a popularidade de Sarkozy despencava. Assim, não foi
coincidência, analisa Hicheur, que seu julgamento tivesse ocorrido
apenas três semanas antes do primeiro turno das eleições presidenciais
na qual Sarkozy encarou uma dura disputa e perdeu para Francois
Hollande. “Meu julgamento acabou em apenas duas tardes, depois de me
manter na prisão por 30 meses. Esta foi a forma de Sarkozy mostrar que
havia capturado um perigoso terrorista”, disse Hicheur, que foi
condenado a cinco anos de prisão em 5 de maio, apenas um dia antes do
último turno do pleito presidencial. Logo após o veredito, seu advogado,
Baudouin, classificou o julgamento de “escandaloso”.
Hicheur diz que a matéria da revista
Época distorceu os
fatos e ignorou detalhes cruciais que indicariam a sua inocência. Em
2009, antes de ser preso por visitar “websites de conversas subversivas
islâmicas”, Hicheur estava seriamente doente, tomando medicação.
“Durante aquele período eu passei seis meses entre hospitais, médicos,
fisiologistas, reumatologistas e finalmente na casa de meus pais para me
recobrar dos problemas nas costas e no nervo ciático”, conta Hicheur,
que afirmou ter passado naquela época por um “período de turbulência”.
Hicheur diz que a revista quis apresentar os 35 e-mails e conversas
online como algo novo. “Não há nada novo nisso”, afirma ele. Em seu
julgamento a acusação apresentou isso como evidência de sua culpa, mas
Hicheur afirma que este é o elemento mais fraco do caso. Em uma sala de
bate-papo virtual lotada de participantes com pseudônimos, Hicheur
expressava livremente suas visões políticas sobre tudo o que acontecia
no mundo islâmico. Depois que a sala de bate-papo foi hackeada _
acredita ele _ por algum serviço de inteligência, Hicheur passou a
trocar email com um interlocutor chamado “Phoenix Shadow”. Segundo ele,
nenhum dos dois estava ciente da identidade real de ambos. Durante os
dois dias de julgamento em 2012, a acusação afirmou que “Phoenix shadow”
era na verdade Mustapha Debchi, um alegado integrante da Al Qaeda do
Mahgreb. Mas a acusação nunca conseguiu estabelecer a conexão entre o
pseudônimo, o número de protocolo de internet de seu computador e
Debchi, segundo Hicheur. “O nome Mustapha Debchi foi mencionado desde
que eu fui preso sem nenhuma prova de minhas ligações com ele”,
explicou.
“Então, de repente, em setembro de 2011, eles anunciaram que o
haviam capturado em fevereiro daquele ano, na Argélia, que o haviam
interrogado e que a informação que constava do arquivo era de que
tratava-se de ‘Phoenix Shadow’. “Mas Debchi não foi levado ao tribunal e
nem indiciado, mesmo estando no centro desta alegada associação comigo.
Ou seja, a culpa nunca foi estabelecida”, detalha Hicheur.
“Se ele foi
preso em fevereiro, porque eles mantiveram esta informação secreta até
setembro?”, questiona o cientista. Então, ele oferece a resposta:
“Porque em outubro de 2011 eu completaria dois anos de detenção
provisória e eles não poderiam de me manter preso por mais tempo”.
A maioria dos resultados das buscas na internet sobre Mustapha
Debchi estão ligados ao julgamento de Adlène Hicheur. “Minha
correspondência com ‘Phoenix Shadow’ foi toda em árabe, mas o que
produziram no tribunal foram trechos daqui e dali, fora do contexto e
distorcidos, todos traduzidos muito mal para o francês. Eles estavam
desesperados para me levar a julgamento e mostrar que eu era culpado”,
afirmou.
Hicheur deixou a prisão depois de ter decidido não recorrer do
veredito. “Desafiar o verefito significava ficar na prisão por mais um
ano, além do tempo do julgamento. Não há como conseguir justiça. Eu iria
apodrecer na cadeia. Eu queria voltar a ensinar e a pesquisar. Então,
quando eles me disseram que eu poderia voltar para casa, eu senti que
poderia renascer. A prisão é o túmulo dos vivos, como diz uma poesia em
árabe. Eu sobrevivi lá dentro por causa da minha educação e da minha
maturidade”, contou.
Jogo mentais
Prisão nunca é um lugar prazeroso, mas algumas delas são notórias –
historicamente – como Fresnes. Hoje, a guilhotina, que foi usada na
França até 1977, está guardada em Fresnes, a maior casa de detenção da
França. Durante a Segunda Guerra Mundial foi usada pela Gestapo. O lugar
abrigou os que lutaram pela Frente de Liberação Nacional (Argélia), nos
anos 50 e 60 , quando eles buscavam a independência da França. Foi no
andar térreo da prisão que Hicheur passou 30 meses sem ver o céu aberto.
Mas a quase falta de sol não era o maior problema. A polícia tentava
quebrá-lo emocionalmente todos os dias, conta Hicheur. “Eles me diziam
que eu nunca seria capaz de ensinar novamente e que eu seria obrigado a
vender legumes nas ruas. Eles queriam me anular”, diz. “Mas eu estava
determinado a resistir a este processo de desumanização”.
A sua determinação eram os livros que ele não apenas devorava para
manter sua sanidade, mas apresentava a outros prisioneiros. Ele discutia
os livros em uma espécie de Café Fisolófico na biblioteca da prisão,
que podia frequentar uma vez por semana.
Hicheur herdou o amor pelos livros de seu pai, um operário da
construção civil. Quando Hicheur e seu irmãos eram pequenos, o pai os
levou ao canteiro de obra para mostrar como era uma vida dura. Se os
meninos não estudassem íam acabar como ele, advertia. A educação era a
salvação, repetia o pai. “Meu pai era um homem politicamente consciente.
Apesar de ter sido um operário, ele sempre falava sobre livros, cultura
e política com a gente”, lembrou. “E graças à minha educação, eu
sobrevivi na prisão”, constatou.
O refúgio na prisão se dava através de livros dos mais variados: de
física, cultura, espiritualidade e poesia árabe. Mesmo na loucura da
cadeia, onde os prisioneiros brigavam uns com os outros por causa de um
cigarro, ele manteve sua ligação com o mundo acadêmico. “Uma de minhas
orientandas de doutorado me enviou um capítulo de sua tese para que eu
corrigisse. Eu fiquei tão feliz em corrigir. Eu vi que poderia ainda me
manter em dia com a física”, conta.
Em Fresnes ele fez amizades com outros detentos. Seu apelido entre os
prisioneiros era “Google” porque era capaz de responder a todos os
tipos de perguntas _ de neutrinos à religião. “Eles queriam me ver fora
dali”, conta Hicheur, entusiasmado, comparando sua condição com a do
Batman no filme “O Cavaleiro das Trevas Ressurge”, onde Bruce Wayne é
detido mesmo estando com um problema nas costas, mas escapa com o apoio
dos outros presos. “Eu estava na mesma condição, na cadeia, com dor nas
costas, mas contando com a torcida dos outros presos para sair”, riu.
Bruce Wayne escapou devido à sua força extraordinária, mas o que
mantem o espírito de Hicheur positivo são sua crença e suas orações.
Muçulmano praticante, ele adora falar sobre tradições islâmicas de
ensino na matemática e química durante a Era Medieval. Seu interesse
pela ciência e pelo conhecimento vem desta tradição. Ele manteve sua
mente aberta na prisão interagindo com os outros detentos, ensinando o
que podia e também aprendendo com eles. “Você deve se beneficiar da
sabedoria de onde ela vier”, afirma, citando o profeta Maomé.
Estava chovendo enquanto Hicheur falava sem parar, respondendo as
perguntas. Mas quando o sol começou a se por, ele se levantou: “Eu
preciso rezar”, diz, tirando seu tapetinho de nylon. Vai para o
escritório, desenrola o tapete no chão e faz suas orações.
O recomeço
Em maio de 2012, logo que ele saiu da prisão, Hicheur comprou um
computador, instalou alguns programas e começou a fazer ciência de novo.
Ele estava ávido para voltar a trabalhar. Logo ele voltou ao CERN como
integrante do laboratório de Lausanne e até fez uma viagem ao Brasil
para um curto período no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF).
Mas em maio de 2013, um ano após a sua libertação da prisão, ele foi
proibido de entrar na Suíça ( decisão válida até 2018) como resultado de
uma ordem administrativa da polícia daquele país, apesar de a justiça
suíça ter encerrado o caso por falta de provas. Hicheur sugere que esta
decisão foi tomada por pressão da França. “Eles queriam ter certeza de
que eu não seria capaz de trabalhar como cientista nunca mais na minha
vida. Eles sempre me falavam isso na cadeia”, lembra Hicheur, com olhar
preocupado.
Mas mesmo com esta proibição e estando no Brasil, ele continuou
colaborando com o CERN, o que faz até hoje. Ao saberem da campanha
contra ele no Brasil, seus colegas europeus mais próximos reagiram
revoltados. “Hicheur já pagou alto preço por sua correspondência online
com alguém alegadamente da Al Qaeda. Hicheur nunca cometeu, direta ou
indiretamente, qualquer ato terrorista ou criminoso. Ele cumpriu sua
sentença e estava trabalhando pacificamente no Brasil”, afirma através
de um email que nos enviou, a física italiana Monica Pepe Altarelli, do
experimento LHCb do qual ele faz parte. Ela também é vice-porta-voz do
CERN. “É admirável que o Brasil tenha oferecido ao professor Hicheur a
possibilidade de retornar à sua carreira científica, beneficiando-se,
assim, de suas elevadas qualificações como cientista e professor. O
artigo publicado pela revista Época não está baseado em fatos e é
inconsistente com a aberta tradição humanitária do Brasil”, afirma ela ,
com o respaldo de outros colegas que trabalharam de perto com ele, como
os cientistas Pierlugi Campana, do Laboratori Nazionali dell’INFN de
Frascati (Itália), e ex-porta voz do experimento LHCb, e o suíço John
Ellis, professor de Física Teórica do King’s College, em Londres,
integrante do CERN.
Com os portões do CERN fechados para Hicheur, ele começou a olhar
além da Europa para procurar trabalho.
Seus colegas o ajudaram e ele
encontrou a oportunidade de renascer no Brasil, um país que ele sempre
admirou por sua rica história, “pela política externa independente” e
pela cultura de ativismo da sociedade civil. Depois de obter o visto do
consulado brasileiro em Genebra, processo que demorou mais de 30 dias,
devido a todo o processo de verificação de seu caso, ele desembarcou
aqui em maio de 2013 e começou a trabalhar no CBPF. A partir de junho de
2014, passou a trabalhar na UFRJ.
Apesar de ter crescido na França, Hicheur manteve os laços com sua
cidade, Setif, na Argélia, que sua família costumava visitar sempre.
Acostumado com as montanhas, o calor tropical e as praias do Rio são um
choque térmico, mas ele se adaptou. Depois de algumas semanas vivendo em
um apartamento em Copacabana, Hicheur mudou-se para uma rua da Tijuca e
começou a descobrir a cidade. “Eu adoro andar na Floresta da Tijuca. É
tão bom ser parte da natureza” diz ele, que gosta também de montanhismo.
Devido à sua limitação no domínio do português, no início ele só
pesquisava. Mas no segundo semestre de trabalho na UFRJ já havia
começado a dar aulas, no nível da graduação, sobre sustentabilidade das
energias renováveis e física experimental. Seus colegas da UFRJ aplaudem
a contribuição que o professor Hicheur tem dado à ciência no Brasil e
ao ensino.
O professor do Instituto de Física, Leandro Salazar de Paula,
a quem Hicheur é subordinado no grupo de pesquisa no qual trabalha,
define: “Ele é um excelente pesquisador, simplesmente brilhante”.
Segundo ele, se Adlène Hicheur deixar o país “será uma grande perda para
o nosso programa de pesquisa”. O professor argelino atua em várias
linhas de pesquisa. “Somos nove pesquisadores e estamos perdendo o mais
atuante”, lamentou Leandro de Paula.
O Segundo Julgamento de Adlène Hicheur
Apesar de o contrato de Hicheur valer até junho, ele decidiu deixar o
país, desapontado com tudo o que aconteceu e com a falta de apoio do
governo. Sua paz no Brasil foi abalada em outubro do ano passado quando
ele foi abordado por policiais à paisana em uma rua perto de sua casa.
“Eu entrei em pânico. Você pode pensar que eu sou paranoico mas por
causa da minha experiência terrível na França eu não sabia quem eram
estes homens e o que eles queriam de mim”, conta. Eram da Polícia
Federal. Eles queriam conversar com Hicheur sobre um indicente na Masjid
e Nur, uma mesquita da Tijuca frequentada por ele.
Em janeiro de 2015, poucos dias após o ataque terrorista à sede da
revista Charlie Hebdo, em Paris, uma equipe da CNN da Espanha foi à
mesquita para fazer uma filmagem. Coincidentemente _ ou não _ , enquanto
a equipe filmava, um homem que nunca frequentou o local apareceu diante
das câmeras e tirou a sua camiseta para revelar uma bandeira do grupo
terrorista Estado Islâmico, impressa em uma outra camiseta que havia por
debaixo. Isso, segundo a polícia contou para ele, fez com que se
investigasse todos os frequentadores da mesquita, inclusive o próprio
Hicheur. “Eu não estava nem no Brasil naquele dia. Estava na Europa
passando férias com a minha família”, lembra.
“Não há nada contra mim
por parte da polícia brasileira”, assegura. De fato, Hicheur tem em mãos
um certificado de antecedentes criminais datado de 14 de janeiro: “A
Polícia Federal certifica, após pesquisa no sistema nacional de
investigação criminal, que até a data de hoje (14 de janeiro) não há
registro de antecedentes criminais em nome de Adlène Hicheur”, diz o
atestado ao qual tivemos acesso.
Após a divulgação da reportagem da
Época, o ministro da
Educação, Aloizio Mercadante, afirmou que uma pessoa “condenada por
terrorismo” deveria ter sido impedida de entrar no país. O ministro
sinalizou ainda que o governo iria averiguar seu status legal no país.
Os acadêmicos mais próximos de Hicheur criticaram esta declaração,
mas isso fez com que Hicheur decidisse desistir da oportunidade que o
Brasil havia oferecido a ele para reconstruir a sua vida. “Não me
deixaram opção”, disse. Ele contou que está desapontado e sentindo-se
traído. “Eu cheguei aqui legalmente. Vim para trabalhar e contribuí com
a física aqui . Agora sou forçado a deixar o país”, lamentou. “O que
fizeram com ele no Brasil é um linchamento inaceitável. Ele passou mais
de um ano ocupando um escritório do lado do meu. Conversei muito com ele
sobre a prisão, sobre política no Oriente Médio e outros temas. Ele
sempre criticou grupos terroristas, inclusive o Estado Islâmico. Aí uma
revista semanal veio com uma matéria que prefiro nem usar adjetivo....e
ele viu seu tremendo esforço para reconstruir sua vida científica
desabar.
A isso adiciona-se uma declaração de um ministro e ele passa a
se sentir ameaçado. Ele não quer ser espancado e humilhado novamente.
Ele entrou pela porta da frente e quer sair pela porta da frente”, disse
Ronald Shellard, diretor do CBPF. “Ele é um muçulmano bastante fiel,
com um senso muito agudo de honra, respeito e dignidade, completou. “Se o
Adlène for embora, ou pior, for expulso, isso significará a derrota
definitiva de tudo por que nossa geração lutou durante a ditadura
militar, de todos os princípios de direitos humanos”, opinou Shellard.
Sobre o caso francês, já encerrado, Shellard diz que pelo o que sabe
“ele foi condenado por seus pensamentos que estão em um disco rígido.
Isso me faz lembrar o livro ‘1984’, de George Orwell”, concluiu.
Ignacio Bediaga, chefe do grupo LHCb no CBPF, ex-chefe de Hicheur
nesta instituição, antes de ele trabalhar na UFRJ, diz que o que
aconteceu com o físico argelino foi um linchamento. “Adlène foi
submetido a um linchamento pela revista
Época e pela declaração
do ministro. Adlène foi contratado pela UFRJ, ou seja, pelo governo
brasileiro. Agora dizem que ele não é bem-vindo. Isso é preconceito
porque ele é um cientista muçulmano”, criticou Bediaga.
Hicheur ainda não havia decidido seu destino até hoje, dia 18 de
janeiro. Ele parou de lecionar na UFRJ porque o assédio da mídia não
permitiria mais essa função. Mas ele continua a desempenhar suas tarefas
de pesquisador, e tem dois artigos científicos para tocar. Mesmo sob
este ataque, hoje ele está apresentando a análise de dados para um
destes artigos, sobre uma partícula subatômica rara e pouco conhecida
chamada “Bc”. Esta apresentação foi feita em vídeo conferência para 700
cientistas internacionais que participam de seu grupo de experimento e
que vão corroborar o artigo assinado por ele.
“Estou sendo julgado no Brasil por algo que já me julgaram na
França”, protestou Hicheur, afirmando tratar-se de um caso de
islamofobia. “Meu caso deve ser visto dentro do contexto da França. Se
você tirar o Islã da equação, não há problema. Eu sou apenas um caso
entre muitas pessoas perseguidas por serem muçulmanas”, lamentou,
acrecestando que não esperava que isso fosse acontecer no Brasil, um
país que ele sempre admirou.
‘Eu estou a 10 mil quilômetros de Paris, mas ainda assim estou ao
alcance deles. Eles estão me quebrando de novo. Onde posso ir?”,
pergunta, refletindo sobre onde poderá tentar reconstituir sua vida
mais uma vez.
Ele fica em silêncio por alguns minutos, parecendo pensativo. “Se
você está vivendo bem, eles não aceitam. Eles haviam me avisado que eu
não ía voltar a fazer ciência. O Brasil me deu este espaço. Pelo menos
eu pude provar que consegui voltar à ciência”, diz Hicheurs, andando
pela sala, com um sorriso melancólico no rosto.
Florência Costa é jornalista freelancer, ex-correpondente na Rússia e na Índia e autora do livro “Os Indianos” (Editora Contexto)
Shobhan Saxena é jornalista indiano, baseado em São
Paulo, e contribui para o website internacional “The Wire”, para o
jornal “Times of India” e para a BBC em Hindi.
http://www.jornalggn.com.br/noticia/adlene-hicheur-eu-estou-sendo-cacado-pela-midia-por-um-crime-que-nao-cometi