quarta-feira, 18 de abril de 2012

Íntegra da entrevista de Cezar Peluso ao conjur


CEZAR PELUSO, O JUIZ

"Trabalhando com conflitos familiares, aprendi a ouvir"

Cezar Peluso - SELO - 13/04/2012 [Spacca]Convidado a opinar sobre Cezar Peluso, que deixa a Presidência do STF esta semana e se aposenta em setembro, José Carlos Moreira Alves, que foi ministro da Corte por quase 30 anos, o descreve como “um magistrado que se baseia na lei para julgar” — expressão que, no linguajar severo e crítico do ministro aposentado, tem significado especial.
Nesta primeira parte da série de entrevistas e textos sobre Peluso, começa a entrevista em que o ministro mostra suas características incomuns. O que será reforçado pelas falas e depoimentos de diversos personagens, dos filhos a desembargadores e juristas, que se seguirão.
Nascido em Bragança Paulista (SP) em 3 de setembro de 1942, Antonio Cezar Peluso — cursou o ginásio no Seminário Diocesano São José, de São Vicente, Estado de São Paulo, entre 1955 e 1958. O sonho de ser padre foi trocado, nos tempos do Curso Clássico, realizado no Colégio Estadual Arnolfo Azevedo, de Lorena (SP), e no Instituto de Educação Canadá, de Santos (SP) (1959 a 1961): agora, queria ser professor de Letras Clássicas — latim, grego e português. Sensato, acolheu a recomendação familiar e se formou em Direito pela Faculdade Católica de Santos (1962-1966).
Fez o curso de especialização em Filosofia do Direito, sob orientação do professor Miguel Reale, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (1967) enquanto advogava na Cosipa (Companhia Siderúrgica Paulista) até chegar à idade mínima de 25 anos, exigida então para prestar concurso de ingresso no Judiciário paulista (janeiro de 1968). Sua estreia como juiz substituto aconteceu na 14ª Circunscrição Judiciária de Itapetininga, na época conhecida como “o ramal da fome”, pela pobreza de suas cidadezinhas. Dali foi para São Sebastião, no litoral, sua primeira entrância, ficando de 27 de novembro de 1968 a 18 de fevereiro de 1970.
A segunda entrância, exercida de 19 de fevereiro de 1970 a 1º de agosto de 1972, foi em Igarapava, de onde se removeu para a capital, como juiz substituto da Capital, 3ª entrância, promovido por merecimento, onde permaneceu de 2 de agosto de 1972 a 15 de dezembro de 1975.
A seguir foi juiz de Direito da 7ª Vara da Família e das Sucessões da Capital, entrância especial, promovido por merecimento, no período de 16 de dezembro de 1975 a 10 de novembro de 1982. Durante esse tempo, exerceu também a função de juiz auxiliar da Corregedoria-Geral de Justiça, convocado pelo Conselho Superior da Magistratura, no período de 1º de janeiro de 1978 a 31 de dezembro de 1979.
Esse período à frente da 7ª Vara da Família foi de muitos estudos e dedicação. Fez o mestrado em Direito Civil sob orientação do professor Silvio Rodrigues, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, seguido pelo Doutorado em Direito Processual Civil, sob orientação do professor Alfredo Buzaid, também na USP (1972 a 1975), emendando com outra especialização em Direito Processual Civil, sob orientação do professor José Manuel de Arruda Alvim Neto, na Faculdade Paulista de Direito da PUC-SP.
Por merecimento também, deixou a Vara da Família para entrar no Segundo Tribunal de Alçada Civil, na 5ª Câmara, onde permaneceu de 11 de novembro de 1982 a 13 de abril de 1986, quando foi promovido a desembargador do Tribunal de Justiça do estado de São Paulo, na 2ª Câmara de Direito Privado (14 de abril de 1986 a 25 de junho de 2003), tornando-se membro efetivo do Órgão Especial do TJ-SP até o fim de sua atuação, quando foi indicado para o Supremo Tribunal Federal.
Como desembargador, dirigiu e revitalizou a Escola Paulista da Magistratura e, entre outras iniciativas, criou a revista Diálogos&Debates.
Leia a primeira parte da entrevista de Peluso:
ConJur — Como foi o seu tempo de formação? O senhor inicia sua vida profissional em plena vigência do Regime Militar.Cezar Peluso — Sim, em 1964 eu estava com 22 anos. E cursava o segundo ano da faculdade de Direito, era presidente e orador especial do Centro Acadêmico Alexandre de Gusmão. Um grande diplomata do Império português, santista como José Bonifácio. E que foi o urdidor do Tratado de Madri, de 1750, que estabeleceu os limites de fronteiras entre os domínios coloniais portugueses e espanhóis, tornando o Brasil maior do que era até então.
ConJur — Como avalia hoje a ideologia daquele período? Cezar Peluso — Foi um período de paranoia da classe média brasileira contra o risco do regime comunista no Brasil. Desde criança, escutava que o comunismo tirava a propriedade de todo mundo... Foi uma intoxicação cultural que deixou apavorada a classe média. E ela recorreu a tudo, desde os quartéis até os padres, igreja e jornais. Neste clima de paranoia, a Folha de S.Paulo chegou a ceder caminhonetes para cumprir algumas missões da OBAN [Operação Bandeirante, centro de investigações montado pelo Exército em 1969 para o combate a organizações de esquerda]. E a classe média foi para as ruas na Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Criou um forte movimento popular contra a classe operária, contra o governo, sobretudo contra o PTB e os partidos de esquerda. Foi um total pavor contra a possibilidade da introdução do regime socialista e comunista do Brasil. E aí se orquestraram as condições para a chegada do golpe militar.
ConJur — E como o senhor se situava nessa época?Cezar Peluso — Eu era uma pessoa de classe média, nem era classe média-alta, era média-média. Com um entorno familiar com essas mesmas preocupações, participei do medo que a minha classe alimentava.
ConJur — O senhor flertou com a esquerda?Cezar Peluso — Pelo contrário, ganhei a eleição do Centro Acadêmico Alexandre de Gusmão contra a chapa de esquerda. Naquela época, veja, meu pai era jornalista. Primeiro foi locutor de rádio em Bragança Paulista. Largou um belo emprego que tinha na Caixa Econômica para vir trabalhar na Rádio São Paulo, que ficava numa esquina da Avenida Angélica, era uma das melhores emissoras da capital. Ele produzia novelas, tinha um programa às 7 horas da manhã chamado Terra Simples Terra, que era sobre músicas do interior. Nasci em Bragança, como o Cásper Líbero. Meu pai exerceu depois um jornalismo diferente, criou um jornal que circulava entre os prefeitos e cidades do interior. Os prefeitos faziam propaganda de suas obras no periódico criado por ele, publicavam anúncios, pagavam e distribuíam esse jornal. Ele trabalhou também para outros jornais.
ConJur — E o senhor ainda mantém laços com Bragança Paulista?Cezar Peluso — Ainda tenho parentes que moram lá, mas fiz toda a minha trajetória longe dali.
ConJur — Aí o senhor foi para o seminário?Cezar Peluso — Fui para o seminário quando tinha 10 anos de idade porque o irmão do meu pai era bispo de Lorena, Luiz Gonzaga Peluso (1907-1993), que depois foi o primeiro bispo de Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo. Naquele tempo, a figura do bispo era uma figura super-respeitada. Eu dizia que queria ser bispo, fui para o seminário e fiquei quatro anos. Quando saí, fui morar com meu tio bispo em Lorena e fiquei dois anos ali, fazendo o secundário, na época o Clássico. Estudava em estabelecimento do estado, fiz ótimas amizades, ganhei o Concurso Euclides da Cunha, uma promoção cultural de alta visibilidade no estado de São Paulo. Concorri com um grande número de candidatos. Em São José do Rio Pardo, quando fui para participar da maratona euclidiana, cheguei a conhecer um homem que conviveu com Euclides da Cunha, o Paschoal Artese, um grande jornalista daquela cidade. Convivi também com um oculista que era o maior conhecedor de Euclides. Fiquei hospedado na casa dele quando fui participar do certame em São José do Rio Pardo. Ganhei desse oculista muitos livros do Euclides da Cunha. Na época estava com 17 anos [completaria 18 poucos dias depois da 48ª Semana Euclidiana], e concorri representando o Colégio Estadual Arnolfo Azevedo, de Lorena.
ConJur — Então o senhor leu Euclides da Cunha? [risos]Cezar Peluso — Sem dúvida, Os Sertões é um livro difícil, mas Euclides tem vários outros livros, como Peru versus Bolívia, Contrastes e Confrontos e À Margem da História. Ele foi um homem importante, inclusive com atuação no Ministério das Relações Exteriores, em que trabalhou ao lado do Barão do Rio Branco. Ele percorreu os limites do Brasil, um homem polivalente. Personalidade fascinante, disputou com o maior filosofo brasileiro, o Farias Brito, a cátedra de lógica do Colégio Pedro II e ficou em segundo lugar, sendo nomeado para o cargo. Muitos anos depois, o professor Miguel Reale produziu um comentário sobre a tese do Euclides nesse concurso para a cátedra de lógica. Mas nos tempos do secundário, os professores cobravam muita leitura. Todos os clássicos brasileiros, das Memórias de um Sargento de Milícia, de Manuel Antônio de Almeida, às Memórias Póstumas de Braz Cubas, além dos outros livros do Machado de Assis, os do José de Alencar. Mas o Euclides foi uma marca.
ConJur — Voltando para questão ideológica, o senhor participou de um grupo de estudos criado pelo Dom Paulo Evaristo Arns. Qual a preocupação daquelas reuniões?Cezar Peluso — Era um grupo que se reunia para refletir sobre os acontecimentos do Brasil daquela época. Nunca fomos ativistas. Era um grupo de reflexão e de estudos, não de militância.
ConJur — Como juiz, o senhor fez um trabalho de ativista muito grande, inclusive a criação dos centros integrados da cidadania.Cezar Peluso — Isso foi na época do Mario Covas, mas aí houve uma colaboração com um governo sério no qual a gente acreditava que poderia fazer alguns avanços. Mas nunca fui um ativista político. Os encontros realizados nesse grupo liderado pelo Dom Paulo Evaristo Arns eram para reflexão. Ouvíamos, por exemplo, o Leonardo Boff falar e depois discutíamos juntos. Chamávamos gente importante para expor ideias nesses encontros.
ConJur — O senhor conheceu o teólogo Joseph Comblin?Cezar Peluso — Sim. Tivemos uma reunião com ele nesse grupo de estudos e ele falou uma coisa tão interessante para nós, que marcou muito: “Vocês já repararam como se come na Bíblia”? Discorreu sobre a representação da comida e de como os textos bíblicos dão relevo para o fato de as pessoas comerem. Ele estava comentando o Velho Testamento. Nesse período, convivemos com várias pessoas ligadas à teologia da libertação, que eram convidadas para esses debates, como o grande teólogo peruano Gustavo Gutiérrez, além do próprio Leonardo Boff.
ConJur — Na reportagem da revista Piauí sobre o Supremo, foi citado seu interesse pelo Fulton Sheen... [risos]Cezar Peluso — O Fulton Sheen era arcebispo de Nova York, mente arejada, e naquela época era mais ou menos como o Padre Marcelo hoje. Ele escrevia muito bem. Sofri influências desses intelectuais, gostava de ler seus livros.
ConJur — Chegou a ler Thomas Merton?Cezar Peluso — Opa! Homem Algum é uma IlhaA Montanha dos Sete Patamares... Li toda a literatura religiosa dessa época. Ainda tenho uma biblioteca grande de livros sobre Teologia da Libertação.
ConJur — O senhor sempre foi religioso?Cezar Peluso — Minha família sempre foi muito religiosa. Sou religioso hoje tanto quanto era naqueles tempos. Vou à missa.
ConJur — O senhor teve problemas com a ditadura?Cezar Peluso — Nunca. Nunca hostilizei, mas nunca deixei de cumprir o que tinha de fazer. Está certo, está certo. Está errado, está errado. É certo que havia ali um general, superintendente da Petrobrás, e um delegado da polícia, que deram muito trabalho. Um dia o delegado invadiu a casa do secretário da Câmara de Vereadores sob o pretexto de pegar as fitas de gravação de uma sessão, quando um dos vereadores teria atacado a revolução. Só que o rapaz deu um couro no delegado e caiu fora, fugiu da cidade. E o delegado foi atrás dele. Naquela época, a lei em vigor, por um decreto-lei baixado pelo presidente Castelo Branco, criava o crime de abuso de autoridade. Essa medida foi baixada pelo Castelo por causa dos excessos praticados por militares e policiais naqueles primeiros anos do Regime Militar. Essa lei previa que para o promotor fazer a denúncia por abuso de autoridade não havia necessidade de instaurar inquérito. O promotor era o meu compadre, foi promotor de Caraguatatuba, o Antonio de Pádua Assis Moura. O vereador estava fugido e não podia voltar para a cidade, pois o delegado iria prendê-lo. E ele escreveu para o promotor contando tudo, que o delegado invadira sua casa à noite e sem um mandado. Era o caso típico de abuso de autoridade e o promotor me avisou que iria denunciar esse delegado. Eu disse: “Não faz isso, pois se fizer, eu recebo a denúncia”. Ele denunciou. E eu recebi a denúncia! [risos]
ConJur — E isso gerou consequências, certo?Cezar Peluso — O delegado e o general botaram os militares todos em movimento, vieram representantes do Tribunal Militar de São Paulo e pediram a avocação da ação penal para trazê-la para São Paulo. Eu estava na minha primeira entrância, era um juiz novo, tinha apenas três anos de magistratura. As nossas garantias estavam todas suspensas naquela época, sob o governo do marechal Costa e Silva. Eu ainda novato, os militares em cima, querendo tirar o processo, o delegado de polícia fazendo pressão. Pedi uma audiência com o corregedor e vim a São Paulo falar com ele. O corregedor era o doutor Hildebrando Dantas de Freitas, homem seriíssimo, mas que se encontrava de férias. No lugar dele estava outro desembargador, cujo nome obviamente não irei declinar, o mais velho da Seção Criminal. Cheguei e me apresentei e relatei o que estava acontecendo. Para surpresa minha, ele em vez de dizer que eu havia cumprido a minha função, comentou: “O senhor não acha que foi imprudente em receber essa denúncia?” Respondi: “O senhor me desculpe, mas acho que é o caso de receber a denúncia. E vim aqui comunicar essa decisão”. Fui embora. Fiquei louco da vida. Quando o Hildebrando retornou das férias, voltei para contar o caso. “Já fui juiz, o senhor cumpre a sua função e eles que cumpram a deles”, foi a resposta. “O senhor fez muito bem”. Não fizeram nada. Mas tiraram o processo de lá.
ConJur — Ficou por isso mesmo?Cezar Peluso — Vou contar uma história que já é folclore. Quando fui a São Sebastião, em 27 de novembro de 1968, para azar do regime militar, eles nomearam como interventor um armador de navio de São Vicente, o Mansueto Pierotti, que é hoje nome do Estádio de Futebol daquela cidade. E ele chegou como interventor a São Sebastião e a primeira coisa que fez foi ir até a minha casa. “Doutor, vamos trabalhar em conjunto, faço apenas as coisas que o senhor me instruir. Acabou a farra”. E eu respondi: “Então, a primeira coisa que quero é que o senhor tire esse delegado daqui”. E uns quinze dias depois aquele delegado foi removido. Não acontecia nada em São Sebastião que o prefeito não viesse falar antes comigo. Ele era um homem muito sério. E dizia coisas interessantes. “O senhor toma cuidado, se o senhor vir mendigo em frente à calcada de sua casa, pode ter certeza de que é gente do SNI”.
ConJur — Depois o senhor foi juiz de Igarapava.Cezar Peluso — É a última cidade na rodovia Anhanguera antes da divisa com Minas Gerais, na beira do Rio Grande. Atravessa 30 quilômetros e já está em Uberaba. Foi a minha segunda entrância, exercida de 19 de fevereiro de 1970 a 1º de agosto de 1972. Nas cidades do interior, o juiz faz de tudo, à moda antiga. Lá em Igarapava, por exemplo, eu lidava com todo mundo, o promotor, delegado de polícia, todos operavam no mesmo prédio. O cidadão chegava com uma queixa ou dúvida e era encaminhado na hora para a sala ao lado, falava com o delegado, ou com o promotor, com o juiz. Cuidei com especial carinho de um orfanato, criado pelo juiz que me precedeu. Guardo boas recordações daqueles tempos. Depois, vim para a capital, na terceira entrância.
ConJur — O senhor é conhecido como autoridade em Direito de Família.Cezar Peluso — Não é bem assim, mas foi mais ou menos assim [risos]. Quando fui nomeado juiz substituto, quem me recebeu não foi o juiz titular da comarca, mas um juiz que morava em Itapetininga, mas era magistrado de uma cidade vizinha, Angatuba. Seu nome era Paulo Soares Hungria. Era bem mais velho do que eu, muito simpático. Eu era um garoto, tinha 25 anos. Muitos anos depois, eu estava voltando para São Paulo, para a terceira entrância, tinha sido indicado para a Vara Cível, que era tudo o que eu queria. E com certeza seria nomeado. Então o amigo Paulo Soares Hungria me liga com um pedido: “Vou me aposentar daqui a uns dias e estou adoentado, ainda não sou juiz de entrância especial e queria saber se o senhor não se incomodaria em falar com o secretário da Justiça dizendo que abre mão de sua promoção para ele me nomear”. Como poderia negar uma coisa dessa a quem me recebera tão fraternamente quando era ainda substituto? Prometi falar com o secretário. Assim fiz, liguei para o secretário de Justiça, na época o Dr. Manuel Pedro Pimentel, e disse que gostaria de não ser promovido em benefício do Soares Hungria. Foi uma ousadia, pois nem o conhecia. “Estou num lista de promoção, mas existe o Dr. Paulo Hungria, que está adoentado e gostaria de ser promovido agora. Queria que o senhor levasse em consideração, e abro mão da minha promoção”. Ele respondeu “Vou levar em consideração o que o senhor está falando”. Foi muito seco, e pensei “estou frito”. No final o secretário nomeou o Paulo Hungria.
ConJur — E o senhor ficou na lista de espera.Cezar Peluso — A vaga seguinte era para a Vara da Família, pensei comigo: “O que irei fazer lá? Não quero ir para lá. Agora vou ter de aprender a lidar com esse troço e vai ser um problema”. Sucedi o eminente Dr. Carlos Teixeira Leite. No começo foi um sofrimento, mas fui aos poucos me adaptando. Pensei que seria mais difícil essa rotina de ouvir pessoas em crise, com problemas graves, mas acabei gostando, me aprofundando cada vez mais. Dediquei-me absurdamente. Ouvia as pessoas com paciência, marcava audiência prolongada com os demandantes. O casal conversava, conversava, volta daí a dois meses. Aprendi uma coisa importante na área do Direito de Família: aprendi a ouvir, pois as pessoas vão lá como se fossem a um psicólogo, também em busca de conforto.
ConJur — Além de aprender, o senhor inovou, pelo que dizem.Cezar Peluso — O fato é que comecei a estudar muito, fiz diversos cursos, me interessei por assuntos correlatos. Fiquei oito anos na Vara da Família. E ali o juiz não pode decidir sozinho sobre os problemas: por mais erudito e preparado que seja, ele não tem o conhecimento necessário de áreas específicas, necessárias no trato com as pessoas. Tem de se cercar de psicólogos, de assistentes sociais. Foi quando resolvi criar um grupo de estudos, reunindo especialistas de diversas áreas. Esse grupo, pioneiro no Brasil, se chamou Instituto Brasileiro de Estudos Interdisciplinares de Direito de Família e congregava juízes, procuradores da área de família, advogados, psicólogos, psicanalistas e assistentes sociais. No começo era um grupo pequeno, 25 ou 30 pessoas, e chegamos a fazer reuniões aqui em casa. O objetivo era entender como aplicar o Direito usando o conhecimento dessas áreas afins, tratando a família em sua globalidade. Isso foi importante e, a partir daí, mudou-se o enfoque do Direito de Família no Brasil. O instituto se tornou conhecido, difundido. Começaram a surgir núcleos em outras regiões: o Rio Grande do Sul criou um, outro em Minas Gerais — e este deu origem ao Instituto Brasileiro de Direito de Família. Mas minha grande preocupação como juiz de Família era que as pessoas ficassem felizes. Trabalhando em um conflito familiar a gente vê mil coisas. Naqueles casos onde não era possível fazer nada, sempre me preocupava que as pessoas saíssem tranquilas.
ConJur — Houve algum caso paradigmático?Cezar Peluso — Muitos, mas vou comentar um. Tive uma ação de investigação de paternidade, uma baiana, família inteira da Bahia, essa moça deveria ter mais ou menos 35 para 40 anos. Ela estava registrada como filha do tio. O pai não quis assumir a paternidade e o irmão se apresentou no registro civil como pai. Acontece com esse assunto de adoção que não adianta esconder, pois a pessoa capta. A mente do adotado capta, e essa senhora sabia que não era filha do tio. Ela entrou com uma ação contra os dois. Ela sofria de uma bronquite crônica que chamamos de asma psicogênica: a pessoa, quando fica nervosa, tem agudas crises de asma. Para ela era um sofrimento impressionante. Bom, ao julgar o processo, ouvi todo mundo. Não havia erro. O pai falou com todas as letras, na frente dela. Foi algo muito doloroso essa audiência para recolher as provas. Só que houve um problema jurídico, ela havia perdido o prazo de declarar a paternidade, não podia mais mexer no registro. Aí o Munir Cury, um brilhante jurista e promotor, disse que iria arguir a decadência: “Não irei deixar você sentenciar no mérito, pois passou do prazo”. Pode arguir o que quiser, pensei. Mas comigo não irá passar em branco. Dei uma sentença, uma longa sentença, reconhecendo a paternidade, que estava provada por todos os fatos e depoimentos, ela é filha legítima do fulano e não do beltrano, e terminei afirmando: “Mas, infelizmente, não posso declarar isso na sentença porque houve decadência”. O brilhante Dr. Walter Maria Laudísio, o advogado da demandante, me disse que não iria recorrer da sentença: “Isso é o suficiente para a minha cliente”, contou. Passados seis meses, o Laudísio me procurou e disse: “Ela ficou boa da asma”. Veja, você estabelece uma verdade oficial que é importante para a pessoa, e essa decisão tem a capacidade de melhorar um problema físico.
ConJur — O senhor faria um paralelo entre esse episódio da baiana com o da Comissão da Verdade?Cezar Peluso — São circunstâncias talvez de outro âmbito, não sei o que realmente essa comissão quer. Precisaria ser uma situação muito mais correlata. A verdade histórica do que ocorreu no país durante o regime militar todos sabem como foi. Há sempre um componente ideológico por trás disso. Mas o fato é que esses episódios da Vara da Família marcam muito. Senti-me até um pouco frustrado em sair da Vara de Família para ir para o tribunal. “Que pena, não vou poder mais tratar desses temas...”
Às vésperas de completar 45 anos como juiz, o ministro Cezar Peluso, do Supremo Tribunal Federal, expressa a angústia da magistratura para atender as demandas das pessoas e dá exemplos de juízes que se esgotaram de tanto trabalhar — para explicar a necessidade de que se reconheça uma carga horária diferenciada para os magistrados.
Na segunda parte de sua entrevista à ConJur, o ministro, que deixa a Presidência do Supremo Tribunal Federal na próxima quinta-feira (19/4), desafia quem o acusa de ser corporativista a mostrar que foi mais rigoroso que ele quando foi corregedor de Justiça.
Relata a habilidade e paciência que lhe foram exigidas para neutralizar a rebelião do antigo presídio do Hipódromo, em São Paulo, em 1979, e o tipo de convivência que estabeleceu com as autoridades policiais e militares durante a ditadura.

"Justiça não pode jogar para a plateia ou para a mídia"



ConJur — O senhor comentou que havia sido convidado pelo Conselho da Magistratura para trabalhar como juiz assistente da Corregedoria. Fale desse trabalho.
Cezar Peluso — Quem pode falar que foi mais rigoroso em termos de disciplina na magistratura do que eu? Essas histórias são importantes. Eu era juiz ainda em Igarapava (SP) e um dia recebi uma mensagem do desembargador Humberto de Andrade Junqueira (TJ-SP). Nunca havia falado com ele, fui pego de surpresa. Já havia sido promovido para São Paulo e ele mandou uma pessoa até minha casa: “o Dr. Humberto está convidando o senhor para ser seu auxiliar na Corregedoria”. Fui me aconselhar com um tio de minha mulher, o desembargador Cícero Toledo Pisa. “Sou juiz de vara, o que vou fazer na corregedoria?” Ele me disse que eu não tinha alternativa: “Não recuse esse convite, sobretudo vindo de um homem que nunca conversou com você. Está fazendo esse convite por causa do seu trabalho”. Está bom, pensei comigo, vou para a corregedoria. O Dr. Humberto de Andrade Junqueira me encarregou, entre outras coisas, de ser o chefe de todos os procedimentos disciplinares contra juízes. Tudo o que era ação contra juízes passava pelas minhas mãos. Dois juízes condenados criminalmente cumpriram pena com base no trabalho que realizei. Fazia as investigações, tomava depoimentos, levava a equipe da corregedoria, dando continuidade ao processo. Houve um caso famoso em Itapecerica da Serra. Fizemos um processo abrangente. Foi um processo administrativo, os juízes foram afastados de todas as funções, a procuradoria denunciou e eles acabaram condenados pelo tribunal e cumpriram pena na prisão da Polícia Civil de São Paulo. E outros nove colocamos na rua, embora não cumprissem pena. Chamávamos os envolvidos e abríamos o jogo: “Temos tantas provas contra vocês e se não forem para a rua agora iremos abrir um processo”. Nunca fizemos escarcéu com esses casos. Não jogamos para a plateia ou para a mídia. Agora vêm me dizer que eu sou corporativista? Tenha a santa paciência! Isso é conversa fiada.
ConJur — Em que outro momento de alto conflito esteve envolvido?
Cezar Peluso — Lembra-se da rebelião do Presídio do Hipódromo? Houve uma rebelião em novembro de 1979. Eu era juiz da Corregedoria. Às 11h da noite recebi um comunicado de um padre, Agostinho Duarte de Oliveira. Figura exemplar, ele foi um grande testemunha no processo contra o esquadrão da morte, conduzido pelo eminente juiz Dr. Nelson Fonseca. O padre Agostinho estava engajado na pastoral carcerária e andava dentro dos presídios no tempo do delegado Fleury e sabia que tinha visto um preso à noite sob custódia do Estado e o sujeito aparecia morto perto da via Anchieta no dia seguinte. Então os delegados envolvidos com o Esquadrão queriam matá-lo, e ele foi recolhido pelo cardeal Dom Paulo Evaristo Arns e ficou seis meses escondido no palácio episcopal. Quem o tirou de lá foi o desembargador José Geraldo Rodrigues de Alckmin, quando era corregedor de São Paulo, um homem ligado aos militares. Ele ficou indignado com o esquadrão da morte, chamou os militares aqui de São Paulo, ligados à Operação Bandeirante e disse: “Há um padre que está recolhido na Cúria porque ele foi a principal testemunha contra o esquadrão, estão querendo matá-lo, vou falar com o cardeal para soltar o sacerdote, e não quero que nada aconteça com esse padre”. Mas, voltando à história...
ConJur — A da ligação do padre Agostinho Duarte Oliveira?
Cezar Peluso — Sim, isso já foi depois desse episódio do Fleury. Ele me ligou às 11h da noite avisando que aconteceria um morticínio: a Polícia Militar estava para entrar na cadeia em rebelião, e dispostos a matar todo mundo no presídio do Hipódromo. A Rede Globo estava lá e quase me cria um problema. O padre me disse: “Você tem de fazer alguma coisa”. Mandei um carro pegá-lo e fomos para lá. Liguei antes para o meu corregedor, o Andrade Junqueira, e expliquei a situação: “Quero saber se o senhor me autoriza a ir até lá”. Precisava pegar o Ezio Donati, o escrivão da corregedoria, e levá-lo junto, pois não sabia o que iria acontecer. O corregedor autorizou a tomar todas as providências. Fomos para lá. Ficamos das 23h até 6h da manhã segurando a PMs de um lado e os rebelados do outro. Estávamos no meio de um diálogo e o infeliz de um PM joga uma bomba e quase mata as pessoas que estavam conversando, inclusive nós. Foram sete horas ininterruptas de conversa com os presos, com a PM, um clima muito tenso. Aí assumi o comando, estava falando em nome da Corregedoria, e todos obedeceram. Conversa daqui e conversa de lá, promete aqui e lá, às 6h da manhã tínhamos costurado um acordo com os presos, não houve nenhuma morte ou ferimento grave, nada.
ConJur — Não teve ter sido tarefa fácil.
Cezar Peluso — Claro que não, mas conseguimos convencer os líderes que se queixavam de que havia muito preso confinado ali, que não podia ficar mais assim, tiramos alguns deles de lá, distribuímos para outros presídios, retiramos as mulheres de lá. A Polícia Civil esta revoltada e com arma em punho, chamei o comandante da Polícia Militar e disse: “O senhor me afasta seus soldados a 50 metros do presídio, ficam todos longe”. Falei com o delegado para desarmar seus subordinados, pois com semelhante aparato não conseguiríamos conversar e negociar com os detentos. Eram cerca de 200 presos. Eles destruíram o presídio, que no dia seguinte fechou. Por volta das 6h30, já dia claro, estávamos numa sala com os principais líderes revoltosos, com investigadores, delegados. Havia um preso sentado ali num canto. Ele estava com o braço amarrado com uma longa faixa. Estávamos negociando, quando percebi que um investigador levantou-se e ficou sentado ao lado do preso enfaixado e começou a falar baixinho em seu ouvido, não sei o que ele falou. O sujeito parou, desenrolou o braço, ele tinha um estilete enorme enrolado na faixa, entregou o estilete. Se o investigador não falasse, poderia ter matado a todos nós. Mas enfim evitamos um massacre.
ConJur — Houve outro momento parecido com esse?
Cezar Peluso — Não, assim não. Vivi experiências fortes, naqueles oito anos como juiz de Família. Teve o caso de uma mulher que dizia que se eu tirasse o filho dela, ela iria se suicidar. Academicamente a minha especialidade passou a ser a área de Família. A vara de Família me ensinou um monte de coisa. Sobretudo a ouvir. Tentar entender o que o outro está dizendo.
ConJur — Qual foi seu melhor momento como juiz estadual?
Cezar Peluso — Tive vários, mas irei contar apenas um, por ser muito expressivo. Fui juiz de Família por oito anos, como disse, até que o desembargador Humberto Andrade Junqueira me convidasse para ser o seu auxiliar na Corregedoria, e eu ter aceitado. Naquele tempo os juízes auxiliares da corregedoria eram apenas três: o José de Melo Junqueira, o Hélio Quaglia Barbosa e eu. Certo dia chegou um senhor e um jovem de uns 18 anos para falar comigo. “O senhor se lembra de mim?”, disse o homem. Respondi: “Não me lembro bem, mas o senhor não me é estranho”. “Sou o pai desse garoto, cuja guarda o senhor tirou da mãe e me concedeu.” Fiz isso? “Fez. E ele hoje está cursando a faculdade e está ótimo. Vim aqui para lhe mostrar que a sua decisão foi acertada.” Tirar um menino da guarda da mãe era algo inaudito, ia contra todos os procedimentos daquela época. E não me lembro de por que fiz isso. “O senhor acertou na sua decisão”, reiterou ele. Fiquei muito feliz. E como esse caso, tive tantos outros.
ConJur — Qual foi o momento ou audiência que ficou como algo não resolvido em sua memória?
Cezar Peluso — Não me recordo de nenhum. Em alguns casos penso que eventualmente poderia ter insistido um pouco mais em alguns acordos. Eu ficava com os casais às vezes durante um ano, marcava nova audiência para conversar com eles. Na Vara de Família, ganhei muito em termos de paciência e de aprender a ouvir. Uma experiência enriquecedora de caráter pessoal. Aprender a ouvir não é fácil.
ConJur — De alguma maneira o senhor foi o iniciador da conciliação.
Cezar Peluso — O que fiz de conciliação na vara de Família…! Agora, passados 44 anos e meio na magistratura, saio com a consciência tranquila de ter cumprido meus deveres. Saio tranquilo. Faria tudo igual novamente, não há nenhum fato de que eu possa me arrepender.
ConJur — Mudando para o tema do corporativismo do Judiciário. Há um bordão repetido de que o juiz trabalha demais.
Cezar Peluso — É verdade! Tenho dois filhos juízes. Os meus dois filhos mais velhos nasceram em Santos quando eu era juiz em São Sebastião. E não conseguia vê-los como um pai qualquer acompanha seus filhos. Chegava em casa 9h da noite, eles já estavam dormindo, trabalhava de madrugada, ia dormir 4h ou 5h da manhã, lendo processos. Quando acordava às 10h da manhã, meus filhos já estavam na escola. Passei vários anos sem vê-los, sem aquela convivência diária da conversa após o jantar. Até que um dia decidi que não iria trabalhar mais à noite. Quando fui nomeado juiz de São Sebastião, tirei um mês de férias e fui para lá. Durante as férias! O juiz que me antecedeu deixou uma pilha de processos que estavam em via de prescrição. Fiquei os 30 dias de férias trabalhando para colocar em dia o serviço do outro, que estava atrasado. Naquela época tivemos vários juízes jovens que morreram de enfarte, todos por causa de serviço. O ministro Sydney Sanches teve uma ameaça de acidente vascular, ficou com a boca torta vários meses, de tanto que trabalhava. O médico falou para ele: “meu filho, não é Deus que mata, não!” Depois ele se recuperou e não ficou com vestígios ou sequelas. Vivemos uma tensão tremenda pela exigência do serviço. Os corregedores eram exigentes. Claro que havia os que trabalhavam pouco, mas eram conhecidos na magistratura, eram identificados pelo nome. E pouco respeitados por isso. Mas a maioria dos juízes trabalha e trabalha muito. Ninguém convive com o juiz para atestar isso, todo mundo acha que isso é fiada de juiz. Não é. É verdade que eles trabalham muito, não é um bordão ou cantilena corporativista.
ConJur — Mas e os 60 dias de férias?
Cezar Peluso — A sociedade não aceita isso. Não adianta tentar convencer as pessoas a esse respeito. Fui ao Senado e me fizeram esse pergunta. Respondi que o juiz trabalha muito, mas não valeria a pena tratar desse assunto, pois isso iria desgastar ainda mais a imagem da magistratura. Nós não temos horário para trabalhar. A sociedade pode exigir que o juiz tenha 30 dias de férias. E o juiz poderia exigir trabalhar 8h por dia. Bato o meu cartão, faço o meu serviço, depois vou para casa e não faço mais nada. Mas é claro que isso é impossível, isso pararia o Brasil.
ConJur — Quando saí do fórum, volta para casa e continua ruminando.
Cezar Peluso — Ruminando não, continua sentado em frente ao computador! À noite damos sentença, nos sábados e domingos não desligamos.
ConJur — Houve o caso de uma juíza de São Paulo que ordenou que o réu chegasse algemado e o senhor fez um comentário sem saber que a juíza era sua filha.
Cezar Peluso — [risos] Foi num julgamento do Supremo. “Provavelmente, por colocar o réu algemado, deve ser uma juíza nova, e deve ter ficado com receio de o réu ter alguma reação, mas isso está errado.” Nós dois morremos de rir, tanto a minha filha como eu. Ela deu muita risada no dia seguinte. Até tentei defender, pois não sabia que era a minha filha. Agora ela está na Vara de Família de Pinheiros. E o meu filho é juiz na Vara Criminal de Praia Grande.
ConJur — O Saulo Ramos fala do senhor no livro Código da Vida.
Cezar Peluso — É uma história que tem muito de verdade, mas tem muito de fantasia. Na verdade, o Saulo Ramos quer contar a memória dele, o enredo da história é o contexto em que ele coloca a memória dele sobre a política do Brasil. É uma trama bem pensada. Mas, para ele, amigo é amigo. Inimigo é inimigo.
ConJur — Foi por intermédio dele que o senhor conheceu o Sarney?
Cezar Peluso — Foi, e vou contar como aconteceu. Quando eu era juiz da Vara de Família, um belo dia o Saulo Ramos me ligou em casa. Ele era casado na época com a Lúcia, ex-mulher do Ronald Golias. [Diante da provocação de que Saulo Ramos teria “roubado” a esposa do comediante, Peluso insiste que a história não é verdadeira, Saulo havia patrocinado o divórcio de Ronald Golias e, como consequência, conhecera Lúcia, a ex-esposa, não tendo ocorrido o “tal roubo” que sempre é associado ao advogado]. Num final de semana, o Saulo me chama e pede para ir a sua casa para criarmos um projeto juntos. Fui. “O senador Sarney irá apresentar uma proposta de divórcio inserida dentro do Código Civil”, explicou ele, ao contrário do projeto apresentado pelo senador Nelson Carneiro, que foi uma lei separada. Sentamos e em um domingo inteiro fizemos esse projeto pedido pelo Sarney. Instituíamos o divórcio, mas dentro do Código Civil, mudando alguns de seus artigos. Nesse projeto, veja como a história não é justa, instituíamos que não haveria mais diferença entre filhos legítimos ou ilegítimos – algo que veio a ser consagrado muitos anos depois. Filho é filho e morreu o assunto. Isso foi em 1977. Criamos o projeto e 15 dias depois o Saulo me avisou que o José Sarney iria me convidar para defender o projeto em Brasília. “Você está brincando?”, eu disse. Mas o Sarney ligou: “Aqui é o senador Sarney. Gostaria que o senhor viesse aqui defender o projeto na Universidade de Brasília, no Congresso”. Pagaram a viagem de avião para que eu e o Saulo fôssemos a Brasília realizar a defesa técnica. Foi a primeira vez que fui a Brasília, e ao sair do avião parecia que entrava em um forno. Aquele calor abafado. Ficamos no Hotel Nacional, onde se reuniam os grandes políticos na época. Defendemos o projeto do Sarney contra o projeto de Nelson Carneiro, que disse que o nosso projeto jamais iria para frente: “Sabe por quê? Se ele cair na comissão dos códigos, nunca mais sai de lá”. Foi o que de fato ocorreu. Por isso o projeto do Sarney não vingou e ficou o do Nelson Carneiro. Foi assim que conheci o Sarney.
ConJur — Qual era o problema com a comissão dos códigos?
Cezar Peluso — Na comissão eles não examinavam. Às vezes, os projetos tramitavam 40 anos lá dentro. O Nelson Carneiro tinha toda a razão nesse ponto.
ConJur — Qual a importância, em sua trajetória, de ter dirigido a Escola Paulista da Magistratura?
Cezar Peluso — Foi uma das etapas mais importantes da minha passagem pela magistratura. Fizemos uma gestão que representou um avanço significativo na estruturação da escola. Uso o plural, pois foi um trabalho de equipe, com a participação de todos e os méritos têm que ser reconhecidos, sobretudo aos meus juízes, o Fernando Marcondes e o Rubens Rihl. A escola ganhou feição com a aprovação pelo Conselho Estadual da Educação, o que a habilitou a promover os cursos de pós-graduação com reconhecimento do título na área estadual, e com a criação dos periódicos que possui até hoje – como a Diálogos&Debates. Desde o meu mandato até hoje a escola encorpou. Ocupa hoje quatro andares, na nossa época era apenas dois. Hoje temos os auditórios, a biblioteca, a estruturação da secretaria. Todos os cursos criados tiveram sequência, pois os diretores que me sucederam foram enriquecendo a proposta, como o saudoso Hélio Quaglia Barbosa, que foi o nosso vice, ao atual, o dinâmico desembargador Armando Sergio de Toledo.
ConJur — O Quaglia Barbosa foi um fidalgo.
Cezar Peluso — Um homem e um juiz excepcional em todos os sentidos e foi ele que consolidou o nosso trabalho e fez com que de lá para cá a escola aproveitasse a infraestrutura consolidada, o que permitiu os avanços nas diretorias subsequentes. Eu ter contribuído para o atual perfil da Escola Paulista da Magistratura é algo que muito me honra.
ConJur — Como a EPM é vista no concerto geral das Justiças do país?
Cezar Peluso — Não tenho acompanhado tão de perto a atuação das escolas, mas a EPM, que conheço mais a fundo, vem cumprindo muito bem sua função. Ela está capacitando agora 1,5 mil servidores do interior na área de conciliação e mediação. Um número extraordinário, ou seja, preparar 1,5 mil funcionários para atuar na implantação da Resolução 125 do CNJ. Estamos empenhadíssimos nesse programa. É uma contribuição relevante da EPM para a magistratura.
ConJur — Como presidente do CNJ, como vê o progresso e a atuação das escolas da magistratura?
Cezar Peluso — Sem descer a atuações específicas e falando como um todo, as escolas participam desse grande movimento de alteração da cultura dentro dos tribunais em relação à administração do Judiciário. Essa é uma tarefa precípua do CNJ e as escolas da magistratura estão empenhadas na efetivação desse objetivo, ou seja, fazer com que os juízes compreendam um pouco melhor o seu papel em relação à administração. A formação do juiz como gestor. Um papel que tradicionalmente foi muito esquecido e era algo que não ocupava a atenção dos tribunais e nem dos juízes.
ConJur — Houve mal estar, na sua gestão na Presidência do STF e do CNJ, entre as associações de classe de juízes com a postura “atropeladora” do CNJ. Como está hoje a questão?
Cezar Peluso — Quando assumi a Presidência do CNJ percebi isso muito nitidamente, esse clima diria até de hostilidade por parte dos tribunais. Tive como um de meus propósitos mais importantes solucionar e esclarecer esse mal-estar. Uma das iniciativas, quando assumi a Presidência do CNJ, foi a de me aproximar, sobretudo, dos tribunais [enfático]. Reuni-me com todos os presidentes dos tribunais regionais federais, com todos os presidentes dos tribunais trabalhistas, para ouvir as razões dessa animosidade com relação ao CNJ. Foi um trabalho árduo e difícil, pois havia resíduos de ressentimentos pessoais. Hoje o clima no relacionamento com o CNJ, por parte dos tribunais e associações de juízes, é muito melhor.
ConJur — Ainda quanto à atuação do CNJ, poder-se-ia dizer que há, da parte das associações de magistrados, excesso de corporativismo? Os juízes têm dificuldade de aceitar críticas?
Cezar Peluso — Não acho que seja dificuldade de aceitar críticas. Quando a Emenda 45 foi aprovada, como não poderia deixar de ser, não havia um processo de compreensão do verdadeiro papel do CNJ, até porque ele não estava ainda funcionando. Era a criação de algo teórico. E, portanto, em um primeiro momento soava como interferência. E por isso foi tão combatido. Os juízes precisavam se adaptar à criação de um órgão que, de certo modo, iria interferir no funcionamento e nas relações regulares de juízes com os tribunais no exercício da função, entre outras coisas. Isso despertou inquietação. Hoje o CNJ tem seu papel mais definido e está num processo de amadurecimento. A gente percebe, com os novos conselheiros, uma compreensão maior de qual é o papel do CNJ na vida do Judiciário. O conselho é um órgão destinado a aprimorar o Judiciário – e essa é sua finalidade.
ConJur — O STF não deveria ter mais juízes de carreira, com tradição judicante? Não há a tendência do Executivo em retribuir favores à atuação de advogados de órgãos do governo?
Cezar Peluso — Vou responder com uma observação do grande jurista baiano João Mangabeira em um discurso famoso, na posse de um ministro do STF. Ele disse uma coisa que sintetiza bem essa questão. “O Supremo Tribunal Federal não pode ser um tribunal composto apenas de juízes de Direito, mas é um tribunal que não pode prescindir da presença de juízes de Direito.”
ConJur — A corrupção é um assunto recorrente hoje. Como administrador, diria que a corrupção causa mais prejuízo para o país do que a incompetência?
Cezar Peluso — O país perde com os dois. Não há como dimensionar onde se perde mais. Perde-se nos dois lados. Na área pública porque é uma área que não tem o controle do patrimônio. Na área privada, se é uma empresa, se há um funcionário corrupto, no outro dia está na rua. Com a aprovação da previdência suplementar o setor público será sucateado.
ConJur — O senhor se refere à aposentaria integral?
Cezar Peluso — Não terá mais. O governo está interessado em um problema imediato político que é diminuir o déficit da Previdência Social, não está interessado com a eficiência da máquina ao longo do tempo, na perspectiva histórica. Ninguém que tenha capacidade e decência irá procurar emprego no setor público, pois ninguém irá se matar para conseguir um cargo público e aposentar-se com R$ 1,5 mil ou correr o risco de fundos que ficarão nas mãos de grandes bancos. Agora restringiram até a participação dos bancos públicos, que era de 40% e ficou reduzido para 20%. Quem vai querer ir para o setor público?
ConJur — No setor público, e na magistratura em especial, há um desânimo na carreira?
Cezar Peluso — Completamente. Mas não de abandonar a carreira, o problema está no recrutamento. É possível identificar quem é vocacionado para a função e quem vem para a magistratura para arrumar emprego. Antes havia advogados famosos no interior que fecharam seus escritórios para ingressar na magistratura. Promotores que deixavam a carreira para vir para a magistratura. Mozar Costa de Oliveira, um jesuíta que foi meu colega, um homem brilhante, tinha uma tese em latim sobre o Francisco Suárez. O Mozar era promotor de 3ª entrância, fez concurso junto comigo para a magistratura, tirou o primeiro lugar. Aniceto Lopes Aliende, que veio de Presidente Prudente, é um desembargador dos mais brilhantes do tribunal. Eram homens vocacionados que deixaram bancas de advocacia para serem juízes. Hoje, qual advogado larga uma boa banca para se tornar magistrado? Só temos os meninos recém-saídos da faculdade.
ConJur — E os juízes que entram pelo quinto constitucional?
Cezar Peluso — Acho que o sistema atual é muito pior do que o anterior, pois antes era o tribunal que escolhia os componentes da lista que era encaminhada para o governador, para ele escolher um dos três. No TJ-SP, que conheço bem, não posso falar do Brasil num modo geral, na minha época os desembargadores escolhidos pelo tribunal para compor o quinto constitucional eram juristas da mais alta qualidade. Cito um exemplo. Logo após a fundação da PUC pelo cardeal Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta, o diretor da Faculdade de Direito era o Dr. Arruda Alvim, considerado um dos maiores civilistas dos últimos 50 anos. Tinha uma banca de advocacia apenas para dizer que existia, mas ele era mesmo professor e o diretor da Faculdade de Direito da PUC. Um belo dia ele foi surpreendido com uma comunicação do TJ-SP informando que havia sido escolhido para integrar a lista para o quinto constitucional dos advogados para enviar para o governador, que na época era o Jânio Quadros. Ninguém havia perguntado nada a ele, se queria ou não ingressar no tribunal. Ele me contou anos depois que entrou em pânico: “Nunca quis ser juiz, minha vocação é ser professor. Estava em uma faculdade que mal começava. Fui até o cardeal e pedi a ele para fazer uma carta ao governador dizendo que o senhor não pode abrir mão do meu cargo, porque a PUC está começando agora e é preciso que eu fique”. O cardeal disse para ele: “Professor, é melhor a gente não fazer essa carta senão ele nomeia o senhor”. E ele não foi nomeado. Veja, o Tribunal de Justiça escolhe um homem de qualidade, um jurista de primeira mão, e põe na lista sem consultá-lo. Darei um segundo exemplo. Havia em Campinas um curador geral, o Dr. Silvio do Amaral. Estava no último degrau para ser procurador. Era uma pessoa brilhante. Recebeu um telefonema do Dr. Frederico Marques, um eminente desembargador de São Paulo. “Estou ligando para o senhor para informar que seu nome foi incluído na lista do quinto do Ministério Público. Aviso para o senhor não acreditar na conversa de ninguém dizendo que o ajudou, seu nome foi incluído na lista por merecimento em razão dos pareceres que emitiu”. 
A criação do CICs e a EPM
O CIC — os Centros de Integração da Cidadania — foi um dos projetos de que Cezar Peluso participou com maior empenho, na época em que Mario Covas se candidatou ao Governo do estado de São Paulo, no início dos anos 1990. Hoje, esse programa não tem a relevância que ganhou na época, sobretudo pelo surgimento de outros programas de atenção ao cidadão. Segundo o site da Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania, o CIC é um programa que visa proporcionar o acesso à Justiça, por intermédio de serviços públicos de qualidade para a população e o incentivo à cidadania comunitária. Para isso, conta com dez postos fixos localizados em regiões periféricas da cidade de São Paulo: Norte (Jaçanã), Sul (Jardim São Luis, Capão Redondo e Jabaquara), Leste (Itaim Paulista) e Oeste (Jaraguá), além de Guarulhos, Ferraz de Vasconcelos, Francisco Morato e Campinas, com atendimento à população de segunda a sexta-feira, das 9h às 17h.
ConJur — Como surgiu essa ideia de reunir num mesmo local um juiz, um promotor, um delegado, como um posto avançado de atenção ao cidadão que vive nos bolsões de pobreza e violência da periferia?
Cezar Peluso — Quando o Mário Covas foi candidato em 1990, havia um grupo chamado Centro Nacional de Pesquisa, com a incumbência de estudar, fazer pesquisas de caráter teórico e apresentar propostas de governo. Esse grupo era comandado pelo professor Antonio Angarita e por Vânia Santana, ligados à Fundação Getúlio Vargas, ambos da equipe de Covas. Esse centro organizava reuniões com lideranças, como o José Afonso da Silva, o eminente jurista Alberto da Silva Franco, criador e diretor do Instituto Brasileiro de Ciência e Criminologia (IBCCrim), os desembargadores Adauto Soanes, Antonio Carlos de Castro Machado, Ranulfo de Melo Freire, Ercílio Cruz Sampaio, entre outros. Enfim, representantes do Judiciário, do Ministério Público, da Polícia Militar, advogados. Nos encontros, discutíamos propostas concretas de ação. Numa das rodadas, uma líder comunitária, a Lurdinha, disse: “Vocês não fazem ideia do que o povo pensa do Judiciário”. Ela organizou, então, um encontro em um bairro distante, Cidade Kamel, num ginásio do Estado, com uma centena de pessoas. Ficamos a tarde inteira lá, ouvindo os comentários da população sobre a percepção da Justiça, a ausência do Estado, os problemas de segurança. A ideia que aquele grupo de cidadãos da periferia tinha de autoridade era a da Polícia Militar, que de vez em quando aparecia para atender alguma uma ocorrência.
ConJur — Como transcorreu essa reunião?
Cezar Peluso — Foi uma abertura de mentes, e eu fiquei chocado ao entender que a Justiça não chegava até a periferia. Foi uma experiência forte, pois nada substitui o contato concreto com a realidade. Voltei do encontro motivado, comecei a pensar e me coloquei a questão ao contrário: por que, em vez de estudar fórmulas de trazer o povo para os órgãos estatais, o Judiciário, as Secretarias, por que não levá-los até lá, até a periferia? O Estado tem de marcar presença nesses lugares, pois existe um vácuo ali. E esse vácuo é ocupado pela marginalidade, pelos traficantes. Pior, paira certo ceticismo entre a população carente com relação à Justiça, percebida como distante e ausente; e com relação à polícia, que só aparece para fazer batidas, para reprimir, não para proteger. Então, era preciso que o Estado ocupasse esse espaço. O Judiciário fosse para lá. Daí veio a ideia de criar um núcleo, para levar a Justiça até os excluídos das regiões mais desprovidas e colocar em um mesmo prédio juiz, promotor, assistente social, delegado, a unidade policial militar. Tudo ali, tudo junto. Um lugar que simbolizasse a presença do Estado. “Para que tem esse prédio aí?”, perguntariam os moradores. Depois, a convivência próxima, a garantia de que os CICs eram o lugar onde se resolvem os problemas. O morador da periferia, sem precisar tomar três conduções, chegaria com o seu problema e seria atendido no mesmo lugar, saindo dali com a questão resolvida, fosse um litígio de trabalho, a cédula de identidade, alguma queixa. E mais: criando com isso a consciência de Direito, de cidadania. No fim, até o projeto físico, a imagem do prédio, cheguei a desenhar!
ConJur — Sua experiência como juiz pesou nessa ideia?
Cezar Peluso — Sim, pois no interior do estado de São Paulo os fóruns funcionam bem. Por que? Porque num mesmo prédio ficam o juiz, o promotor na outra sala, a Delegacia de Polícia embaixo e o Batalhão de Polícia no fundo do quintal. Quando era juiz em Igarapava, tinha um delegado de Polícia que havia sido professor primário, um promotor que foi excelente, o Dr. Rubens Marques, e tinha o destacamento policial militar no fundo do prédio. Todo dia passava e conversava com todos, sabia de tudo o que acontecia. Passei três anos como juiz ali e não houve nenhum crime de morte, nunca fiz júri em Igarapava. É como se a tranquilidade da Comarca dependesse da tranquilidade e harmonia do pessoal encarregado da segurança. E pensei: por que não reciclar essa experiência hoje?
ConJur — E como foi aceita a ideia?
Cezar Peluso — Houve uma reunião em que expus um esboço desse projeto, havia até um desenho do que eu achava que deveria ser uma característica “física” desse espaço comunitário, pois é preciso que o povo o identifique. Eu dizia o seguinte: o Estado pode economizar bastante, pois em vez de construir um prédio para abrigar as varas e juizados, outro para abrigar as procuradorias, outro para a Delegacia de Polícia, outro para o Batalhão da Polícia Militar, pode construir um espaço simples, mas com uma identidade arquitetônica, em que todos estejam representados. Apresentei o projeto, o professor Angarita gostou muito e o passou para uma assessoria técnica. O Mario Covas aprovou a proposta, o Luiz Antunes Caetano marcou uma reunião e contou que o então candidato havia se entusiasmado com o projeto – inclusive chegaram a mencioná-lo em programas de campanha na televisão.
ConJur — Com a derrota de Covas, o projeto ficou engavetado?
Cezar Peluso — Sim, mas na campanha de 1994, algumas pessoas do mesmo grupo voltaram a me convidar. Eu disse: “Já tenho o projeto pronto. Vamos retomá-lo?” Fazia parte desse grupo o Belisário dos Santos Júnior, a quem reapresentei a proposta. Depois, o Belisário foi escolhido secretário da Justiça e assumiu a implantação do CICs. Ele se empenhou em implantar esses centros. Claro, outros fizeram sugestões importantes, como a de incluir o Instituto de Identificação, para expedição da Cédula de Identidade; ou criar um espaço para reuniões da comunidade, uma espécie de anfiteatro onde pudessem se reunir. Depois, houve a parceria com a CDHU e vários outros serviços do Estado que podiam estar juntos, o que foi ótimo. Quanto mais o Estado alarga o campo de prestação de serviços, melhor.

A crise do Supremo, os holofotes e a catarse da mídia


Em seus nove anos no Supremo Tribunal Federal, o ministro Antonio Cezar Peluso, que deixa a Presidência da Corte na próxima quinta-feira (19/9), enfrentou muitos momentos de tensão. Mas nenhum como o que o STF foi acusado de facilitar Habeas Corpus para o banqueiro Daniel Dantas. O então presidente da corte, Gilmar Mendes, ficou com todo o crédito pelo enfrentamento com o governo. Só agora Peluso revela a sua participação no episódio. Coube a ele mostrar ao presidente Lula e aos ministros palacianos que a situação policial fugira de controle — e que era preciso cortar cabeças. O então chefe do serviço de inteligência, Paulo Lacerda, foi demitido no mesmo dia.
Nesta terceira parte da entrevista dada à revistaConsultor Jurídico, Peluso narra o episódio e faz um histórico da evolução das ferramentas que aperfeiçoaram o funcionamento do STF. Por ocasião do episódio em torno de Daniel Dantas, quando mais de cem juízes federais assinaram abaixo-assinado em defesa do colega Fausto De Sanctis, Peluso chegou a defender que todos os rebelados respondessem perante a Corregedoria pela insubordinação.
Na entrevista, ele analisa também a queda de braço entre a imprensa e o tribunal no caso do Mensalão, lamenta o advento do populismo judicial e os parcos resultados do estilo justiceiro de fazer Justiça. O ministro defende a exibição de crucifixos nas salas de julgamentos para lembrar a todos de um julgamento injusto e reafirma suas críticas à transmissão de julgamentos ao vivo pela TV Justiça.
Leia a terceira parte da entrevista:
ConJur — Como ministro do STF, houve algum momento de crise em especial?
Cezar Peluso — Sim, houve no caso do banqueiro Daniel Dantas, durante a desastrada Operação Satiagraha. Houve uma crise séria após a concessão do habeas corpus pelo presidente do STF, Gilmar Mendes, o que foi depois referendado pelo plenário. Foi um período tenso, com as escutas telefônicas clandestinas contra o Gilmar Mendes [denunciadas pela revista Veja, envolvendo o diretor da Polícia Federal, Delegado Paulo Fernando da Costa Lacerda]. Eu era o vice-presidente do Gilmar Mendes, e me dava bem com ele, em nome da instituição. Fui acompanhá-lo a uma reunião no Palácio do Planalto. Na mesa da reunião estavam o presidente Lula, o general Jorge Felix, do Gabinete de Segurança Institucional, o Gilberto Carvalho, chefe de Gabinete, discutindo a crise. O Nelson Jobim também estava ali. Fiz uma defesa enfática. “Presidente, o senhor vai me perdoar, mas está no momento virtuoso do seu governo e se o senhor não tomar agora uma atitude enérgica, igual à que o Geisel tomou, o senhor perde o controle da situação. Essa decisão tem de ser tomada agora para não permitir que a situação se deteriore, pondo em risco o STF. Isso irá desencadear uma crise política que, além de prejudicar o Supremo, afetará o seu projeto político. O senhor está em um momento em que só existe uma alternativa: tomar uma atitude igual à do Geisel [referência à crise em que Ernesto Geisel demitiu o ministro do Exército Sílvio Frota]. Passados três dias, o presidente Lula mandou o delegado Paulo Lacerda lá não sei pra onde.
ConJur — E os participantes concordaram?
Cezar Peluso — Falei para o general Jorge Felix: “Nós dois estamos interessados nas mesmas coisas, só que os métodos que o senhor preconiza não darão resultado. Agora é o momento de decisões radicais, e temos de tomar uma atitude firme em defesa do STF. Não é o ministro que está sendo julgado. É a instituição que está em risco”.
ConJur — Nesse período de nove anos em que o senhor participa do Supremo houve a introdução de uma série de instrumentos, como a das súmulas vinculantes, a repercussão geral. O que significou isso? Significou a atribuição ao STF de uma função ativa na vida política do Brasil. Foi a implantação desses institutos de modo definitivo que levou a sociedade, e particularmente o segmento político, a recorrer ao STF, valendo-se desses instrumentos para fixar certas questões em conflitos que antes eram resolvidos, ou não, na esfera política. Esses instrumentos deram à sociedade, e em particular à classe política, a oportunidade de recorrer ao Supremo e exigir que ele se posicionasse. Como resultado atribuiu-se ao Supremo um ativismo que seria incompatível com sua função, pois ele tem uma posição passiva. O STF, como o Judiciário em geral, não toma atitudes ou iniciativas. Ele é provocado, recebe a demanda e, quando entende que cabe dar resposta, o faz e ponto final. Os problemas trazidos, resultando na chamada “judicialização da política”, são de certo modo reflexo da incapacidade do próprio mundo político em resolver as crises em seu próprio âmbito. Mas é também consequência dessas vias disponíveis que permitem chegar ao Supremo e pedir sua posição. Isso deu ao STF uma dimensão política e social até então jamais conhecida em sua história.
ConJur — O senhor concorda que a Constituição de 1988 só começou a vigorar a partir de 2000?
Cezar Peluso — Não sei se começou a funcionar, mas a partir do ano de 2000, com a intervenção do STF, ficou mais clara a possibilidade de fazer valer a Constituição. Na Constituição anterior a sociedade não tinha meios de chegar ao Judiciário. Se houvesse uma representação de inconstitucionalidade, o presidente da República era quem podia ou não encaminhar para o Supremo. Agora qualquer cidadão que está legitimado e pode questionar. E os políticos também. Quando tivemos de nos pronunciar sobre a questão da fidelidade partidária, creio que meu voto foi importante. Pode não terem gostado da solução, mas o voto é vinculado ao partido. Acabamos com aquela espécie de mercado político que acontecia após as eleições: o governo tomava posse e oferecia vantagens para quem teoricamente seria da oposição, mas que se bandeava para o governo em troca das benesses, saindo para isso do partido.
ConJur — E no caso da Lei da ficha Limpa?
Cezar Peluso — O meu voto foi claro. Acho que é legitimo que a sociedade exija candidatos com bons antecedentes e que tente restringir as possibilidades de corrupção e desvio de funções. Isto é legitimo. Concordei com tudo isso, mas o que não posso concordar é em aplicar uma lei para fatos já praticados. Disse isso no meu voto e repito: nem durante a ditadura militar houve tal medida. Não conheço nenhum lugar no mundo, [enfático] nem na Rússia comunista se fez isso: criar uma lei para qualificar um ato já praticado. Não concordo. Já ouvi opiniões de advogados e o que eles me disseram foi o seguinte “Não se impressione com uma decisão tão estranha e tão esdrúxula, pois nunca mais tomarão outra igual”.
ConJur — Qual seria a vocação do Supremo? Julgar tudo ou apenas se pronunciar sobre os grandes temas constitucionais que afetam a todos os cidadãos?
Cezar Peluso — A vocação do Supremo são os grandes temas. Não é isso o que acontece agora, mas com o andamento da reforma teremos probabilidade de que o Supremo venha a se dedicar ao que deve. Ele só julgará aquilo que tiver repercussão, relevância social, institucional, política ou econômica para o país. Senão, não julga. O STF fará o que faz a Suprema Corte americana. No ano retrasado, ela julgou apenas 99 casos. Em 2005, rejeitou revisar o polêmico processo de Terri Schiavo, a doente que vivia em estado vegetativo havia 15 anos, por considerar que não era um caso relevante para ser julgado. O Supremo americano faz isso: escolhe as causas que julga a partir da relevância que pode ter para o país. E isso é o que devemos começar a fazer por aqui. Mas nesses nove anos o que tivemos foi a batalha para tentar zerar o acervo de processos que se acumularam por tantos anos. Esse cenário mudou com a introdução de dois mecanismos da mais alta importância na recuperação da missão do Supremo. O primeiro foi a súmula vinculante; o segundo, a repercussão geral. No instante em que começar a se avolumar o acervo das súmulas vinculantes diminuirá o número de pendências. Esse é o primeiro instrumento. O segundo, a “repercussão geral”, define que nenhuma causa será julgada pelo Supremo se não for capaz de produzir uma repercussão geral. Ou seja, para o Supremo julgar uma causa ela precisa ser importante em termos sociais, políticos e econômicos para o país, tem que transcender os interesses individuais daquele processo. Porque se o vizinho sem querer matou a vaca do outro fazendeiro, isso é uma questão de responsabilidade mas que não repercute na vida nacional, então não há motivo para ficar discutindo vinte anos até chegar ao STF.
ConJur — Num mundo de mudanças rápidas, com novas áreas como biotecnologia, biogenética, a súmula vinculante não poderia engessar a Justiça?
Cezar Peluso — Não, porque o sistema de súmulas vinculantes e de repercussão geral é aberto e o próprio regimento do STF regulamenta a revisibilidade. Todas as posições são passíveis de revisão, caso mudem as condições históricas, econômicas e sociais. Quando surgirem circunstâncias capazes de influir numa mudança de posição do Supremo, as súmulas serão revistas.
ConJur — A súmula vinculante não tiraria do juiz a prerrogativa de julgar de acordo com sua consciência?
Cezar Peluso — Mas isso seria outra manifestação de excesso de suscetibilidade. A súmula não é algo “oracular”, como se Deus desse ao Supremo o poder de ditar uma sentença. O STF não fixará sentenças a partir do nada. Como nasce uma súmula? Um juiz decide desse jeito, sua sentença vai para o Tribunal, que decide do mesmo jeito. A causa sobe para o Superior Tribunal de Justiça, que decide do mesmo modo. Vai então para o Supremo, que a confirma. São milhões de pequenas decisões, trabalho de reflexão de milhares de juízes que decidem com uma visão comum. E então o STF diz: “Diante de tanto consenso, é hora de fixar uma posição”. E está criada a súmula. De onde veio a súmula? Do pensamento dos juízes! Quem fixa a súmula são os juízes, será que não percebem? Da mesma forma, as revisões das súmulas nascerão de contribuição dos próprios juízes. Não é possível continuar tendo decisões contraditórias, um juiz decide assim, outro decide daquele jeito, e a sociedade perde a segurança. 
ConJur — Há muitas súmulas vinculantes?
Cezar Peluso — Quase trinta. Devemos aprovar mais algumas, iremos converter de súmulas ordinárias em súmulas vinculantes. Precisamos de mais súmulas vinculantes, estamos um pouco atrasados nessa produção.
ConJur — Como funciona esse processo?
Cezar Peluso — O ministro ou qualquer pessoa pode propor, depois de uma série de decisões uniformes no mesmo sentido. Faz-se um pequeno processo. As pessoas podem opinar, sai um edital, depois é ouvida a comissão de jurisprudência, e as procuradorias gerais e o plenário decide. Temos muitos assuntos que mereciam já ter se transformado em súmulas. Um dele é a questão da guerra fiscal. Temos mais de 20 decisões dizendo que não se pode conceder nenhum favor fiscal sem autorização do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz). E os estados continuam concedendo, pois é preciso uma sumula vinculante para colocar um fim a essa guerra dos incentivos fiscais.
ConJur — Que organização da sociedade tem participado desse movimento?
Cezar Peluso — Não tivemos nenhuma proposta formal de súmulas vinculantes por parte de entidades ou organizações. Existem sugestões informais de advogados, mas formalmente nada.
ConJur — Nem por parte da OAB?
Cezar Peluso — Não. Qualquer classe ou pessoa que ache que uma matéria já foi decidida tantas vezes pelo Supremo e que seria importante estabilizar aquela decisão pode pedir, não há restrição alguma. Estamos um pouco inibidos, há vários assuntos que estão bem sedimentados e que poderiam ser objeto de súmulas vinculantes. Na minha gestão fizemos um levantamento de todas as súmulas produzidas pelo Supremo. Produzimos mais de 700 súmulas, e nesse levantamento das súmulas antigas vimos quais tratam de assuntos atuais e que poderiam se tornar vinculantes. Fiz uma proposta para o plenário: há umas duas dezenas de súmulas que quero aprovar antes da minha saída. Mas isso ainda é pouco.
ConJur — O senhor tuíta? 
Cezar Peluso — [enfático] Não sei lidar com isso. Não sei como funciona. Não tenho o mínimo interesse em participar do twitter.
ConJur — O ministro Gilmar Mendes usava o twitter para adiantar o dia em que daria, por exemplo, resposta àquele caso do menino Sean Goldman, que a mãe trouxera dos Estados Unidos sem o consenso do pai. Houve excesso de exposição naquele episódio pelo então presidente do STF?
Cezar Peluso — Isso depende das características da personalidade de cada presidente do Tribunal. Cada um tem o seu modo de entender o relacionamento com a opinião pública e de atuar. O Gilmar tem uma visão diferente da minha, pois sou mais retraído. Mas os meus canais de comunicação funcionam muito bem e não preciso aceder ao twitter.
ConJur — O historiador Marco Villa afirmou que agora a Eliane Calmon precisa trabalhar e mostrar provas. Ela tem algum projeto político?
Cezar Peluso — Há até uma suspeita. Na revista Piauí ela declarou que não tem. Mas até agora ela não apresentou resultado concreto algum, fez várias denuncias. Ela está se perdendo no contato com a mídia e deixando de lado o foco, a procura de resultados concretos. No mês de setembro ela sai, retorna para o tribunal dela, que é o STJ. Termina o mandato e volta. São apenas três meses. Que legado deixou?
ConJur — O que o senhor achou de o presidente do TJ-SP propor a confrontação de holerite?
Cezar Peluso — Foi um pouco de ingenuidade fazer essa proposta. Ele se acha na obrigação de não ficar quieto quando a ministra Eliana Calmon faz alguma declaração para a imprensa. Ela pode ser bem intencionada, mas até agora não existe resultado concreto algum, nem a apuração dos supostos bandidos de toga disse que disse existir até agora não deu em nada. Existe o caso que está no STF sobre o Tribunal do Tocantins, mas isso começou na gestão do corregedor passado, quem preparou tudo aquilo foi o ministro Gilson Dipp, ela não colocou a mão em nada. Isso esta no STJ há anos. É uma situação velha. Ela está tirando proveito disso como se tivesse alguma ligação com sua gestão. Tudo aquilo já havia sido feito. Em termos de trabalho dela, parece que está desenvolvendo uma serie de procedimentos nos tribunais, mas até agora não apareceu nada. Ela se deixou envolver por essa coisa efêmera que é a aparição na mídia. Ela explora isso.
ConJur — Mas essa atração é forte, como aconteceu com o ministro Sidney Sanches, que era presidente do STF e comandou o ritual do impeachment de Collor.
Cezar Peluso — Isso acontece. Basta lembrar-se de quando o ministro Joaquim Barbosa acatou o recebimento da denúncia contra os envolvidos no episódio do mensalão? Foi aplaudido em um bar do Rio de Janeiro, foi lançada a candidatura dele, e ele até gostou da ideia. Quando você se vê dentro da mídia, sendo o foco, tudo centralizado em você, tudo pode passar pela cabeça. É natural. Perguntei ao presidente Sarney, ele é meu amigo, se achava que a ministra Calmon tinha intenções políticas. Ele disse: “Se até pela cabeça do ministro Joaquim Barbosa passou isso, pode passar pela cabeça dela”[risos]. Mas ela disse que não. Mas ela se sente bem nessa postura.
ConJur — A ministra fala com grande entusiasmo quando diz que só pode entrar no Tribunal de Justiça de São Paulo no dia em que o sargento Garcia prender o Zorro.
Cezar Peluso — E a imprensa repercute, pois dá retorno. Diz que a estrutura do Judiciário é arcaica. Mas não ocorre nada disso. Nada e nem ninguém podia ou pode impedi-la jamais que de fazer qualquer inspeção no Tribunal de São Paulo. Quem poderia impedi-la de vir a São Paulo? Na competência dela, como corregedora, pode fazer inspeção em qualquer lugar.
ConJur — Mas a decisão recente do Supremo reforçou o papel da Corregedoria do CNJ.
Cezar Peluso — Mas foi algo apertado, 6 votos a 5. Foi algo extremamente discutido. Não foi algo tranquilo, não, não foi um 11 a 0. Quem decidiu esse resultado foi a nova ministra, Rosa Maria Weber, estava 5 a 5. Então não foi algo tão tranquilo assim.
ConJur — O senhor estava entre os 5 contra.
Cezar Peluso — Eles acabaram reconhecendo que o CNJ pode até provocar leis. Como pode uma coisa dessas? Particularmente não concordei e nem concordo. Não se pode reconhecer poderes absolutos para o governo ou para instituição alguma. Tem de ser feito tudo dentro da legalidade.
ConJur — E o caso do Tribunal do Mato Grosso?
Cezar Peluso — Também é coisa antiga. E não ficou em panos quentes, não. O ministro Celso de Mello acatou uma liminar que paralisou o processo. Isso também não foi obra da atual corregedora. Ela nem pôs a mão, quem começou isso foi o Gilson Dipp. E ai discutindo o negócio da competência do Conselho, o Celso de Mello suspendeu a decisão, provavelmente agora retome o curso normal do processo. Eu não conheço o processo, consta que os desembargadores de lá teriam recebido dinheiro e encaminhado para a maçonaria. Eram diferenças de salários atrasados a que eles teriam direito e decidiram receber de uma vez, mas foi encaminhado para a maçonaria. Não foi fraude no sentido de falsificar alguma coisa. Eles receberam mesmo e passaram o dinheiro para a maçonaria. Temos aproximadamente 20.000 juízes no país, e nesse universo ou num universo de 20.000 profissionais de qualquer categoria, claro que iremos encontrar gente não correta.
ConJur — No caso do Mato Grosso houve a prática do nepotismo cruzado, o presidente da Assembleia contratava o filho do presidente do Tribunal.
Cezar Peluso — Mas isso já acabou, quando baixamos a súmula vinculante acabaram esses casos todos. E isso terminou. Mas precisávamos de mais súmulas vinculantes.
[A súmula vinculante nº 13 diz “A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal”.]
ConJur — O jurista português Joaquim José Gomes Canotilho diz que se escandalizou na primeira vez em que assistiu no Brasil a TV Justiça. Depois, reconsiderou, concedendo que talvez seja mais transparente televisionar as audiências do Supremo. O que o senhor pensa?
Cezar Peluso — Tenho uma restrição pessoal quanto ao excesso de exposição dos julgamentos. É uma posição conhecida e que já manifestei diversas vezes. Continuo a insistir nela, embora seja uma restrição absolutamente inútil, pois o fato é irreversível. Não há a mínima possibilidade de alteração desse quadro. A sociedade receberia isso como um retrocesso e uma tentativa do Supremo em esconder as razões de suas decisões. E a sociedade não toleraria isso. Particularmente acredito que essa não é a melhor forma de deliberar. A experiência no resto do mundo mostra ser mais proveitoso quando se discutem previamente e reservadamente as decisões. Nessa situação os magistrados têm a oportunidade de debater as questões em outro clima. Estar exposto à câmera de uma TV altera o modo de ser e comportar de qualquer pessoa, não apenas a do juiz. O que é absolutamente humano e natural. E isso nem sempre é bom para a imagem da Corte.
ConJur — Não há a tentação, por parte dos ministros, em entrar no clima do show? Com pareceres longos e pernósticos?
Cezar Peluso — Diante da presença das câmeras de TV eles se veem na obrigação de expor seus pontos de vista de maneira mais dilatada do que fariam se a decisão fosse tomada privadamente. Isso é uma consequência prática do sistema e que eventualmente pode conduzir a alguns excessos. São as consequências da interação entre a pessoa e a câmera de TV.
ConJur — Os juízes e sobretudo os ministros do STF não continuam escrevendo sentenças para a “posteridade”, em vez de serem diretos e se dirigirem ao cidadão que fez a demanda?
Cezar Peluso — Nesse sentido o Supremo é menos pródigo que os tribunais, que costumam produzir longas citações de doutrina ou jurisprudência. O que os ministros fazem, quando os votos são menos abreviados do que deveriam, é expor razões pessoais considerando que certos temas que aparecem pela primeira vez devem ter um tratamento mais profundo. Por isso produzem votos mais longos. Mas acho que na verdade a prática judiciária ganharia se conseguíssemos ser mais breves em algumas intervenções.
ConJur — Há uma tendência hoje, não só no Supremo, mas também no STJ, de estar mais alinhado com a opinião pública?
Cezar Peluso — Há uma tendência. Não sei o que vai acontecer, mas é preocupante. Há uma tendência da Corte em se alinhar com opinião. Dependendo dos novos componentes.
ConJur — É difícil saber qual a decisão certa e saber que ela ira desagradar o vizinho? É difícil para o juiz tomar decisão conforme a convicção?
Cezar Peluso — Nunca tive dificuldade nisso. Mas em certas circunstâncias a gente percebe que a opinião pública exerce uma pressão ou influência muito forte. 
ConJur — No caso do julgamento do mensalão, o senhor acha que a imprensa está promovendo uma queda de braço com o Supremo para forçar uma decisão?
Cezar Peluso — Uma coisa aqui ou outra ali pode ser, mas não vejo como uma orientação de caráter geral na imprensa. Até porque certas atitudes sempre existiram, se os meios de comunicação acham, por exemplo, que certo ministro irá votar a favor dos envolvidos, eles o agridem. Não sei se seria possível dizer que estão querendo criar um ambiente favorável à condenação. Não sei quem irá ganhar, pois ninguém comenta. Nenhum ministro comenta nada sobre o mensalão, é como se fosse um tabu, receio de que algo acabe vazando para os meios de comunicação. A convivência com os juízes dentro do tribunal é algo rarefeito, faz se um comentário aqui, uma crítica ali. Mas no caso do mensalão não se fala absolutamente nada, parece que todo mundo tem medo do mensalão. A impressão que dá é que os ministros estão preocupadíssimos, pois se vazar alguma coisa a imprensa cairá de pau. Então entre nós não se conversa.
ConJur — O que o senhor achou daquela reportagem da revista Piauí, que ocupou duas edições?
Cezar Peluso — A revista perdeu uma belíssima oportunidade de produzir algo que ainda não foi feito, que é um estudo profundamente sério e objetivo do funcionamento e da importância do Supremo Tribunal Federal. A reportagem foi atraída por um viés muito pessoal sobre a maneira de ser dos ministros, contando detalhes que não acrescentam nada. Acho que o enfoque deveria ser conhecer a Corte como tal, em que sentido os ministros decidem em questões específicas.
ConJur — E a questão do crucifixo?
Cezar Peluso — Leu o artigo do Paulo Brossard? Notável, ele põe as coisas no lugar. O crucifixo não é nenhum problema de ordem religiosa, é cultural, ele não está ali representando a religião, e sim representando um julgamento injusto. Há um livro famoso de um ex-membro da corte constitucional da Itália, Gustavo Zagrebelsky [Il «crucifige!» e la democrazia] em que ele discute as afirmações dojurista e filósofo austro-americano Hans Kelsen.  Kelsen dizia que o julgamento de Cristo foi o julgamento mais democrático da história, pois Pilatos agiu com um republicano. Quando ficou em dúvida, ele deixou a decisão na mão do povo. E o que Zagrebelsky mostra no livro é que essa decisão foi mais a antidemocrática que possível, pois foi uma decisão em que o povo foi usado como instrumento de uma ideologia para oprimir um homem inocente.
ConJur — O julgamento ficou nas mãos dos sacerdotes.
Cezar Peluso — E eles perguntaram para o povo o que eles queriam: Barrabás ou Jesus? Deu no que deu, omissão e manipulação.
ConJur — O senhor teve uma carreira notável, uma obra completa. Mas chega ao final e se vê envolvido nessa situação pirotécnica e, na visão remota da população, que não sabe nada do que de fato acontece, enxergam um escândalo. Como é que o senhor se sente?
Cezar Peluso — Resumiria isso numa expressão: é mais fácil atirar pedra nos outros do que usar as pedras para construir alguma coisa. Rende mais é mais bonito. Mais que os 15 minutos de glória, a opinião pública também é uma volúvel, transitória e passa e não fica nada. O importante para a instituição é o que se faz e que reforce a instituição como tal.
ConJur — Personalidades como o juiz Fausto De Sanctis, o procurador Luiz Francisco de Souza, a ministra Eliana Calmon ou o ministro Joaquim Barbosa têm certa semelhança. Alcançam grande visibilidade porque existe uma demanda por parte da população por esse tipo de atuação. A tendência é que surjam mais e mais personagens com esse estilo?
Cezar Peluso — Não tenho elementos para pensar no longo prazo, mas fico com a sensação ou expectativa de que não continuará assim. Não sou capaz de profetizar nada, a gente tem esperança de que a sociedade incorpore certos valores que estão sendo considerados ultrapassados. É uma sociedade imediatista, de consumo de massa e que tem valores de satisfação imediata. As coisas do espírito estão sendo deixadas de lado, a preocupação ética não é uma verdade histórica. Entre as pessoas que vão para a rua fazer campanha contra a corrupção há muita gente com uma vida profissional absolutamente antiética, como se só a corrupção dos poderes públicos fosse o único mal do país. E na verdade a corrupção dos poderes públicos é nada mais do que um epifenômeno da corrupção que está arraigada na mentalidade e na cultura de nossa sociedade. Como eu já disse quando li aquela pesquisa, o que se pode esperar de uma juventude capaz de afirmar: “Para ser bem sucedido economicamente na vida sou capaz de fazer qualquer coisa”? Desse tipo de sociedade pode sair, em termo de poder público, o quê? Exatamente o que estamos assistindo agora.
ConJur — Mas esse fenômeno não é apenas brasileiro.
Cezar Peluso — Há uma diferença substancial, não podemos comparar a situação do Brasil com a situação dos países escandinavos, por exemplo. O último grande escândalo na Finlândia, para citar um caso. O primeiro ministro fez o que? Fez um nada, parece que havia recebido a contribuição de uma companhia para a campanha eleitoral. Isso foi o escândalo do país! Se fosse entre nós ou nos Estados Unidos, não teria havido repercussão nenhuma. Existe uma educação do povo a esse respeito do respeito pela coisa pública na Finlândia, que nós não temos.
ConJur — O fato de termos uma nova classe média em ascensão, buscando estudar na universidade, no longo prazo não trará um resultado diferente? Cezar Peluso — Mas essa classe está ascendendo ao consumo, à posse de bens, a questão de valores passa por outro crivo. Quanto ao ingresso no ensino superior, há uma diferença muito grande entre preparar intelectualmente o povo e educar o povo. Pode existir uma elite com há na China hoje, educada intelectualmente e que funciona, mas quais são os seus valores fundamentais, além da economia, do desenvolvimento material da sociedade? Há essa diferença. Se as duas coisas andassem juntas as nossas esperanças seriam mais fundadas. Vivemos hoje uma mentalidade em que o que mais atrai são as possibilidades do consumismo. As pessoas querem ganhar dinheiro para ter e usufruir dessas coisas e com isso fica feliz. Está bom. Para que ser ético?
ConJur — Existe hoje um clima a favor de linchamento e não importa a quem. A imprensa se vê refém de um gosto mais vulgar. Isso estimulou a polícia que, usando o Ministério Público, passou a acusar sem muita preocupação. Ou o MP está hoje menos ofensivo?
Cezar Peluso — Não. Acho que está mais ofensivo. Mas acho interessante observar o que aconteceu na Itália com a operação “mani puliti”, as mãos limpas. Quais foram os resultados práticos? Não houve nenhuma condenação. É importante distinguir o que é objeto de exacerbação midiática, que a imprensa explora pela necessidade de notícias de impacto, como a prisão de um banqueiro, algemado diante das câmaras. Isso satisfaz uma série de frustrações que o povo carrega consigo. Outra coisa é o trabalho tecnicamente consistente para levar a resultados práticos satisfatórios para a sociedade, mas que não produz o efeito de satisfazer o clamor. São duas coisas diferentes. Existem grandes ações que despertam a indignação de um lado da população, do outro lado dão a sensação de que as instituições estão funcionando. Isso é uma coisa. Outra é examinar do ponto de vista do funcionamento do sistema o que foi apurado de modo fundamentado e que possa levar a resultados práticos na apuração de responsabilidade. São coisas diferentes. O povo tem muitas frustrações. Existe uma vertente psicológica que não é levada em consideração, mas é importante. Todos temos nossos complexos de Édipo que não foram resolvidos tão bem assim. Marcas infantis de autoritarismo, que inconscientemente não aceitamos. E identificamos e projetamos nas autoridades essas figuras paternas e dirigimos nossas pulsões inconscientes contra as autoridades. Não tenho dúvida de que certas pessoas que têm ódio à magistratura são as que tiveram graves problemas com a figura paterna. Eles transferem para a figura do juiz toda a carga inconsciente de repulsa que têm pela figura paterna. Nós juízes reencarnamos o pai. Por isso que o juiz é o objeto permanente dessa animosidade.
ConJur — E a realidade dá uma mão para isso, não é?
Cezar Peluso — Sim, pois a questão dos precatórios está aí há não sei quantos anos, politicamente temos instâncias que não correspondem aos interesses públicos, e o povo percebe isso. Então a mídia satisfaz essas necessidades do público. É uma catarse. O que os jornais publicam contra o juiz tem um efeito catártico para quem teve problema com o pai ou está revoltado com a sociedade. De certo modo ele assume, é como se ele mesmo estivesse dizendo aquilo para o juiz, para o político, para o prefeito, e no fundo ele tem vontade de fazer isso. E a mídia assume esse clamor e o satisfaz. Quanto ao Ministério Público, muitas vezes ele também joga isso para a plateia. 

Para presidente do STF, Planalto é imperial e autoritário


“O Poder Executivo no Brasil não é republicano. É imperial”. Essa foi a conclusão a que chegou o presidente do Supremo Tribunal Federal, Cezar Peluso, diante do descumprimento da Constituição e das decisões do STF, pelo Palácio do Planalto, em matéria orçamentária, no ano passado. “Temos um Executivo muito autoritário”, conclui, ao lamentar a falta de independência do Congresso. O desabafo foi feito pelo ministro a este site, que hoje publica a parte final de sua entrevista.
Cezar Peluso, que se despede da Presidência do STF esta semana, revela aqui que o grande padrinho para sua nomeação como ministro, apesar do esforço do então ministro da Justiça, Márcio Thomas Bastos, foi o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns.
A respeito de uma grande curiosidade da comunidade jurídica — se o ministro Joaquim Barbosa assumirá ou não o comando do tribunal — Peluso não duvida: “O Joaquim assume sim (...) Ele não recusará a Presidência do tribunal em hipótese alguma”. Problemas na coluna ele não tem, informa o ministro, baseado em informação do especialista Paulo Niemeyer. Peluso só receia pela capacidade do colega de bem relacionar-se com os demais ministros e com os advogados, em virtude de sua insegurança.
Neste quarto capítulo de sua entrevista, que começou a ser publicada no domingo, o ministro fala de sua preocupação com a onda populista que varre o Judiciário brasileiro e prevê que o STF tende a posicionar-se cada vez mais alinhado com a opinião pública. Ele lamenta não ter conseguido implantar um sistema de “consultas prévias” entre os ministros, para tornar as sessões mais céleres e evitar bate-bocas desnecessários, mas gaba-se de ter apaziguado a casa e reduzido, em sua gestão, as brigas que expunham o tribunal.
Sobre a corrupção, assunto de 90% das manchetes da imprensa brasileira, Cezar Peluso não esconde sua opinião: “A corrupção é um produto desta sociedade”. Ainda esta semana o site passa a publicar depoimentos e artigos sobre a passagem de Peluso pelo STF.
Leia a surpreendente entrevista do presidente do STF: 
ConJur — Qual seu legado nesses curtos dois anos de Presidência?Cezar Peluso — Melhorei a máquina administrativa do tribunal, que é algo que não aparece, não são obras com placa de inauguração. Tomamos uma série de medidas importantíssimas na área administrativa, sobretudo na questão dos processos de repercussão geral. Esse é um instituto novo, não estava regulamentado. Essas medidas administrativas foram no sentido da ligação do Supremo com os demais tribunais. Pois essa, digamos, "ferramenta" da Súmula Vinculante tem um aspecto bastante complexo e é nesse contexto que precisamos da regulamentação, da criação de procedimentos. Fomos aos poucos regulamentando, criando mecanismos administrativos para dar feição a essas ideias. Terminamos uma rodada de reuniões nesta sexta-feira (23/3) com os presidentes e vice-presidentes e servidores dos tribunais do Brasil inteiro para afinar a sintonia com o Supremo. Existem temas repetitivos dos tribunais estaduais e locais que podem sobrestar, e que estão esperando uma uniformização por parte do STF, e isso pode criar dúvidas. Esse assunto é complexo. Iremos dar total transparência para a situação desses processos no site do STF. O cidadão poderá acessar esses processos e verificar onde estão e há quanto tempo estão, que decisões foram tomadas, o que está acontecendo. Qual o seu número e quando estão pautados para entrar em julgamento. É uma radiografia total da situação, dentro do Supremo, em relação a cada ministro e ao plenário. Além de ser transparente, para advogados em particular, mas para qualquer cidadão, esse é um instrumento de gerenciamento que irá permitir, por exemplo, saber que um processo que trata de matéria específica deu entrada cinco anos atrás e é necessário dar prioridade a ele. Antes não havia isso. Ninguém sabia. Ninguém tinha acesso aos processos em andamento do STF, nem se fez levantamento tão minucioso. O futuro presidente do STF receberá agora esse legado, terá esse material e levantamento histórico na mão e poderá estabelecer prioridades. Esse instrumento de gestão é importantíssimo. 
ConJur — Trata-se de criar um banco de dados no Supremo?Cezar Peluso — Exato, e isso é algo que antes não havia. Hoje, praticamente não se trabalha mais com papel, tornamos praticamente definitivo o processo eletrônico. Todos os processos originados no Supremo, ações de inconstitucionalidade, habeas corpus, tudo hoje é eletrônico. Não se aceita mais nada em papel, exatamente para implantar o sistema eletrônico. Temos até cálculos, nessas informações, da economia de tempo, gerando eficácia. 
ConJur — Há pouco o STF julgou um processo de 1953.Cezar Peluso — Sim, fui o relator. Esse processo sofreu uma série de vicissitudes fortuitas. Aconteceu praticamente tudo o que se pode imaginar. Primeiro por envolver uma transação absolutamente gigante, pois o estado de Mato Grosso doou um mundaréu de terras divididas entre várias empresas colonizadoras. Era uma extensão duas vezes maior que o estado do Sergipe. A área de terra é de 42 mil quilômetros quadrados. Distribuiu para duas dezenas de colonizadoras com a obrigação de que ocupassem o território e o desenvolvessem. As colonizadoras fracionaram esses terrenos imensos, venderam lotes, foram criadas cidades, estradas, hospitais, abrindo lavouras, enfim, estimulando o desenvolvimento da região dentro do programa Marcha para o Oeste do governo Getúlio Vargas. Essa era uma parte do programa, mas o estado do Mato Grosso se esqueceu de que a Constituição de 1946 exigia que, para realizar essas doações ou concessões de domínio, o estado deveria pedir autorização para o Senado. Eles não pediram essa autorização e em 1953, quando se iniciou a demanda, já fazia anos que aquilo estava em andamento e execução. A União resolveu entrar com uma ação para anular essas concessões e se criou um problema de grandes dimensões, pois naquela altura não eram mais apenas aquelas duas dezenas de colonizadoras. Elas haviam vendido as terras para milhares de pessoas. 
ConJur — Sobretudo a colonos vindos dos estados do Sul do país.Cezar Peluso — Sim, era agora uma questão de propriedades particulares, as empresas vendiam os lotes em cotas, trouxeram gente do sul, o agricultor comprava o lote, às vezes não se adaptava ou não dispunha de conhecimentos técnicos para realizar exploração e acabava vendendo para terceiros. E aí temos uma sucessão de proprietários e todas essas pessoas tinham de ser citadas no processo, afinal era a propriedade deles que estava em jogo. Imagine citar esse mundo de gente envolvida, e isso foi passando pela mão de vários ministros. Quando estava mais ou menos pronto para esse processo ser julgado anos atrás, se percebeu que faltava citar outros proprietários originais, que não se sabia onde estavam. Aí retomaram as diligências para corrigir a falha. Houve uma época em que a União percebeu que esse era um processo irreversível, na verdade tratava-se da dinâmica de urbanização, colonização e ocupação do território brasileiro, uma situação irreversível. Não seria possível voltar atrás na construção de vilas, cidades. A União desistiu do processo, isso não foi homologado e, portanto, o processo continuou. Quando assumi, tomei as últimas providências para que esta Ação Civil Originária 79 fosse julgada, pois era o processo mais antigo em andamento no Supremo. Fizemos o julgamento na semana passada. Quero ir embora, mas quero resolver essas histórias. 
ConJur — Mas os ministros Lewandowski, Marco Aurélio e Ayres Brito não entenderam assim a questão, afinal, parece que não foram exatamente os pobres de Mato Grosso os principais beneficiários. Marco Aurélio disse que se estava jogando a Constituição no lixo.Cesar Peluso — O problema é que o tribunal entendeu — e a meu ver com toda a razão, e propus isso — que desfazer hoje essa concessão, que tem mais de 60 anos, um erro do começo dos anos 1950, implicaria teoricamente destruir cidades, aeroportos, seria uma situação indescritível. Isso seria um despropósito sobre uma situação que está consolidada e que é irreversível. A terra voltaria para o estado de Mato Grosso? Hoje o estado está dividido. Acho que foi uma solução sensata do tribunal. 
ConJur — Como é ser ministro em Brasília?Cezar Peluso — Ser ministro é muito honroso, sem dúvida. Mas é muito penoso, em termos de serviço. A gente não tem hora. Antes eu achava que trabalhava muito, de sábado, domingo. Mas aqui em Brasília o volume de trabalho não é possível explicar, só vivendo. Há 30 funcionários no meu gabinete, como se fosse uma pequena empresa. São seis assessores, analistas de diversos graus que organizam, recolhem materiais, para que eu possa estudar os processos. Quando cheguei ao STF, peguei 12 mil processos à minha espera. As sessões são às terças, quartas e quintas. Elas começam às 2h da tarde e não têm hora para terminar. 
ConJur — Como foi a convivência com personagens tão díspares como os ministros Marco Aurélio, Joaquim Barbosa ou Nelson Jobim?Cezar Peluso — São ministros oriundos de áreas de diversas e isso é importante, eles têm ricas contribuições, com pontos de vista diferenciados. Veja o caso do ex-ministro Nelson Jobim: ter vivência da área política foi seu grande diferencial. O que alguns acham que era uma falha do Jobim na verdade era sua grande qualidade. Como ele veio da área política, havia a impressão de que lhe faltava compromisso com o Judiciário. Pelo contrário, é um homem dotado de grande espírito público. Sua atuação na Presidência do STF me surpreendeu, ele quis marcar sua administração por um avanço significativo da função do Judiciário. E justamente por não ter vícios de origem e espírito de corporação exerceu a visão global, foi aberto para compreender as preocupações das diferentes áreas. Isso foi importante e fez a diferença. Ele presidiu o tribunal numa época crucial de mudanças no Judiciário, e isso não poderia ter sido conduzido de modo melhor, pois o Jobim tinha exatamente a visão política do todo, de não ficar preso a miudezas do dia a dia do Judiciário. Ele foi capaz de chegar ao macro e perceber os pontos de estrangulamento do Judiciário. Não é que apenas a questão de que o juiz trabalhe pouco, ou porque tem pouco juiz em um determinado estado, o problema tem outros vieses. E ele fez levantamento de tudo isso. 
ConJur — Como, por exemplo, o excesso de recursos e demandas que o próprio governo cria?Cezar Peluso — Não é só o governo. O Jobim fez um levantamento no Rio de Janeiro identificando um grupo de empresas que se serve do Judiciário para ganhar tempo em determinadas causas que sabem que terão de pagar; mas com a demora, aplicam o dinheiro e acabam lucrando. Um escândalo. Usam o Judiciário para tirar proveito, sabem que demorar a pagar é mais rentável. E isso paralisa o Judiciário. 
ConJur — Como é ver o sistema do Judiciário e da Justiça desde o centro do país? O que mudou em sua percepção? Cezar Peluso — Sou muito ligado à Justiça estadual, que é a Justiça mais próxima do povo, do cidadão, sem dúvida. Preocupo-me com ela e suas reivindicações. Mas também sou um crítico da Justiça estadual, conheço sua realidade, sei os pontos que deveriam ser mudados. Mas daqui de Brasília, a percepção muda ao ver que as coisas são mais graves do que se percebia quando estava em São Paulo. Há um problema na Justiça de São Paulo, gravíssimo, que é a falta de recursos. Agora, tirando isso, a Justiça de São Paulo é modelar. Mas no âmbito nacional, há problemas graves, sobretudo nas regiões mais longínquas. Uma das coisas que me convenceram a aderir à proposta do Conselho Nacional da Justiça no período de sua implantação foi haver convivido mais de perto com esses sérios problemas da Justiça no Brasil como um todo. 
ConJur — E havia a discrepância gritante em termos de salário.ConJur — São Paulo é o estado que pior paga a seus juízes. E há outra distorção: o número de entrâncias, de degraus, é enorme. Na Justiça Federal são duas ou três. Então, há uma diferença maior de vencimentos entre os diferentes níveis. Tive alunos, na época em que lecionava na PUC-SP, que passaram nos dois concursos, para juiz estadual e federal, e disseram: “professor, não tem jeito, gosto muito da Justiça estadual, mas não dá”. E essa situação não depende do Judiciário, mas do Executivo estadual, que precisa ter maior sensibilidade para isso. No longo prazo, o Executivo degrada a qualidade dos quadros funcionais da magistratura do estado. 
ConJur — Alguns pesquisadores dizem que não é o CNJ que resolverá o problema do Judiciário, mas sim uma injeção maciça de dinheiro para informatizar, adequar, melhorar as instalações.Cezar Peluso — Eu mesmo fiz críticas como essa. Essa censura que me fazem, dizendo que mudei de ponto de vista, é injusta. Sempre fui claro. Examinando a crise do Judiciário, achava que a criação do Conselho era um instrumento válido, mas não o principal para resolvê-la. Os problemas macro do Judiciário são dois: o primeiro é a demora excessiva. Embora haja demora no mundo inteiro, aqui ela não é razoável. O segundo é a grande massa da população sem acesso ao Judiciário. Os marginalizados, os excluídos da cidadania, não sabem de seus direitos. E mesmo que soubessem, não têm instrumentos para viabilizar o acesso ao Judiciário. Pois o sujeito que mora na roça, ou na periferia, não tem acesso a um advogado, que mora ou atua no centro da cidade. A organização estatal de assistência judiciária é precária. Alguns estados ainda não se moveram para efetivar as defensorias públicas. A Justiça funciona basicamente para a classe média e para um grupo de empresas. Porque até as grandes empresas já não vão ao Judiciário, só em alguns casos. Preferem arbitragens em escritório de advocacia. Essa é a grande questão da Justiça, ser uma Justiça para todos. Mas, repito, não se pode falar em reforma séria do Judiciário sem tocar no orçamento. São Paulo, que do ponto de vista econômico é o estado mais forte, só agora está começa a informatizar seu tribunal. Não por negligência da direção do tribunal, mas por absoluta falta de dinheiro. 
ConJur — Qual foi o momento de mais felicidade como ministro do STF?Cezar Peluso — Fora o momento da posse, nada de excepcional. Acho que nós julgamos assuntos muito importantes, alguns julgados rapidamente atendendo as demandas da sociedade, o Supremo respondeu bem a essa demandas, sobre a união homoafetiva, a diversidade de opinião, a lei de imprensa, tivemos 15 ou 20 decisões de grande repercussão social. O que me deixou de consciência tranquila é que, de certo modo, o tribunal se apaziguou um pouco durante minha gestão. Sabemos dos diálogos exacerbados entre os ministros, que aconteceram no passado. Durante minha gestão isso não aconteceu em nenhum momento. Tentei conduzir as reuniões do Plenário de uma maneira tranquila, de alto nível. Não houve nenhum episódio que relembrasse os atritos anteriores. Acho que minha moderação na direção do Supremo ajudou a refrear um pouco o entusiasmo ou o estado de ânimo, permitindo que o tribunal decidisse sem se expor. As brigas anteriores expunham muito o tribunal. Além da parte administrativa, que a gente fala que é a parte subterrânea, que não se vê, está tudo organizado. A Central do Cidadão é algo importante e eficiente, atende qualquer demanda, as coisas andam rapidamente. Do ponto de vista interno do funcionamento do tribunal, demos passos importantes. Claro que alguns problemas ficam fora do nosso controle. Como presidente do Supremo, não tenho tanto poder assim. E defendi as prerrogativas do Supremo naquele confronto com a Presidência da República na questão do orçamento. A Presidência descumpriu a Constituição, como também descumpriu decisões do Supremo. Mandei ofícios à presidente Dilma Rousseff citando precedentes, dizendo que o Executivo não poderia mexer na proposta orçamentária do Judiciário, que é um poder independente, quem poderia divergir era o Congresso. Ela simplesmente ignorou. Aí fomos obrigados a tomar atitudes públicas de defesa, o que gerou aquela confusão toda no ano retrasado. 
ConJur — E qual foi a conclusão?Cezar Peluso — Isso foi para o Congresso e ele resolveu ignorar o Judiciário, pois o governo tem a máquina da maioria. 
ConJur — Esse parece ser o problema maior do sistema brasileiro, manter a maioria.Cezar Peluso — E o Congresso ensaiou tomar atitude de certa independência. Vários líderes, tanto do Senado como da Câmara, vieram dizer que iriam aprovar nosso orçamento contra a vontade do Palácio do Planalto. Na época, o Arlindo Chinaglia [deputado federal do PT-SP], que era o relator do orçamento, esteve comigo, ele não falou diretamente, mas deu a entender que tomaria uma atitude de independência. Mas o poder de fogo do Executivo é grande, eles acabaram não tomando atitude, curvando-se ao "toma lá, dá cá". Temos um Executivo muito autoritário. É um Executivo imperial, não é um executivo republicano. 
ConJur — Seria resultado de uma Constituição que começou inspirada no Parlamentarismo e se transformou em Presidencialista, até por pressão do Executivo, na época, o governo Sarney?Cezar Peluso — É uma Constituição inspirada em alguns princípios parlamentaristas, mas aplicados num regime presidencialista e com caráter autoritário. Não dá muito certo, não. Mas me foi perguntado o que me deixou feliz, sem me arguir sobre minhas frustrações. E uma delas foi não ter conseguido implantar um sistema de conversas e consultas prévias antes dos grandes julgamentos. Há um projeto de emenda regimental que não quis apresentar ainda, que propõe fazer reuniões prévias e reservadas para discutir um assunto antes do julgamento, para evitar ficar “batendo boca” durante a sessão. Isso seria fundamental. É trocar ideias, não é querer fazer conchavos. É expor a opinião, uma discussão preparatória para depois cada um tomar a decisão em reservado. Não fazemos isso e vamos para o plenário e aquilo vira aquele “furdunço”. Muitas vezes até se percebe que o sujeito esta formando um raciocínio durante a discussão. 
ConJur — No começo de sua administração, o senhor não compartilhava seus projetos, como a PEC dos Recursos.Cezar Peluso — É uma opinião minha, e a considero acertada. A reação contra a PEC não é uma reação de lógica jurídica ou socioeconômica, é uma reação de certo viés corporativista por parte de advogados beneficiários da indústria dos recursos, da protelação e de ciúme intelectual. A causa principal dos atrasos dos processos no Brasil é a multiplicidade de recursos e, especificamente, o nosso sistema de quatro instâncias. A PEC só não foi votada porque o Dornelles complicou. Quem o senador Francisco Dornelles representa? Ele é do PP [Partido Progressista] ou do BB, dos bancos e bancas? Estes são os grandes interessados na discussão do sistema. O Dornelles é senador pelo Rio de Janeiro, mas de fato representa os interesses dos bancos e representantes das grandes bancas de advocacias de Brasília. Ele travou a votação da PEC. Mas todo mundo está insistindo com ele para acabar logo e Marta Suplicy diz que irá votar agora na Comissão de Constituição e Justiça. Vai fazer audiência e colocará para discutir. A maioria do Senado é favorável à PEC 15. Não propus em nome do Supremo, dei uma ideia e o senador do Espírito Santo Ricardo Ferraço (PMDB) foi lá e pegou a minha ideia, nem me perguntou ou consultou, apresentou a PEC e veio trazer a cópia. Eu disse: “Mas não é isso o que eu tinha em mente”. Aí o senador Aloysio Nunes Ferreira, que é o relator, restabeleceu o meu pensamento. Aí o substitutivo do Aloysio é exatamente o que eu pensava. 
ConJur — Num congresso coalhado de advogados o senhor acha que passa?Cezar Peluso — Passa, passa, porque a lógica é irrefutável. Na maior parte dos países são duas instâncias, excepcionalmente na Comunidade Europeia, em que o conselho recomenda que “se estabeleça uma terceira instância só em casos excepcionais”. Na Europa, a maioria é duas. 
ConJur — O que o senhor fará depois de aposentado?Cezar Peluso — Vou dar uma resposta absolutamente sincera: não sei ainda. Não estou preocupado. Estou absolutamente preparado. 
ConJur — Se a PEC dos 75 anos passasse amanhã, o senhor ficaria?Cezar Peluso — Não sei mais. Antes eu ficaria, agora não sei mais. A minha cabeça está pronta para ir embora. 
ConJur — O TJ do Rio tem um serviço de acompanhamento psicológico para juízes que se aposentam.Cezar Peluso — [risos]Tivemos um caso aqui em São Paulo, o do Flávio Torres, um desembargador famoso, não tinha filho, ele não fazia outra coisa na vida a não ser viver para o tribunal. Se aposentou e, dias depois, teve um enfarte fulminante. O desembargador Yussef Said Cahali teve um derrame. Ele perdeu ao mesmo tempo o cargo de desembargador e a cadeira na faculdade, por haver chegado à idade limite. 
ConJur — O senhor se preocupa com o futuro do STF?Cezar Peluso — Irei sair do tribunal daqui a pouco e me preocupo sim com a sucessão. Outro dia, alguém falava sobre o sistema de indicação. Mas não existe isso de "sistema melhor de indicação". A qualificação é importante, mas algumas indicações podem ser preocupantes em relação ao que irá acontecer. 
ConJur — Com as oscilações de saúde, o ministro Joaquim Barbosa assume após o ministro Ayres Brito? Cezar Peluso — O Joaquim assume, sim. Viram como ele está comparecendo ao Plenário? Teve uma melhora grande, antes quase não aparecia. Agora, comparece a todas as sessões. Ele não recusará essa Presidência em circunstância alguma, pode ficar tranquilo. Tem um temperamento difícil, não sei como irá conviver, primeiro com os colegas. Não sei como irá reagir com os advogados, pois tem um histórico desde o episódio com o Maurício Correia [ministro aposentado do Supremo. Em 2006, Joaquim Barbosa, no Plenário, sugeriu que o então presidente do STF fazia tráfico de influência]. Também não sei como irá se relacionar com a magistratura como um todo. Isso já é especular. Ele é uma pessoa insegura, se defende pela insegurança. Dá a impressão que de tudo aquilo que é absolutamente normal em relação a outras pessoas, para ele, parece ser uma tentativa de agressão. E aí ele reage violentamente. 
ConJur — A insegurança para o debate o faz resistir aos advogados?Cezar Peluso — A impressão que tenho é de que ele tem medo de ser qualificado como arrogante. Tem receio de ser qualificado como alguém que foi para o Supremo não pelos méritos, que ele tem, mas pela cor. 
ConJur — Mas ele tem problema com a coluna?Cezar Peluso — A coluna dele é perfeita, não tem nada de errado, ele tem problema nos quadris. O especialista Paulo Niemeyer no Rio diz que ele não tem problema na coluna, tem problema no quadril. Mas o certo é que alguma coisa ele tem, mesmo. Ter de ficar de pé, ficar tanto tempo de licença... 
ConJur — E quanto aos demais ministros?Cezar Peluso — O Gilmar Mendes tem ambições acadêmicas, acho que não irá ficar muito tempo no tribunal. Talvez ele se decepcione com o andamento da Corte, mas são conjecturas. Ele é o último indicado pelo Fernando Henrique Cardoso. O ministro Celso de Melo está ameaçando sair faz tempo. Não sei até quando fica. 
ConJur — Acha que o Supremo irá encolher em importância?Cezar Peluso — Não sei o que irá acontecer, mas é preocupante. Há uma tendência dentro da corte em se alinhar com a opinião pública. Dependendo dos novos componentes. 
ConJur — O clamor social é o clamor da mídia. A sociedade quer linchamento. A sociedade não é contra a corrupção, ela é contra a corrupção do outro.Cezar Peluso — A corrupção é um produto desta sociedade. O que me chamou a atenção e me fez entender uma série de coisas, foi quando li uma pesquisa realizada há uns três ou quatro anos, uma consulta feita entre jovens de 16 a 21 anos. Uma das perguntas era: você, para subir na vida, ser bem sucedido economicamente, seria capaz de fazer qualquer coisa do ponto de vista ético? E esses jovens responderam que sim. Uma sociedade com uma juventude que não vê limites éticos nem morais para ser bem sucedida economicamente só pode resultar em uma sociedade de corruptos. Os corruptos não nascem por geração espontânea ou de ETs e discos voadores. 
ConJur — O repórter da TV Globo se fez passar, com anuência do diretor de um hospital do Rio de Janeiro, por chefe de compras da instituição, entrevistando várias pessoas. E o Código de Ética do Jornalista Brasileiro diz que o repórter não pode utilizar o recurso da falsa identidade.Cezar Peluso — Na área penal, chama-se de flagrante preparado. O sujeito prepara um flagrante para induzir a pessoa a cometer o crime. Não é crime. O que notei nessa crise toda é que a Folha de S.Paulo, e isso me espantou muito, quando repercutia uma série de queixas do conselheiro Marcelo Nobre sobre o CNJ, não identificava a fonte. Isso contrariava os princípios da Folha. Ou o repórter sabe por ciência própria ou ele tem de dizer qual é a fonte. O repórter escreveu: “conselheiros falavam”. Quem? Nunca citaram os nomes. 
ConJur — O senhor está em excelente forma física.Cezar Peluso — Jogo tênis e faço musculação. 
ConJur — Com quem do Supremo já jogou tênis?Cezar Peluso — Ninguém de lá sabe jogar tênis. Então, contrato um professor e em todos os dias e horários marcados ele esta lá. Quando os amigos combinam de ir jogar, geralmente o outro não vai e não dá para praticar sozinho. Então acho mais prático contratar o professor. 
Momentos decisivos, a nomeação para o STF A esposa do presidente, Lucia de Toledo Piza Peluso, chega em casa acompanhada de uma amiga e participa por alguns momentos da conversa. Comenta-se sobre uma eventual aprovação da PEC dos 75 anos [Proposta de Emenda à Constituição 11/2005, que altera de 70 para 75 anos o limite de idade para a aposentadoria compulsória de servidor público], um projeto irrefutável, pois quando esse teto foi estabelecido, há mais de 50 anos, a expectativa de vida dos brasileiros era de 55 anos. Hoje ela está em 73,5 anos. A aposentadoria compulsória de servidores públicos dispensa uma mão de obra qualificada. E levando em conta que só fica na ativa quem quiser, ela não provocará mal a ninguém. 
ConJur — A senhora acha que, se fosse aprovada a PEC dos 75 anos, o ministro Peluso deveria continuar no STF?Lucia Peluso — Tem tanta coisa que ele poderia fazer! Acho que para o Supremo será uma perda. 
ConJur — Como descreve a carreira dele?Lucia Peluso — Foi uma carreira construída passo a passo. Ele se fez sozinho, um homem determinado que desde a época de estudante sempre foi vocacionado. Ele já estudava, fazia faculdade pensando em ser juiz. Ele se preparou arduamente, varava noites, madrugadas estudando. Eu o conheci na faculdade. [Peluso intervém: "Lúcia foi minha caloura, quase dei trote nela" (risos)].Foi com empenho e dedicação que ele construiu a carreira. Fez isso com sacrifico pessoal e familiar. Fez concurso logo que atingiu a idade exigida na época, pouco após sair da faculdade. Entrou no primeiro concurso de que participou e foi para o interior, com filho pequeno, com todas as dificuldades que havia naquela época. São Sebastião não tinha estrada. Em dia de chuva, era aquele lamaçal. Mas ele nunca desanimou. E depois fomos para a divisa com Minas, Igarapava, terra vermelha roxa, não tinha nada, era quase uma cidade fantasma. Foi presidente do orfanato. Era uma comarca que ninguém queria. Mas ele deixou a sua marca. Depois, veio para São Paulo. Ele construiu a carreira sozinho, nunca teve ninguém para ajudar. Não teve parente ou um figurão. 
ConJur — A senhora já presenciou alguma grosseria por causa de voto ou decisão dele?Lucia Peluso — A gente escuta comentários de pessoas, não de amigos. Uma vez houve uma votação do Supremo tendo como tema uma causa que era do interesse do governo. E eles decidiram a favor, pois era a decisão que concretamente o Cezar achava que deveria tomar. Estávamos voltando de Brasília para passar o final de semana em casa, e já no ônibus do aeroporto a caminho do avião, ele estava em pé e segurava a minha mão, veio uma pessoa e comentou com o acompanhante “Viu a decisão do Supremo hoje?”. E nós dois com cara de paisagem. O outro retrucou: “O que você queria? São todos ministros comprados pelo Lula” [risos]. Não fomos reconhecidos, mantivemos a mesma cara de paisagem. 
ConJur — Ministro, como o senhor vê isso, no seu caso: o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ter nomeado uma pessoa do lado oposto de seu arco ideológico?Cezar Peluso — Isso que irei dizer é uma interpretação puramente subjetiva de minha parte. No começo, o Marcio Thomaz Bastos [advogado e ex-ministro da Justiça] estava bancando o meu nome com certa força, pois ele me conhecia de longa data. Mas houve um momento em que até ele achou que a minha candidatura tinha ido por água abaixo. Acho, e que isso fique claro, que o Dom Paulo Evaristo Arns escreveu uma carta que foi decisiva. Houve a carta. Foi um apoio importante, pois ele me conhecia, havíamos participado de vários encontros, no grupo de juízes na época do regime autoritário. Como já contei, nos reuníamos periodicamente com várias pessoas, leigas e padres também, para discutirmos a realidade brasileira. Várias vezes levei o Dom Paulo para casa depois dessas reuniões, e íamos discutindo assuntos daquele momento. Mas concorria comigo para a vaga do STF um juiz ligado à Associação dos Juízes pela Democracia [o juiz, hoje desembargador Dyrceu Aguiar Dias Cintra Jr.], que tinha apoio de toda a esquerda, até do MST, ele era ligado ao PT. O Lula ficou sensibilizado com isso. O que eles fizeram? Um amigo ou amiga desse juiz conseguiu uma carta de apoio do cardeal endereçada ao Lula. 
ConJur — O que deve ter sensibilizado ainda mais.Cezar Peluso — Então, o desembargador [Antonio Carlos] Malheiros soube disso e veio me contar. Segundo seu entender, o cardeal, como homem bondoso, endereçou a carta, pois não iria falar o contrário e nem falar mal de ninguém. Então, o Malheiros sugeriu que eu contasse essa história para um padre conhecido seu: “O cardeal precisa tomar uma atitude e ele não quer tomar. Ele disse que não queria se envolver mais nessa história”. Tive o encontro com esse padre, conversamos. E esse padre foi até o cardeal, segundo o Malheiros me contou depois: “Vossa eminência sempre falou que devemos ser fiéis à verdade, e o senhor se colocou em uma situação ambígua. Então, é preciso dizer ao presidente Lula e deixar claro que o seu candidato é o desembargador Peluso”. O Dom Paulo Evaristo Arns então escreveu essa segunda carta, que não cheguei a ler. Mas fiquei três meses em uma tensão tremenda, não conseguia trabalhar, o dia inteiro recebia telefonemas: “Está nomeado”, “Não está nomeado”, “Fulano está apoiando”. Foi um inferno! 
ConJur — Qual o momento mais constrangedor como presidente do STF?Cezar Peluso — [Longa pausa.] Passei por um momento muito difícil e constrangedor com a morte da magistrada do Rio de Janeiro [juíza da 4ª Vara Criminal de São Gonçalo, Patrícia Acioli]. Considero um momento grave na função de presidente do Supremo e do CNJ. 
ConJur — E qual foi o momento de pura felicidade, em que se sentiu em estado de graça?Cezar Peluso — Quando tomei posse na Presidência e revi pessoas que jamais pensei que iria rever na vida. Compareceu o meu diretor do Colégio Estadual Arnolfo de Azevedo, de Lorena. É um homem muito inteligente, e avançadíssimo no seu tempo. Ele era socialista naquela época. Esteve lá para me cumprimentar e me enviou uma carta, relembrando meu tempo de aluno. Vieram uma professora de Portugal, que é muito amiga, dois representantes da Corte portuguesa. Família, amigos, alunos... Foi um momento de pura emoção, um momento irrepetível.