domingo, 12 de fevereiro de 2012

O homem que processou o Brasil


O LITIGANTE Wolf Gruenberg, fotografado na sede do Banco de la República Oriental del Uruguay, em São Paulo. “Sou um perseguido, e meus inimigos usam o Estado brasileiro para me atingir”, diz ele (Foto: Camila Fontana/ÉPOCA)
Capítulo 1
UM CASAL NA PRISÃO

Sentado na cafeteria de um shopping center no bairro paulistano de Higienópolis, Wolf Gruenberg narra sua história. O terno e as rugas de seus 63 anos lhe conferem um ar de respeitabilidade. Ele entremeia seu relato com um sem-número de documentos que vai sacando de uma pasta de couro preta. Todo tipo de artefato jurídico sai lá de dentro: há certidões, sentenças, recursos, registros, agravos de instrumento, exceções de suspeição e um emaranhado de fios que vão se cruzando nos pontos e nós de um enredo que, por seu relato, daria um thriller ao estilo dos best-sellers de autores como John Grisham ou Scott Turow.
Wolf nasceu em 1948, pouco depois da Segunda Guerra Mundial, no campo de refugiados de Wolfrathausen, onde seus pais se conheceram. Quando a guerra acabou, era inviável para judeus como eles permanecer na Alemanha. O casal Gruenberg e o filho de 3 anos, nascido apátrida, cruzaram então o Atlântico para se estabelecer na Bolívia, depois no Brasil. Wolf viveu em Corumbá, no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Porto Alegre. Aos 18 anos, recebeu a cidadania brasileira. Formou-se em Direito e, adulto, tornou-se um empresário dedicado a recuperar companhias em processo falimentar. Às vésperas dos 60 anos, foi acometido de um incomum e virulento câncer sublingual, que quase lhe tirou a voz e a vida. Quando foi diagnosticado, o tumor crescia a cada 26 horas. Havia duas saídas: uma cirurgia radical ou uma combinação agressiva de sessões de quimioterapia e radioterapia. A opção escolhida foi a segunda. A doença regredia de acordo com os planos médicos, até que a vida de Wolf sofreu uma súbita reviravolta.

Às 6 horas da manhã do dia 11 de julho de 2008, cerca de 30 policiais federais armados de submetralhadoras arrombaram o portão de sua casa em Porto Alegre. Prenderam Wolf e sua mulher, Betty. Até então, Wolf apenas suspeitava ser o foco de investigações policiais. Desconhecia detalhes das pilhas de processos resultantes de uma investigação de mais de um ano em sua vida, suas contas, seus negócios, suas relações pessoais. Ele era monitorado pela Polícia Federal (PF) por meio de escutas telefônicas, telemáticas e ambientais. Passara de empresário renomado, com bom trânsito na alta sociedade, a principal alvo da operação da Polícia Federal batizada de Mãos Dadas. Nas páginas dos jornais que noticiaram a operação, Wolf Gruenberg foi qualificado como chefe de uma quadrilha que arquitetou um esquema bilionário de fraudes contra a União.
Wolf afirma ter sido privado, ao longo dos 150 dias que passou na prisão, da fase final de seu tratamento contra o câncer. Ainda assim, diz ele, suas agruras no cárcere foram pequenas em comparação com o suplício da mulher. Quando foi presa, Betty Gruenberg acabara de sair de uma cirurgia para redução nos seios. Nem sequer tinha retirado os pontos da delicada operação. Ela foi então instalada pelas autoridades numa cela da Penitenciária Feminina Madre Pelletier, em Porto Alegre. Lá, contraiu uma infecção que deixou seus seios purulentos e quase se transformou em septicemia. Transferida para o melhor hospital de Porto Alegre, o Moinhos de Vento, Betty quase perdeu as mamas. Na UTI do hospital, foi mantida algemada pelos pés à maca em que convalescia. “O Estado quase a matou. Eles foram extremamente cruéis com ela”, afirma Wolf. Ele retira então da pasta de couro fotografias que mostram as lesões da mulher e os boletins médicos que relatavam a gravidade de seu quadro. Quando saiu do hospital, Betty foi colocada na carceragem da Polícia Federal, onde, de acordo com os relatos de Wolf, dividiu uma cela com homens.
As arbitrariedades de que Wolf se julga vítima não cessaram aí. Conversas dele com seus advogados foram grampeadas – prática repudiada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Câmeras de vídeo foram instaladas em quartos de hotéis em que o casal Gruenberg se hospedou. Em 2009, a casa de Wolf em Punta del Este, no Uruguai, foi vasculhada pela polícia uruguaia, de posse de um mandado de busca e apreensão oriundo do Judiciário brasileiro. Documentos, computadores, chaves dos carros e objetos da família foram apreendidos. Wolf deu por falta até de uma caneta da marca Mont Blanc que seu filho mais novo ganhara por ocasião de seu bar mitzvah, cerimônia judaica que marca a entrada do homem na vida adulta, aos 13 anos. Os objetos nunca mais foram vistos pela família Gruenberg. Tampouco a Polícia Federal brasileira os recebeu. Espera por eles há quase três anos para prosseguir com as investigações. A polícia uruguaia não soube explicar onde foram parar os pertences dos Gruenbergs.

Depois de ser libertado, graças a um habeas corpus, Wolf começou uma cruzada a que tem se dedicado nos últimos quatro anos. Nela, tem investido tempo e dinheiro. Contratou assessores de imprensa e alguns dos mais badalados advogados do Brasil, como Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, Luiz Roberto Barroso, Carlos Eduardo Caputo Bastos e o ex-deputado federal e delegado da Polícia Federal Marcelo Itagiba. Wolf também buscou o apoio de ONGs internacionais, como a Justiça Global. A pedido dele, a Justiça Global remeteu um relatório sobre as condições de sua prisão e de sua mulher para a análise da Relatoria Especial da Organização das Nações Unidas contra tortura. “Temos muitas demandas de violações de direitos humanos em cadeias brasileiras. Em geral, as vítimas são pobres. No caso de Wolf, não tivemos tempo de averiguar tudo, mas ele trouxe fotos e documentação para comprovar o que nos disse”, afirma Sandra Carvalho, da Justiça Global.
Em mais de oito horas de conversa, em dois encontros com ÉPOCA, Wolf procurou relatar seu caso incomum. “Sou um perseguido, e meus inimigos usam o Estado brasileiro para me atingir”, diz. Essa é a explicação, de acordo com sua versão, para a extensa lista de crimes que lhe imputam e que enumera com sua voz mansa, enquanto alisa a barba espessa e grisalha: formação de quadrilha, estelionato judicial, falsidade ideológica, evasão de divisas, lavagem de dinheiro, denunciação caluniosa. “Nem na época da ditadura uma coisa dessas aconteceria.” Ri, nervosamente.

Capítulo 2 
GRUENBERG X UNIÃO
A contenda entre Wolf e as autoridades é uma história longa e complicada, que se estende por quase todos os desvãos do labiríntico sistema Judiciário brasileiro. Seu início data de 1977. Naquela ocasião, a família Gruenberg tocava a AC Indústria e Comércio, Importação e Exportação S.A., uma indústria têxtil em São Paulo. Um dos negócios da AC era vender mercadorias a uma empresa no Paraguai. A operação de exportação era intermediada pela Companhia Brasileira de Entrepostos Comerciais, ou Cobec, uma empresa de capital misto, da qual a União era acionista. A operação comercial, segundo Wolf, teve um desfecho desastroso. A Cobec comprou, mas não pagou. A família Gruenberg vendeu, mas não levou. Restou a Wolf apenas uma coleção de duplicatas não pagas no valor, na moeda de então, de Cr$ 15 milhões. Isso é o equivalente, em valores atualizados, a aproximadamente R$ 2,7 milhões, de acordo com a evolução do Índice de Preços ao Consumidor de São Paulo (IPC-SP), da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe).
Depois de mais de um ano de tentativas para receber o crédito, Wolf recorreu à Justiça pela primeira vez em 1978. Moveu dois processos contra a Cobec. Um para receber o montante que a empresa paraguaia pagaria por suas mercadorias. E outro para obter reparação pelo que a família deixara de ganhar em lucros futuros por causa do calote. Poucos meses depois de sofrê-lo, a empresa da família Gruenberg foi à falência. Wolf ganhou o primeiro processo no final da década de 1980. Na ocasião, a Cobec, então controlada pelo Banco do Brasil, já fora rebatizada de Infaz. A Justiça fixou o valor a ser recebido por Wolf em US$ 1,06 milhão. Esse montante, segundo as contas da Infaz, incluía o valor corrigido das mercadorias e as perdas futuras da AC. E somava também uma multa estipulada pela Justiça, que considerou a Infaz culpada de ter tentado postergar a sentença usando argumentos desleais ou, no jargão jurídico, de ter praticado litigância de má-fé. A família Gruenberg discordou. De acordo com Wolf, o que lhes foi pago estava aquém do justo. “Além disso, a Infaz não dispunha de recursos para liquidar a dívida e nos pagou apenas 10% do que a Justiça determinou”, diz ele.
A trama se embaralhou ainda mais quando Wolf insistiu no segundo processo contra a Cobec, para receber indenização por perdas e danos. Nesse ponto da narrativa, sua contida indignação começa a aumentar. Mas sua voz rouca jamais sobe de tom. Sem precisar consultar nenhuma anotação, cita nomes e datas com precisão. Quando questionado sobre algum trecho da história, retoma a explicação sem cair em contradição. Chega a repetir frases inteiras, palavra por palavra, em conversas distintas, quase como se tivesse decorado um texto. Na Justiça, a Infaz acusou Wolf de cobrar o pagamento de um prejuízo pelo qual ele já fora ressarcido no primeiro processo. A disputa se deu no âmbito cível da Justiça de São Paulo. Em 30 de outubro de 1991, 14 anos depois do calote, Wolf obteve outra decisão favorável nesse segundo processo. O juiz Aclibes Burgarelli decidiu que uma perícia contábil deveria ser realizada para fixar o valor da indenização a ser paga pela Infaz a Wolf. O perito contratado pela Infaz calculou-o em US$ 10 milhões. O perito de Wolf estimou-o em US$ 58 milhões. O perito nomeado pelo juiz Aclibes Burgarelli estipulou o valor de US$ 41 milhões.
Bastaria superar o imbróglio contábil para que esse capítulo da vida de Wolf se encerrasse. A essa altura, já fazia 17 anos que ele levara o calote. No entanto, antes que o juiz desse a sentença final sobre o valor da indenização, em 10 de junho de 1994, houve mais uma reviravolta na já rocambolesca história. A Infaz foi absorvida pela União. Daí em diante, quem se sentaria no banco dos réus da ação movida por Wolf era o próprio Estado brasileiro – e não mais uma empresa de capital misto. A briga começava a ganhar contornos ainda mais kafkianos. A discussão, que até então seguia na Justiça de São Paulo, teve de ser reaberta em âmbito federal, a instância jurídica adequada para processos que envolvem o Estado brasileiro. Por conveniência de Wolf, que morava em Porto Alegre, o processo foi transferido para a Primeira Vara Cível Federal na capital gaúcha.
Apenas em 1999, 22 anos depois do calote, a União assumiu efetivamente seu papel de parte no processo. A Advocacia-Geral da União (AGU) acusou Wolf de tentar cobrar uma dívida que a Infaz já pagara, ato chamado, no jargão jurídico, de dúplice cobrança. A AGU também pediu a entrada do Ministério Público Federal no caso, a anulação do processo e novas perícias contábeis. A tramitação foi morosa, a despeito da disposição do juiz federal Alexandre Lippel em julgar com celeridade. “O processo já tramitava havia muitos anos, e o doutor Wolf sempre vinha me pedir rapidez”, diz Lippel. “Queria que ele saísse do meu pé.” Só em 2004, 27 anos depois do calote e 13 anos depois da primeira decisão favorável à indenização, Lippel pronunciou sua decisão. Fixou a indenização devida a Wolf em R$ 754 milhões, ou mais de R$ 1 bilhão em valores corrigidos pela inflação.
Em dezembro de 2011, o juiz Lippel demonstrou perplexidade ao ser questionado sobre sua decisão de sete anos atrás. Seus olhos azuis ficaram perdidos. Lippel disse que se baseou nos três laudos contábeis que constavam do processo que corria na Justiça de São Paulo. Sua decisão levou em conta correções monetárias a partir da variação do dólar e de uma expectativa de lucro calculada em quase 20% ao ano para a empresa de Wolf. “É um valor enorme, me surpreendeu, mas, pelo tempo que a ação corria, imaginei que fosse isso mesmo”, disse Lippel. “Dei até um prazo dilatado para a União se manifestar.” Ao longo das investigações da Operação Mãos Dadas, da PF, Lippel foi chamado a depor na ação criminal contra Wolf. Em seu depoimento, afirmou que nunca foi pressionado a decidir em favor do empresário e que olhou o processo “com capricho”. “Estava convencido dos critérios que usei para julgar”, disse a ÉPOCA. “Mas fica sempre a dúvida, eu não sei (se fui enganado). A gente atua na boa-fé, confiando na lealdade das pessoas. Dizem que eu teria sido manipulado. Até hoje, fica essa desconfiança.”
A União apelou contra a decisão de Lippel e argumentou que devia apenas R$ 47,6 milhões. Mesmo com uma decisão que lhe atribuía um crédito de quase R$ 800 milhões, Wolf também apelou para reclamar um valor maior. O processo subiu para o Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região, com sede em Porto Alegre. Foi nesse mesmo período que o Ministério Público Federal e a Polícia Federal iniciaram uma investigação contra Wolf por suspeita de “estelionato judicial”, uma tentativa de ludibriar a Justiça para lesar a União. De acordo com a investigação, longe de ser vítima do Estado brasileiro, Wolf era o responsável por uma criminosa alquimia que transformou uma dívida de alguns milhares de cruzeiros – de que ele era credor no final da década de 1970 – numa conta de mais de R$ 1 bilhão a ser paga pela União. Segundo a PF e o MPF, Wolf manipulou fatos, provas e juízes para conseguir essa façanha.

Capítulo 3 
A INVESTIGAÇÃO POLICIAL
O resumo das atividades criminosas de que Wolf foi acusado consta dos volumes de processos que tramitam em caráter sigiloso na Justiça. Eles foram elaborados, sobretudo, ao longo de mais de um ano de trabalho exclusivo de um único delegado e dois agentes da Polícia Federal, no Rio Grande do Sul. “Como pode uma empresa que tinha patrimônio negativo, em 1977, de Cr$ 6.976.510,35 e faliu ser capaz de gerar uma indenização de R$ 1 bilhão?”, diz o delegado Luciano Flores de Lima, que comandou as investigações da PF. Atualizado pelo IPC da Fipe, os Cr$ 6 milhões de patrimônio negativo da empresa AC, da família Gruenberg, equivaleriam hoje a R$ 1,3 milhão.
Em 2006, quando a indenização a Wolf em R$ 754 milhões foi confirmada, em segunda instância, pelo desembargador Edgar Lippmann, do TRF da 4a Região, a PF reforçou sua investigação contra ele. Na época, surgiram denúncias de que Lippmann vendera uma sentença favorável à reabertura de uma casa de bingos. Por causa dessas denúncias, Lippmann , desde 2008, é investigado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Ele responde a um processo administrativo disciplinar, que deverá ser julgado até março. Pelas mesmas acusações, Lippmann enfrenta um processo criminal no Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Os investigadores da PF sugerem que Lippmann pode ter sido permeável às pressões de Wolf. O empresário nega. “Lippmann não nos ajudou em nada”, diz ele. No vaivém de recursos e liminares relativos aos processos, dois juízes deram decisões contrárias aos interesses de Wolf. Os dois foram denunciados por ele como parciais. Para a PF e o MPF, foi uma tentativa de Wolf para desacreditá-los e retirá-los do caso. Pelas ações contra os juízes, Wolf responde a processo por denunciação caluniosa. “Dizem que enganei juízes, mas não dizem a quem enganei”, afirma Wolf. “Ou sou um gênio, mais inteligente que Albert Einstein, ou os mais de 40 juízes que atuaram no caso são todos uns incapacitados.”
Trinta e um anos depois do calote, em abril de 2008, a então ministra Ellen Gracie, do Supremo Tribunal Federal (STF), reviu todas as decisões anteriores que mandaram a União pagar indenização a Wolf. Acatando um pedido da AGU, ela suspendeu o pagamento. Na ocasião, Wolf já recebera quase R$ 11 milhões dos R$ 754 milhões que a União lhe devia. Boa parte do dinheiro fora enviada ao Uruguai, onde Wolf tem casa em Punta del Este. De acordo com a PF e o MPF, a transferência do dinheiro era um ardil para evitar que ele fosse confiscado para o pagamento de dívidas trabalhistas das empresas da família Gruenberg. Wolf foi então acusado de evasão de divisas. Ele chama essa acusação de “balela”. Diz que transferiu seu dinheiro por meio do Banco Central e, por isso mesmo, as autoridades brasileiras sabiam onde ele estava. E que, como tinha negócios no Uruguai, resolveu manter seus recursos por perto.
A investigação da PF contra Wolf colheu mais elementos do que chamava de “conduta criminosa” do empresário. Monitorado por telefone, e-mail e escutas ambientais, Wolf foi flagrado, segundo os investigadores, tentando constranger autoridades e influenciar o curso de seus processos. Num telefonema a sua mulher, Betty, Wolf, de acordo com as investigações, dissera estar disposto a gastar “de R$ 10 a R$ 15 milhões” em subornos a servidores federais, entre eles o então chefe da AGU, José Dias Toffoli, hoje ministro do STF. Em outro diálogo, com dois advogados de Brasília, disse, de acordo com as gravações: “Contratem juristas de renome, para atuar detrás das cortinas, no STF e no STJ”. As escutas serviram de justificativa para a ação da Operação Mãos Dadas que prendeu Wolf, sua mulher e alguns de seus funcionários, em 11 de julho de 2008. “Isso é mentira. Tenho um amigo em comum com o Toffoli, mas não teria cabimento abordá-lo para falar do meu caso”, diz Wolf.
Responsável por decretar as prisões, o juiz federal criminal de Porto Alegre João Paulo Baltazar nega qualquer tipo de excesso ou maus-tratos em relação aos réus. “Houve várias perícias na senhora Betty. Ela foi internada no hospital particular que escolheu. Na minha interpretação, não houve violação de nenhum direito”, afirma Baltazar. Segundo ele, Betty não teve contatos com nenhum homem em sua cela, porque estava numa solitária. Reconhece que, no local, não havia vaso sanitário, mas afirma que essa é uma determinação legal para evitar que os detentos tenham qualquer instrumento capaz de facilitar um suicídio. E diz que as algemas foram necessárias no período no hospital, porque Betty ameaçava fugir. Recentemente, Wolf tentou afastá-lo do caso por meio de um instrumento jurídico conhecido como exceção de suspeição. A ação de Wolf contra Baltazar, juiz especializado em lavagem criminal e ex-auxiliar do CNJ, foi rejeitada pelo TRF da 4ª Região. Baltazar só concordou em receber a reportagem de ÉPOCA para falar em tese, e não sobre o caso específico de Wolf.
A prisão pela PF e as denúncias feitas pelo MPF transtornaram completamente a vida da família Gruenberg. Mais de três anos depois da Operação Mãos Dadas, Wolf continua empenhado em receber a indenização da União pela qual briga há 33 anos. O pagamento da dívida continua suspenso. A essa batalha judicial, acrescentou outra: move dois processos contra a União por tortura e tenta derrubar as últimas acusações que subsistem contra ele na Justiça: falsidade ideológica, formação de quadrilha e denunciação caluniosa. Os crimes de evasão de divisas, estelionato judicial e lavagem de dinheiro foram considerados inexistentes ou improcedentes. Os processos relativos a eles foram trancados na primeira e na segunda instâncias e no STJ. Os remanescentes devem ser julgados dentro de seis meses pelo juiz Baltazar, cujas decisões têm sido desfavoráveis a Wolf. Curiosamente, é o próprio Baltazar quem resume a insólita história de Wolf, um homem que passou mais da metade de sua vida envolvido em disputas nos tribunais brasileiros: “A Justiça brasileira é disfuncional e sem fim”.

Como chegamos a este ponto?


Às vésperas do Carnaval, estabeleceu-se um ambiente de anarquia nos quartéis das polícias militares, mais adequado a blocos que invadem as ruas do que a corporações onde o respeito à lei, à ordem e à hierarquia deve ser a norma. Até o fechamento desta edição, greves de policiais militares estavam em curso na Bahia e no Rio de Janeiro. Também havia sinais de que o movimento poderia se alastrar para Alagoas, Distrito Federal e Espírito Santo. Em 2010 e no começo do ano, já houvera paralisações de PMs no Maranhão, no Ceará, em Rondônia e no Piauí. Agora, foi necessário chamar o Exército porque a baderna transbordou dos quartéis. Em Salvador, o número de homicídios triplicou em uma semana.
Repete-se, assim, um cenário que tem ocorrido desde, pelo menos, 1997. Naquele ano, uma greve selvagem começou em Minas Gerais, cuja polícia era vista como modelo, e espraiou-se por vários Estados. O texto da Constituição é cristalino na proibição à “sindicalização” e à “greve” entre os militares. Por que então esse tipo de movimento – que só pode ser qualificado como motim – vem se repetindo com frequência preocupante?
Há três motivos centrais para isso. O primeiro é o comportamento delinquente de alguns policiais, constatado agora na Bahia. Palavras de incitação ao vandalismo foram flagradas na boca do líder do movimento da PM baiana, Marco Prisco (leia mais sobre ele). Policiais sequestraram e incendiaram ônibus, interromperam o trânsito e aterrorizaram a população. A Polícia Federal descobriu a articulação de vários grevistas para estender o movimento ao Estado do Rio de Janeiro e, felizmente, líderes foram presos antes que o terror se espalhasse mais.
TERRORISMO Policiais militares exibem armas em salvador depois de sequestrar ônibus e fechar avenida. A delinquência dos PMs  não pode ficar impune (Foto: Almiro Lopes/Correio-BA)

O segundo motivo é a politicagem em torno da questão. A presidente Dilma Rousseff acertou ao dizer que não deve haver anistia para “crimes contra a pessoa e a ordem pública”. Mas o governo Lula, de que ela fez parte, sancionou uma anistia a policiais militares e bombeiros insubordinados. O próprio ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegou a declarar, nas greves de 2001: “A Polícia Militar pode fazer greve. Todas as categorias de trabalhadores consideradas atividades essenciais só podem ser proibidas de fazer greve se tiverem também salário essencial”. Trata-se de um absurdo evidente – e Lula está longe de ter sido o único a explorar politicamente as greves policiais (leia mais sobre isso). A principal consequência do desleixo dos políticos é a falta de uma lei para regular as greves no setor público, quase 24 anos depois da promulgação da Constituição.
O terceiro motivo, que se soma à delinquência policial e à irresponsabilidade eleitoreira, é a leniência e a negligência com que os políticos brasileiros têm tratado a questão da segurança pública. Sucessivos governos foram incapazes de formular uma política nacional de segurança, que articulasse a ação da União e dos Estados – da qual as PMs e as polícias civis seriam importantes braços operacionais. 
No vácuo de uma política nacional, vicejam as propostas populistas e irrealistas, como a Proposta de Emenda Constitucional 300, a PEC, que tem galvanizado os grevistas por propor um piso salarial único para as PMs em todos os Estados (leia mais sobre isso). Todos estão de acordo que oficiais, sargentos, cabos e soldados devem ter uma remuneração adequada a uma profissão que implica cotidianamente riscos à vida. Mas a PEC 300, se aprovada, não seria a solução. Ela trata desiguais como iguais e arrebentaria as finanças estaduais.
As PMs são instituições com raízes na história do Brasil. Para funcionar bem, devem estar submetidas ao controle democrático da sociedade civil. Elas estão por trás de avanços recentes importantes na área de segurança pública, como as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), no Rio de Janeiro, cujo sucesso se tornou motivo de celebração. Seria uma pena que tais iniciativas fossem contaminadas por policiais que apelam para a

deliquência para que suas reivindicações sejam ouvidas. Para isolar esses maus policiais, é preciso que as autoridades ajam com severidade. Assim, não haverá espaço nos quartéis para a anarquia. Nos dias de Carnaval, a algazarra deve se limitar apenas ao ambiente alegre das escolas de samba e dos blocos de rua

Bombeiro preso no Rio está em greve de fome



Bombeiro preso no Rio está em greve de fomeFoto: Guto Maia/Agência Estado

BENEVENUTO DACIOLO, PRESO DESDE QUARTA-FEIRA NO BANGU 1, TERIA RECUSADO AS REFEIÇÕES SERVIDAS NO PRESÍDIO DE SEGURANÇA MÁXIMA

Por Agência Estado
12 de Fevereiro de 2012 às 22:19Agência Estado
O cabo bombeiro Benevenuto Daciolo, preso desde quarta-feira, está em greve de fome, informou a mulher dele, a dona de casa Cristiane Daciolo. Ela contou que foi avisada pelo defensor público que o representa. Desde que chegou a Bangu 1, Daciolo teria recusado as refeições servidas no presídio de segurança máxima. Cristiane disse não saber como está a saúde do marido, porque teve apenas um encontro com ele, de 15 minutos, na quinta-feira.
Cristiane refutou as acusações de que o movimento de greve está sendo manipulado politicamente. "Ele (Daciolo) não está envolvido com política, não está filiado a partido algum. Partidos políticos apoiam o movimento, mas o movimento não está com nenhum partido", afirmou.
Sobre as declarações de Daciolo, de que recusaria qualquer aumento oferecido pelo governo e que os bombeiros lutariam pela saída de Sérgio Cabral, ela disse ainda que o marido foi motivado pelo "calor da hora". "Você já tropeçou e falou um palavrão? Foi a mesma coisa. Era uma conversa fechada entre bombeiros. Ele se exaltou".
A afirmação polêmica, que alimenta os rumores de que a greve atenderia a interesses políticos de adversários de Cabral, foi feita numa reunião em setembro de 2011. As imagens foram postadas no blog SOS Bombeiros e reproduzidas ontem pela Rede Globo.
Na ocasião, o movimento pleiteava o piso de R$ 2.000 - agora, a exigência é de R$ 3.500. "Se amanhã o governador falar: não dá R$ 2 mil para eles não, dá R$ 4 mil. O que nós vamos dizer? Fora Cabral! Fora, Cabral!", disse Daciolo na ocasião.
Para a deputada Janira Rocha, esse tipo de manifestação demonstra a "espontaneidade do movimento". "Se existisse articulação política, não haveria manifestação em Copacabana no momento de refluxo do movimento nem palavra de ordem como "Fora, Cabral". Isso demonstra o nível de tensão com o governo, que naquele momento não os recebia".
Além de Janira, esteve em Copacabana o deputado estadual Paulo Ramos (PDT), único a votar contra a mensagem do governo que reajustou os bombeiros, por entender que a proposta não atendia às reivindicações da categoria. Com o aumento, o piso passou de 1.277,13 em janeiro para R$1.669,33. Com a gratificação e o vale-transporte, esse valor vai para R$ 2.119,33.

Delfim e o retrato de um homem que se reinventou



Delfim e o retrato de um homem que se reinventouFoto: Divulgação

O MELHOR TEXTO PUBLICADO NO FIM DE SEMANA: A ENTREVISTA DE CLAUDIA SAFATLE COM DELFIM NETTO, NO VALOR ECONÔMICO, ONDE O EX-CZAR DA ECONOMIA SE ABRE PELA PRIMEIRA VEZ

12 de Fevereiro de 2012 às 19:39
247 – Leia, abaixo, o texto para a revista de fim de semana do jornal Valor Econômico, produzido pela jornalista Claudia Safatle, com o economista Delfim Netto:
Unanimidade ele nunca foi. Mas é impossível ser indiferente a esse personagem que desde 1967 participa ativamente da vida econômica e política do país.
Antônio Delfim Netto, 84 anos, é um homem que se reinventou. Foi ministro nos governos dos generais Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici e João Baptista Figueiredo e é um dos principais conselheiros dos governos da era PT.
Inimigos ele afirma que não tem.
"Nunca tive nenhum. Os economistas com quem trabalhei continuam grandes amigos. Tem pessoas com quem eu tenho outra relação, mas não de inimizade. E há alguns que pretendem que eu seja inimigo. Mas eu não..." Críticos, sim.
Ele minimiza: "São divergências no campo profissional".
Discretíssimo na vida pessoal, Delfim escondeu os 18 dias de coma e os 60 dias que passou internado no Incor (SP), há um ano e meio, com embolia pulmonar e um problema cardíaco que lhe rendeu dois 'stents' e quatro meses de ausência de suas atividades cotidianas.
"Tenho uma grande confiança na dialética entre a urna e o mercado. [Se] a urna exagera nos benefícios, o mercado vem e pune. [Se] o mercado exagera, vem a urna e pune"
"Foi um negócio terrível!", diz. Do coma, brinca: "Não vi o tal túnel com a luz branca. Foi uma decepção!".
Este "À Mesa com o Valor" começa por volta das 11 horas no escritório do ex-ministro e se estende, almoço adentro, até as 14h30 na cantina Roma, na rua Maranhão, em Higienópolis. Delfim criou a Consultoria Ideias quando saiu do governo, em março de 1985.
É uma agradável casa de dois andares, próxima ao estádio do Pacaembu, de decoração espartana. Nas paredes da sala onde trabalha há uma coleção de caricaturas suas, publicadas nos jornais quando era ministro. Os cartunistas costumavam chamá-lo de "O Gordo".
Totalmente avesso a exercícios físicos, Delfim diz que, após a doença, recebeu dos médicos a recomendação para fazer dieta e ginástica, a mesma orientação que havia recebido nos anos 60 do século passado para tratar de uma gota que o acompanha desde os 33 anos. Até então, tudo que Delfim havia feito fora na infância. "Quando menino, eu remava no rio Tietê", conta.
Em 1967, já ministro da Fazenda, ele até que tentou voltar a remar, por prescrição médica. Comprou o equipamento e o levou para o apartamento, em Copacabana.
"No segundo movimento do remo, começaram a cair sobre mim as contas do balanço de pagamentos. No momento em que eu estava usando só as mãos, os problemas brotavam na minha cabeça".
Desistiu.
Delfim (no centro) e os assessores que levou de São Paulo para o Ministério da Fazenda, no Rio, em março de 1967, um dia antes da posse
"Se eu tivesse continuado a fazer exercício, ia ter um stress de louco."
Para Delfim, 1967 foi um ano particularmente difícil. Aos 39 anos, ele chega ao Rio para assumir o Ministério da Fazenda (que, na época, funcionava principalmente na ex-capital da República), a convite do presidente Costa e Silva. A ideia disseminada na elite carioca, conta ele, era que "aquele paulista caipira não aguentaria até o fim do ano". O primeiro grande teste foi em maio, mês em que venciam 100 milhões de ORTNs (Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional).
"Diziam que eu não conseguiria rolar essa dívida e cairia ali mesmo." Passou maio, junho, agosto e a dívida pública foi sendo rolada pelo mercado.
"Eu sempre tive bons amigos no mercado."
Essa proximidade também lhe custou dissabores.
"Diziam, por exemplo, que eu era sócio do Bradesco, né? Diziam que eu era sócio do Geraldo Bordon (do frigorífico Bordon). Diziam que eu era sócio de uma porção de gente", fala o ex-ministro.
Banqueiros como Amador Aguiar, Gastão Vidigal, Moreira Salles "sempre foram extremamente cooperativos com o governo. Se o governo queria baixar a taxa de juros, conversava com eles e o que a gente prometia, cumpria".
Neto de imigrantes italianos, Antônio Delfim Netto nasceu e cresceu no Cambuci, bairro operário de São Paulo. Dona Maria Delfim, sua mãe, costurava para fora. "E eu ganhava um dinheirinho entregando os vestidos." O pai, José Delfim, trabalhava na CMTC, empresa de transportes da prefeitura de São Paulo.
"O Samuelson fez a maior sacanagem com os economistas. Antes de morrer, deixou um recado: 'A economia nunca foi uma ciência e nunca será'"
Tem duas irmãs mais novas, Filomena (nome da avó) e Terezinha, uma porção de sobrinhos e, agora, o neto Rafael, de um ano e meio, filho de sua única filha, Fabiana. O nome da filha remete à juventude, quando, segundo conta, era socialista fabiano, reformista, corrente que, afirma hoje, "trazia um equívoco fundamental, no qual eu também acreditava: de que o Estado deveria ser proprietário dos meios de produção".
Foi a leitura da "Teoria dos Preços", de George Stigler, que o fez mudar de ideia.
Delfim foi avô aos 83 anos. "É uma experiência absolutamente extraordinária! Sublime! A última coisa que eu podia pensar na minha vida. Isso me diverte mesmo!". Para ficarem próximos, a filha está morando no mesmo prédio que ele. "Eu moro no 6º andar e eles no 14º". Sobre uma mesa lateral, na sua sala, há uma única foto, dele com o neto no colo.
"Passei uma infância muito gostosa", diz. Fez o curso primário num grupo escolar e contabilidade na Escola Técnica Carlos de Carvalho. O sonho era engenharia, mas o dinheiro da família era curto para um curso puxado, que não lhe permitiria trabalhar meio período. Optou por economia na Universidade de São Paulo. Era a terceira turma da FEA - Faculdade de Economia e Administração da USP. Chegou, por concurso, a professor catedrático em 1963, responsável pelas disciplinas análise macroeconômica, contabilidade nacional, teoria do desenvolvimento econômico, economia brasileira e planejamento governamental. Foi o primeiro aluno da FEA a tornar-se um de seus catedráticos e da escola só se desligou para se aposentar.
"É uma coisa fantástica. Eu gastei 6 mil réis com um selinho para, depois, viver a vida inteira na universidade", conta. O selo era colado no título de admissão. "Aquilo garantiu a minha vida." Provavelmente, esteja aí o início da profunda ligação do ex-ministro da Fazenda, da Agricultura, do Planejamento e do deputado federal por cinco mandatos consecutivos, com o Estado.
Foto da turma do terceiro ano do curso de contabilidade do Liceu Siqueira Campos (SP). Delfim é o terceiro da esquerda para direita, na primeira fila em pé
Em retribuição, Delfim doou à USP sua biblioteca de quase 300 mil títulos de economia, matemática, história, geografia, antropologia e estatística.
"Me dá vontade de dar risada quando alguém diz: 'Mas vejam! É um absurdo esse negócio de educação e saúde gratuitos!'. Você até pode discutir se quer cobrar mais de um sujeito ou de outro. Mas a antropologia ensina: o macaco virou homem pelo conhecimento; e o homem só ganha a humanidade se tiver saúde".
Antropologia é o "hobby" do economista. Dos tempos em que era jovem e frequentava um boteco na avenida Angélica, do seu amigo Horácio Coimbra, e bebericava com Paulo Vanzolini e Luís Carlos Paraná, restaram boas lembranças. "O primeiro disco que o Carlos Paraná gravou foi financiado pelo Café Cacique, do Horácio", recorda.
Boêmio mesmo, nunca foi. "Sempre gostei de estudar." É o que mais gosta de fazer ainda hoje.
Por quase quatro horas, Delfim falou com entusiasmo sobre os mais variados temas. A crise na Europa, a origem do homem, religiosidade, a democracia e os bons tempos em que estudou na USP.
"O que mais me fascina é a origem do homem. Antropologia é a única coisa que leio fora da economia. Sou um amador, me entende? Mas tenho algumas convicções sobre por que o homem está aqui."
Tem grande admiração pela parte antropológica da obra de Karl Marx.
"O homem é um animal que produz trabalho, como a abelha faz o mel. Suas mãos produzem você, e o seu cérebro é produzido pelas suas mãos."
O homem saiu da África há 150 mil anos e se dividiu dessa forma porque "somos animais territoriais; isso aqui é meu e ninguém mexe". Para os economistas, diz, é fundamental o entendimento de que o ser humano é muito mais complexo do que os modelos que eles usam.
O assunto anima Delfim. "Na minha opinião, tem duas teorias absolutamente fantásticas: o darwinismo e a física quântica. O Darwin a gente está começando a entender do que se trata; a física quântica dá certo, mas ninguém sabe por quê".
Fabiana e o pai, em 2007
Max Planck, prêmio Nobel de física em 1918, dizia: A física quântica ninguém sabe o que é, mas funciona. A economia, todo mundo sabe o que é, mas não funciona.
- Na sua visão, de onde viemos?
-"Somos a natureza tentando saber quem ela é.
- E para onde vamos?
- Aí é uma coisa hegeliana. É mais complicado...
- O senhor acha que há vida após a morte?
- Não sei. Mas acredito que tem alguma coisa que controla o mundo. Tenho minha própria religiosidade e acho que é uma ligação que não tem nada que ver com o racional. Eu gosto desse ponto de vista, acho que dá conforto.
Ele retoma a questão do processo civilizatório e conclui que a evolução é rumo a uma sociedade republicana, democrática.
"Tenho uma grande confiança na dialética entre a urna e o mercado. Cada vez que a urna exagera nos benefícios, o mercado vem e pune. E cada vez que o mercado exagera, vem a urna e pune."
Num momento em que a crise, tanto nos Estados Unidos quanto na zona do Euro, leva pensadores e movimentos sociais a questionar o regime capitalista e a prever seu fim, o ex-ministro não crê em alternativas.
"O capitalismo não foi inventado por ninguém. O homem foi procurando formas de produzir sua sobrevivência da maneira mais econômica possível. O capitalismo não tem fim. De vez em quando ele quebra, se recupera e sai da crise diferente de como entrou. O que se chama de capitalismo, portanto, nunca é a mesma coisa." E conclui: "Cada vez que um cérebro peregrino inventa uma nova forma de organização, termina em porcaria".
A crise europeia entra na conversa.
"Ah, essa crise, na minha opinião, vai confirmar a nossa teoria. Ou a Europa se salva como uma federação ou vai voltar para a barbárie." Na hipótese de destruição do euro, o futuro da Europa é sombrio. Se isso ocorrer, o que não acredita, "esses países todos daqui a 20 anos vão fazer uma guerra".
Haveria o risco de a Europa estar caminhando para uma fase pré-Tratado de Versalhes?
O então presidente Lula, em campanha para a reeleição, em 2006
"Se você permitir o desastre, tá tudo perdido! Não posso pedir para o grego: descoma o que você comeu. Não tem como! E você precisa do processo democrático para aperfeiçoar esse sistema. Ele não será aperfeiçoado na marra, a não ser que apareça um Napoleão, ocupe todos os 17 Estados e ponha ordem na casa. Aí, na Itália também vai aparecer um Mussolinizinho...."
Akihiro Ikeda e Gustavo Silveira participam do encontro com o Valor. Ikeda é economista e ex-aluno de Delfim e de Mário Henrique Simonsen. Ambos acompanham o ex-ministro há quatro décadas. Silveira começou como assessor de comunicação em 1967, quando foi com Delfim para a Fazenda, no Rio. Ikeda incorporou-se ao grupo pouco depois. Formou-se, ali, o que os cariocas chamavam de "Delfim boys". Eram todos ex-alunos: Affonso Celso Pastore, Paulo Yokota, Milton Dallari, Eduardo de Carvalho, Flávio Pécora, Carlos Antônio Rocca, Carlos Viacava, Carlos Alberto Andrade Pinto, Nelson Mortada, dentre outros.
De novo, Delfim se reporta ao momento em que desembarcou com seus ex-alunos no Rio, em 1967. "No Rio, era o seguinte: chegou esse gordo, italiano e vesgo. Nós vamos matá-lo em seis meses, tá certo? E além de tudo tem uns animais estranhos com ele, uns japoneses." Por anos e até hoje ainda se fala nos "Delfim boys", em referência àquele grupo e a outros nomes que foram se incorporando. Ikeda, Yokota e Gustavo trabalham com o ex-ministro na Ideias.
Seguimos, Delfim, Ikeda e a repórter para o almoço. O maître da cantina Roma, Luís, o mesmo que serve o ex-ministro há 26 anos, já o aguardava.
"Você tem uma truta bonita aí?", pergunta. Luís confirma e explica que o prato que Delfim pede não está no cardápio. É uma truta cozida, levemente temperada no sal, azeite, cebola, pimentão e louro. Acompanha espinafre ao vapor. De entrada, grão de bico e champignon.
Após participar de dois governos militares e patrocinar o "milagre econômico" - período em que as taxas de crescimento da economia brasileira eram exuberantes - ele volta para São Paulo e para a USP, com planos para uma carreira política. Em 1975, um ano após a posse do general Ernesto Geisel na Presidência da República (1974-1979), Delfim é enviado a Paris onde, por três anos, assume o comando da embaixada brasileira. O exílio concebido por Geisel tinha como propósito abortar a pretensão do ex-ministro de candidatar-se ao governo de São Paulo e vir a ser, eventualmente, candidato à Presidência da República.
Delfim aceita uma pitaya mexicana na sobremesa: "Seja lá o que for, vamos lá, vamos comer!"
São desse tempo as primeiras notícias sobre a existência do "Relatório Saraiva", documento a que ninguém nunca teve acesso. Nele, o coronel Raimundo Saraiva, então adido militar em Paris, fazia uma série de denúncias de corrupção, como a cobrança de comissões sobre empréstimos de bancos franceses pela embaixada então chefiada por Delfim. O coronel Saraiva mandou para a 2ª Seção do Estado-Maior do Exército um informe dizendo que Delfim teria ligações com o irmão do presidente da França, Giscard D'Estaing, e que estaria recebendo 10% de comissão pelos financiamentos obtidos junto a bancos franceses. Tal relatório nunca foi divulgado e o assunto morreu de inanição.
O que era o relatório Saraiva?.
"Na verdade, era um bando de mentiras. Simplesmente, fogo amigo. Dizia que nós tínhamos recebido comissão."
Delfim acredita que esse documento foi obra dos militares da linha dura. "Se eles tivessem tomado o poder, ia ser muito pior do que se o partido comunista tivesse tomado o poder. Ia ser uma Cuba ainda mais subdesenvolvida. Havia uma luta interna no Exército. O Exército era como o PT. São grupos antropófagos. Quando você põe um em presença do outro, você tem uma vantagem: um come o outro."
O coronel Mário Andreazza, ministro do Interior e tocador de obras do porte da ponte Rio-Niterói e da Transamazônica, contemporâneo de Delfim no governo militar e amigo, ganhou fama de corrupto também por obra dessa facção do Exército, que não queria vê-lo candidato à Presidência, comenta Delfim.
"Vou lhe dizer, o Andreazza morreu em São Paulo. Uns amigos se cotizaram pra poder mandar o corpo num aviãozinho para o Rio. Diziam o diabo do Andreazza. Ele tinha um apartamento, que a mulher dividia com os filhos, e isso é tudo que eles têm. Diziam que o filho do Costa e Silva tinha feito a negociação de compra dos "Mirage" e recebido comissão, tá certo? Foi morar com a mãe. O grande problema é que essas coisas caminham, e você só fica sabendo a verdade 10 anos, 20 anos depois. Sei até dos filhos do Médici (general Emílio Garrastazu Médici, ex-presidente). Um morreu e o outro é professor aposentado pela UFRJ".
Era um mundo diferente, diz. "Eles tinham uma noção clara do dever. Por que nunca nenhum deles ficou um dia a mais? Você acha que o Médici, com a popularidade que adquiriu no final, se quisesse ficar mais 4 anos não teria ficado? Só que não, foi uma missão, a missão terminava no dia tal e ele foi embora."
Em 1979, Delfim volta para o governo como ministro da Agricultura da gestão Figueiredo. Embora tenha ficado para a história que ele derrubou Mário Henrique Simonsen do Ministério da Economia (na época, Fazenda e Planejamento se juntaram numa única pasta), para assumir o comando da economia, sua versão é outra. "A despeito de tudo que dizem, o Mário foi um grande amigo meu. Ele era uma figura muito interessante. Um gênio."
Sobre a crise: "Ou a Europa se salva como uma federação ou vai voltar para a barbárie"
Paul Volcker foi indicado para o comando do Federal Reserve (Fed), o Banco Central americano, em meados de 1979. Simonsen conhecia Volcker. Ambos haviam trabalhado no Citibank.
Delfim conta: "Um dia, entrei na sala do Mário e ele me disse: 'Quebramos, Delfim! Quebramos! Eu conheço o Volcker e onde ele vai pôr a taxa de juros ninguém sabe!', Com a dívida que fizemos no governo Geisel.... não temos como pagar."
Simonsen pediu demissão no dia 10 de agosto de 1979 sem fechar a proposta de lei orçamentária para o ano seguinte, que tinha que ser encaminhada ao Congresso até o dia 31.
"O Figueiredo adorava o Mário! Figueiredo só enlouqueceu quando soube, cinco minutos antes (do pedido de demissão), que ele já tinha feito a mudança." Simonsen embarca para o Rio e no dia seguinte vai à praia de Copacabana. Sua foto de calção de banho é estampada nas capas dos jornais cariocas.
"O Figueiredo viu o Mário em Copacabana tomando banho e o negócio pegando fogo. Ele ficou bravo porque se sentiu traído."
O temor de Simonsen se confirma. Em outubro daquele mesmo ano, Volcker começou a multiplicar os juros nos Estados Unidos, que de 3% chegaram a 20% em 1981. O aperto monetário feito para desinflacionar a economia americana, associado ao segundo choque do petróleo, deu início a uma quebradeira geral no mundo em desenvolvimento, inclusive no Brasil. Coube a Delfim gerir a massa falida.
O Brasil ficou freguês do Fundo Monetário Internacional. "O Brasil foi 16 vezes ao FMI. Acho, não sei, perdi ideia de conta, mas acho que fomos 16 vezes ao Fundo desde Juscelino (JK). Nós aprendemos tudo." JK rompeu com o Fundo depois que o acordo tinha sido assinado."
Outro grande amigo, diz, foi Roberto Campos.
"O Campos sempre foi um sujeito formidável, eu adorava ele. Mas o Costa e Silva tinha uma diferença muito séria com ele. Dizem, eu não sei se é verdade, que, quando o Costa e Silva era ministro do Exército, o Campos, ministro do Planejamento, deu um chá de cadeira nele. Depois Costa e Silva virou presidente."
O Brasil estava numa recessão brutal nessa época, lembra Delfim. Para flexibilizar as políticas fiscal e monetária, porém, era preciso acabar com o curto período de independência do Banco Central, criado em 1964, e demitir o primeiro presidente da instituição, Dênio Nogueira.
"O Dênio era um sujeito muito competente, mas praticava uma política muito restritiva. Ele foi embora e o Rui Leme assumiu o lugar dele", recorda. É o fim do projeto de autonomia concebido para a autoridade monetária pelos ministros Roberto Campos e Otávio Gouvêa de Bulhões, no governo anterior, do general Humberto de Alencar Castelo Branco.
"Não acaba a autonomia. O que acaba é a independência, que era um negócio absurdo", diz Delfim. Campos ficou irritado com a exoneração de Dênio.
"Campos era uma figura inteligente, brilhante e briguenta. Mas o que ele queria, na verdade, era continuar mandando no Banco Central independente."
As histórias vão surgindo aos borbotões de uma mente privilegiada. "O Costa e Silva dizia: 'O Banco Central é independente de quem? É de mim, mas não do Campos, né?'"
Encerrado o governo Figueiredo e o período militar, em março de 1985, Delfim se candidata a deputado federal e em 1986 volta para Brasília. Seu nome, naquela época, era o terror da chamada esquerda brasileira. Ele conta hoje que entrava no elevador da Câmara, sozinho ou com Roberto Campos, que também era deputado, e as pessoas se retiravam, em repúdio.
"O pessoal do PT saía do elevador, achando que aquilo ia me incomodar. No primeiro mandato, estávamos eu e o Campos... Então, a gente se divertia muito."
Sua avaliação do PT é crítica:
"Na verdade, eles tinham uma ideia completamente falsa do que era o Brasil. Queriam fazer do Brasil uma grande Cuba. Coisa estranha é que o Lula nunca teve essa ideia. Lula sempre teve consciência clara de que, sem hierarquia na fábrica, nada funciona."
Delfim conheceu Lula em 1974. O advogado do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Almir Pazzianoto, amigo comum, sugeriu ao ex-ministro que conversasse com o sindicalista para explicar as consequências do primeiro choque do petróleo, de 1973, que acabaria com os anos do "milagre". Numa casa nos Jardins, da mãe do deputado Eduardo Suplicy, dona Filomena, ambos conversaram por uma hora e meia. Começou ali uma empatia que culminaria com o apoio de Delfim à candidatura de Lula à Presidência da República, em 2002. Hoje se visitam com frequência.
Delfim votou em Fernando Collor de Mello nas eleições de 1989, conforme já declarou no passado. O confisco promovido então "não foi um ato de coragem, foi desespero", disse na ocasião. Mas não se arrepende. Collor abriu a economia, reduziu o tamanho do Estado e a dívida pública foi cortada em um terço. "Tudo isso, no final, propiciou o Real."
A concepção do Plano Real, que finalmente conseguiu derrubar a inflação, era brilhante, Delfim reconheceu por diversas vezes. Mas quando o país celebrava a existência de uma moeda que valia mais que o dólar, ele chamava a atenção para a crise de balanço de pagamentos que a sobrevalorização do real iria gerar. Enquanto Fernando Henrique Cardoso tomava posse como presidente da República, Delfim insistia que aquela política terminaria de forma melancólica.
Foram longos os anos ligados à USP e desse tempo ele fala com afeição.
"A universidade foi formada por um grande número de professores judeus que tinham sido expulsos da Itália, da Alemanha." A Faculdade de Economia e Administração (FEA) sempre foi uma escola aberta. "Ela nunca teve uma orientação precisa, digamos, neoclássica, keynesiana, marxista."
No início, os professores não eram nem economistas.
"Era todo mundo autodidata. O sujeito fingia que era economista e dava aula, tá certo?"
Assim como a FEA, Delfim também nunca se vinculou a uma escola de pensamento econômico.
"Nunca me liguei a nenhuma escola. Nunca. Primeiro, que eu realmente pretendia ver econometria, porque eu tinha certo domínio sobre ela. Mas passei a desacreditar desses instrumentos. Quando vejo alguém aplicar uma função de produção para determinar o crescimento do Brasil, acho uma coisa, no mínimo, engraçada."
Dos anos de estudo e prática, ele extraiu uma lição: "Não existe mercado sem Estado e não existe desenvolvimento sem mercado." O mercado, é claro, tem seus problemas e excessos. Mas o Estado também os tem. O melhor, segundo ele, é caminhar numa linha intermediária, e difícil: "Nem considerar a teoria econômica como uma religião, da qual o economista é portador, divulgador e defensor; nem achar que o Estado é onisciente e, portanto, não pode ser nem onipresente nem onipotente".
Delfim estava no segundo ano da faculdade quando adquiriu, numa livraria italiana, a obra do economista e político Constantino Bresciani-Turroni. " Era uma visão extraordinária, muito crítica do keynesianismo que eu nem conhecia direito. Aquilo foi uma revolução."
A verdadeira revolução ocorreria lá pelos anos 1949, 1950, com a chegada às livrarias do livro "Introdução à Análise Economia", de Paul Samuelson.
"O Samuelson fez a maior sacanagem com os economistas. A vida inteira ele promulgou que a economia era uma ciência. Antes de morrer, deixou um recado: 'A economia nunca foi uma ciência e nunca será'. E morreu!"
A memória está bem afiada. Delfim cita nomes de professores e debates de que participou na FEA, naquela época. O professor Paul Hugon, de economia política, ensinava que a moeda era qualquer coisa que servisse como unidade de conta, meio de pagamento e poder liberatório. "O Heraldo Barbuy, professor de matemática, germanófilo, dizia: 'Não é nada disso! Moeda é uma instituição social'".
E prossegue: "Na verdade, era um 'brainstorm'... As aulas dele [Barbuy] ocupavam o sábado de manhã inteiro, saía gente pela janela. Depois eu já tinha feito minha cátedra e fui seu examinador. Até hoje tenho uma saudade enorme dele".
O ex-ministro testemunhou todas as transformações importantes do país: a ditadura, os momentos de crise aguda, as diversas vezes em que o Brasil quebrou, a redemocratização, a hiperinflação, os problemas cambiais e a exacerbação da taxa de juros. A história da sua vida é a história do país em todos esses anos.
"Nunca trabalhei na minha vida. Tudo que fiz foi por diversão, por prazer", declara. " Vou lhe dizer mais: você não escolhe a profissão. A profissão te escolhe. E quando você tem sorte, você nunca trabalha".
Trabalho e diversão se fundiram numa só coisa, que se tornou para ele " uma forma de viver". Considera-se um sujeito de sorte e proclama, num raro momento em que fala sobre si mesmo: "Fui muito feliz, inclusive nos dois casamentos".
Viúvo, Delfim oficializou recentemente a união com Gervásia Diório, mãe de sua filha Fabiana.
Desde que perdeu a reeleição para deputado federal, em 2006, Delfim vai todos os dias ao escritório onde presta consultoria a empresas, escreve para diversos jornais e revistas e faz palestras. Os artigos são produzidos aos domingos, na máquina de escrever cinza Olympia, que tem há 40 anos. Antes de terminar o almoço com o Valor ele comenta que tem que voltar para o escritório e atender dois clientes.
Luís, o maître, se aproxima da mesa e Delfim pede: "Traz aquele carrinho aqui para a gente fazer uma tentação". São as sobremesas.
Após a temporada de dois meses no Incor, Delfim emagreceu 15 quilos, já plenamente repostos. "Perdi uma arroba e ganhei uma arroba", diz, rindo. Faz diariamente uma sessão de alongamento com um fisioterapeuta. "Ele sua pra burro e eu fico sentado."
Ele dá uma conferida nos doces, mas opta pelas frutas que Luís sugere.
"Como é que se chama esse negócio"?, pergunta.
"É pitaya mexicana", diz o maître.
"Seja lá o que Deus quiser, vamos lá, vamos comer!".
Luís traz tâmaras.
"Uma tâmara! Tá bonita, hein?, Acho que não vou perdoar."
"São israelenses", informa o maître.
Delfim diz à repórter: "Põe aí que eles importam essas frutas para eu poder comer todos os dias".
De tudo que viveu até agora, para Delfim foi a Constituinte de 1988 a responsável pela grande mudança que deu início ao Brasil de hoje.
"Com todos os seus problemas e suas utopias, a Constituição de 88, na verdade, foi construindo instituições que estão cada vez mais sólidas. Você tem um Executivo funcionando, tem um Legislativo funcionando e tem um Judiciário funcionando. Tem, ainda, uma coisa que não tem em nenhum outro país emergente, que é um Supremo Tribunal Federal independente, que defende as liberdades individuais e que frequentemente é criticado por tentar fazer justiça."
A Constituição, descreve ele, que foi deputado constituinte, tem três vetores: "Construir uma sociedade republicana em que todos, inclusive o poder incumbente, estejam sujeitos à mesma lei; construir uma sociedade democrática, em que estamos avançando numa velocidade espantosa; e uma sociedade razoavelmente justa".
"O capitalismo é uma corrida feroz, uma competição. Para a competição ser justa, a justiça se faz na saída. Então, todo mundo tem que sair daqui com os dois pés e uma cabeça, tá certo?" Independentemente de o sujeito ter nascido numa suíte presidencial do Hotel Waldorf Astória ou debaixo de uma ponte em Brasília, a carta lhe dá acesso à saúde e à educação. O resultado vai depender da sorte, do DNA e de uma porção de outras coisas. É isso que está implícito na Constituição, diz.
"Aparece um sujeito como o Lula e, intuitivamente, descobre que é isso mesmo que o povo quis por lá na Constituição", completa.
"Quantos votos tem o economista que diz que isso é besteira? Quantos? A mulher dele, provavelmente, não vota nele. Quem decidiu isso tem 50 milhões de votos. É um respeito à forma de organização. O que me parece é isto: Nós estamos nos aperfeiçoando."
- Ministro, o que o diverte hoje?
- Hoje eu me divirto vendo o Brasil melhorar.
- Sente algum incômodo, constrangimento, por ter participado dos governos militares?
- Me causa o incômodo natural que causa a todas as pessoas quando o Estado abusa do seu poder. Uma coisa fundamental é que sempre mantivemos o sistema da economia de mercado.
- Não lhe chegavam notícias dos porões do regime?
- Não! Há um equívoco completo nisso. Tinha uma divisão absolutamente total entre a política e a economia.
- Dizia-se, na época, que o senhor, assim como Simonsen, evitaram algumas prisões. É verdade?
- Quando ficávamos sabendo e podíamos interferir, nós interferíamos, é claro. A gente dava um depoimento a favor do sujeito.
"Não quero me isentar. Não quero me isentar. Eu, pessoalmente, nunca tive nenhum envolvimento em coisa nenhuma. Fiz a minha tarefa de economista. No regime autoritário, as pessoas não compreendem, não existia nenhuma ligação entre o pessoal militar e a administração. Nunca entrou no meu gabinete um oficial fardado. E os que eram militares e estavam no governo, como era o caso do Andreazza, eram civis discriminados pelos outros militares.
- Norberto Bobbio, no livro "De Senectute", fala que, com o passar dos anos, vamos perdendo a capacidade de assimilar o novo. O senhor sente isso?
- Ah, sem dúvida! Sem dúvida. Essa tecnologia moderna, o iPad, o Kindle, não sei o que mais, estou começando a aprender, mas tenho grande dificuldade. Ainda hoje é na Olympia [aquela máquina de escrever que o acompanha há mais de 40 anos], que comando meu pensamento