sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Os poderes de João de Deus



Confira, em vídeo, algumas das cirurgias espirituais “milagrosas” realizadas por João de Deus :
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ESPERANÇA
João de Deus atende os visitantes na Casa de Dom Inácio. Na cadeira de
rodas, a menina alemã Lisa-Marie, 12 anos, levada pela mãe para Abadiânia
Abadiânia, cidade goiana distante 78 quilômetros do Distrito Federal, é desprovida de encantos. Não há cinema, teatro, sequer shopping center para entreter seus 13 mil habitantes. Mesmo assim, há mais de 30 hotéis no município e uma concentração de visitantes estrangeiros de causar inveja aos grandes polos turísticos nacionais. O poder de atração dessa localidade de chão batido e ar seco incrustada no cerrado brasileiro é um senhor corpulento, de roupas eternamente brancas e amarfanhadas, 1,80 metro e olhos de um azul profundo conhecido no Brasil por João de Deus. Ou John of God, para seu séquito de seguidores internacionais, que atravessam o oceano em busca de cura para seus males. Há 54 anos, João Teixeira de Faria, 69 anos, analfabeto funcional que nasceu em Cachoeiro da Fumaça (GO), filho de um alfaiate e uma dona de casa, caçula de seis irmãos, é um dos mais famosos e respeitados médiuns em atividade no mundo. Cerca de nove milhões de pessoas, segundo sua própria contabilidade, já se deslocaram até o interior de Goiás para se submeter a suas cirurgias espirituais, uma prática cada vez mais difundida no Brasil. Anônimas e famosas, dos mais variados quilates. O mais recente paciente estrelado é o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em tratamento de um câncer na laringe. 

São necessárias algumas poucas horas em Abadiânia para colecionar relatos de pessoas que mudaram suas vidas sob o impacto do encontro com João de Deus. Médicos renomados que largaram consultórios na Europa para se tornarem assistentes espirituais, executivas de alto escalão que viraram donas de pequenos estabelecimentos comerciais na cidade só para ficar perto dele. Além dos incontáveis relatos de cura de doenças – tumores, dores crônicas, paralisias... A saga do líder espiritual goiano já atravessou fronteiras e foi tema de programa da apresentadora americana Oprah Winfrey (“Você acredita em milagres?) e do canal fechado Discovery Channel, entre outros. Sua fama e seu poder ganharam dimensões continentais e são infinitamente maiores do que o local que ele escolheu para exercê-los. Discreto como ele.
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EM AÇÃO
João realiza uma operação nas fossas nasais, uma das
intervenções mais comuns, ao lado das cirurgias de olho
O cenário onde João de Deus realiza suas cirurgias espirituais, ministra seus passes e recebe milhares de pessoas semanalmente (cerca de duas mil) é a Casa de Dom Inácio, uma construção azul e branca de mais de 12 mil metros quadrados que fica na rua principal da parte nova da cidade. Lá o médium atende três vezes por semana, às quartas, quintas e sextas-feiras, das 8h às 12h e das 14h às 17h. O interior da construção é adornado com imagens de Jesus Cristo, Nossa Senhora, Santa Rita de Cássia , Santo Inácio de Loyola e do próprio João de Deus, mas também há cristais e outros objetos holísticos. Para entrar na casa, é necessário estar vestido de branco. A entrada se dá pela secretaria, onde o visitante é orientado a preencher uma ficha com seu caso: primeira vez, segunda vez, revisão ou agradecimentos. Em seguida, é encaminhado a um pátio coberto, com cerca de 200 cadeiras de plástico, dispostas em frente a um palco, onde voluntários fazem a primeira prece. Nesse momento, recebe algumas orientações, como, por exemplo: “Os três medicamentos são sono (é importante dormir entre as 22h e 23h); alimento (não se deve comer somente pelo prazer) e pensamento (somos o que pensamos). 

 Pontualmente às 8h ocorre a primeira oração, composta de palavras meditativas seguidas do pai-nosso. Em seguida, o médium, também vestido com a cor oficial local, atende aos visitantes sentado numa poltrona. Filas de pessoas passam por ele, sem muito tempo para explicar seu caso. Recebem uma receita do medicamento passiflora – uma planta que teria efeito calmante, manipulada na farmácia da casa – e a indicação de voltar à tarde ou ir para a cirurgia espiritual. Intervenção que pode ser com corte ou sem corte. A escolha é do cliente. “Não é necessário fazê-las com corte. Tem gente que só acredita vendo. Mas são raras. A causa da doença está no espírito, com efeito no corpo”, diz João de Deus. As cirurgias mais comuns na Casa de Dom Inácio são as de olho e fossas nasais, mas o líder religioso faz todo tipo de operação, com e sem faca. Procedimento que causa desconforto entre os espíritas tradicionais, que não estimulam as cirurgias espirituais com corte. “A gente conhece a legislação do País sobre o assunto e não recomenda, mas reconhecemos que, em alguns casos, ela pode funcionar, pois há muitos médiuns que manifestam o dom da cura”, diz César Perri, diretor da Federação Espírita Brasileira.
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CURA
Médico e professor da UnB, Ícaro Batista chegou à Abadiânia com
diagnóstico de câncer de próstata avançado. Anos depois, se diz curado.

“Estou novinho em folha”
Para as cirurgias sem corte, o paciente recebe o passe, uma espécie de transmissão de energia. E segue para a meditação. No caso de corte, João de Deus pega uma faca de cozinha, para a raspagem do globo ocular, e uma agulha ou pinça de pressão com algodão cheio de água fluidificada – água abençoada – para introduzi-la pela fossa nasal. As cirurgias costumam durar cerca de dois minutos, mas podem demorar até 15. O paciente não emite um gemido de dor e é encaminhado numa cadeira de rodas para o repouso. O psiquiatra Frederico Camelo Leão, do Núcleo de Estudos de Problemas Espirituais e Religiosos da Universidade de São Paulo (Neper/USP), tem uma explicação para esse fenômeno. Segundo ele, uma cirurgia espiritual pode ser, basicamente, um conjunto de transes. “Não é à toa que a operação só acontece depois de várias visitas do paciente, que vai se tornando cada vez mais receptivo ao que lhe for apresentado”, afirma. Isso esclarece a predisposição à hipnose, por exemplo, que tem força para eliminar a dor dos cortes. Mesmo tendo na ponta da língua a explicação científica, o médico reconhece a dimensão dessas curas espirituais. “Tem muita gente relatando melhora, é um fenômeno digno de ser estudado.” Há 1,5 mil leitos para descanso na construção. As pessoas são instruídas a voltar para a revisão após 40 dias. Se a recuperação foi a contento, recebem alta. Nesse momento, são instruídas a fazer todos os exames necessários para constatar a inexistência da doença. João de Deus é contra abandonar a medicina convencional. “De forma alguma é recomendado suspender a medicação prescrita pelos médicos”, diz.

 Na maioria das vezes, só se submete à cirurgia com corte quem já frequenta a casa há algum tempo. Mas esse não foi o caso do fisioterapeuta holandês Sebastian Wawerek, 30 anos. Ele diz que toda a sua vida sofreu de sinusite, com os sinos bloqueados. “Estava de férias em Buenos Aires e um amigo da Ucrânia me falou dele; por isso eu vim. Pedi a operação visível, porque acredito que só assim ele poderia resolver meu problema. Estou respirando muito melhor”, disse o holandês, deitado em repouso com um algodão no nariz, por onde entrou uma pinça cirúrgica de 15 centímetros. Quatro dias depois, Wawerek ainda sentia os benefícios da respiração desobstruída. “Acho que será permanente”, acredita. O médico austríaco Zsolt Pap de Pestény, 67 anos, diz ter se livrado de um câncer de cólon. “Fiz 11 operações na Áustria, antes de chegar aqui quase morrendo. Em três meses me curei, não pretendo ir embora”, garante Pestény, que se aposentou no país natal e agora é voluntário na casa.
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MUDANÇA
A administradora paulista Moema Vilar é dona do restaurante Alquimia e frequenta a
Casa Dom Inácio desde 2007, quando levou o namorado para se tratar com João de Deus
Na Casa de Dom Inácio é comum encontrar médicos que acreditam na cura através de João de Deus. Caso de Ícaro Batista, 62 anos, professor na Universidade de Brasília (UnB), que diz ter se curado de um câncer de próstata em estado avançado por meio do médium goiano. “Posso afirmar que se não fosse o tratamento espiritual não estaria novinho em folha”, afirma Batista, que desde 2005 passa quatro dias em Brasília e três em Abadiânia. Em junho de 2011, a médica dinamarquesa Charlotte Bech Lund decidiu investigar o fenômeno João de Deus. “Vim, porque muitos pacientes meus vieram, melhoraram e voltaram para concluir o tratamento comigo, mas sem remédios”, afirma Charlotte, que voltou ao Brasil para passar as três primeiras semanas de janeiro em Abadiânia. “Cheguei ao topo da carreira prescrevendo receitas e vendo os efeitos colaterais que os medicamentos causam. Aqui, com passiflora, as pessoas se curam. É algo transcendental”, diz a dinamarquesa, que engrossa as estatísticas da Casa Dom Inácio: 80% dos visitantes são estrangeiros.

Apesar de atrair profissionais de saúde, João de Deus não esconde sua mediunidade. Ele tinha 8 anos quando as primeiras manifestações teriam começado. “Demorou muito para eu acreditar nas coisas que via e sentia”, afirma. Só aos 16 anos diz ter aceitado sua missão, ao ter uma visão com Santa Rita de Cássia e seguir para um centro espírita em Campo Grande (MS). Depois, passou algum tempo com o médium Chico Xavier, a quem chama de “papa do espiritismo”. “Íamos em caravanas para o interior de Minas e Goiás”, diz. Foi, segundo ele, Chico Xavier quem lhe pediu para que não deixasse Abadiânia, apesar das perseguições que sofria na cidade, acusado de exercício ilegal da medicina. Em bilhete datado de 18 de setembro de 1993, Chico diz: “Prezado João, caro amigo, Abadiânia é abençoado recinto de sua iluminada missão e de sua paz.” Na época em que João de Deus sofria perseguições, a Constituição combatia o charlatanismo, o curandeirismo e o exercício ilegal da medicina. Atualmente, a nova Constituição, em vigor desde 1988, prioriza a liberdade religiosa, o que tornou a fiscalização das cirurgias espirituais mais complicada. “Hoje a vigilância é feita só quando alguém faz uma denúncia, o que é bem mais raro”, diz o vice-presidente do Conselho Federal de Medicina, Emanuel Cavalcanti.
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REPOUSO
Após a cirurgia, os pacientes são encaminhados para
o descanso. Há 1,5 mil leitos na Casa de Dom Inácio
João de Deus, alcunha recebida em 1977, realiza cirurgias espirituais e promove passes, mas se diz católico. Foi ordenado padre pela Full Life Fellowship, uma organização religiosa americana que reúne diversas igrejas cristãs. E seus seguidores afirmam que ele é acompanhado por 30 espíritos diferentes. Assunto vetado pelo médium. “Se alguém diz que incorpora essa ou aquela entidade, fuja. Está mentindo”, afirma. De todo modo, o ecumenismo reina na casa azul e branca da empoeirada Abadiânia. Para lá se dirigem pessoas de todos os credos, ávidas por aliviarem suas aflições ou apenas se aproximarem do líder espiritual. Caso da apresentadora Xuxa, que esteve no local para gravar um programa e acabou atendida por João de Deus. “Ele é um iluminado”, disse, à época. A galeria de famosos é invejável e intercontinental. Quem abriu as portas de Hollywood para João foi a atriz Shirley MacLaine, que declarou ter se curado de um tumor abdominal em 1991 por meio dele. A partir daí a fama do religioso goiano ganhou o mundo. Ele iniciou a construção de duas casas, uma na Alemanha e outra na Itália, e é convidado a operar, pelo menos uma vez por ano, em centros holísticos nos Estados Unidos, na Suíça e na Áustria.

O empresário Marcus Elias, controlador do fundo Laep Investiments e um dos donos da Parmalat, conhece João de Deus há mais de 20 anos, quando levou um familiar com câncer para ser atendido. “Ele se curou e fiquei tão impressionado com aqui­lo que sempre que me deparo com pessoas com diagnóstico terminal levo ao seu João”, diz. Elias coleciona histórias de suas idas à Abadiânia. “Vi paraplégicas que voltaram a andar, cura de câncer... Conheço pessoas notáveis, mas talvez o João de Deus seja a mais notável de todas.” Fundador do Comitê Científico para Investigação de Afirmações Paranormais, o americano James Randi olha com ressalva as pilhas de testemunhos sobre o médium goiano. “O problema é que se recorre demais aos pacientes para entender o fenômeno”, diz. “Claro que eles dirão que estão melhores ou curados.” O ator Marcos Frota chegou a ser assistente do líder espiritual. O encontro se deu em 1996, quando o religioso foi assistir a um espetáculo do circo de Frota, em Goiânia. “Nunca vi exploração. Ele é uma pessoa muito simples, tranquila e sem performance.”
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CURIOSIDADE
A médica dinamarquesa Charlotte Bech Lund decidiu investigar o
fenômeno João de Deus atraída pela melhora de seus pacientes
Nos dias em que não atende, João fica em sua fazenda em Anápolis, distante 40 quilômetros de Abadiânia, com a mulher Anna, com quem é casado há nove anos. Tem nove filhos, de mulheres diferentes. Motivo de arrependimento para ele, pois gostaria de ter tido filhos apenas com Anna, com quem não tem nenhum. “Sou apenas um homem. E, como homem, também erro”, diz. Em sua propriedade há criação de galinha, porco e gado, além de plantação de arroz, feijão e soja. Também possui um garimpo em Nova Era, Minas Gerais, em sociedade com um empresário local. A Casa de Dom Inácio não lhe garante rendimentos. O médium não cobra pelo atendimento nem pelas cirurgias, apenas pelo medicamento passiflora – a caixa com 175 comprimidos custa R$ 50. A farmacêutica da Dom Inácio, Bárbara Saraiva, diz que os comprimidos de passiflora são os mesmos vendidos em qualquer farmácia. “A diferença é a energização que, aqui, os remédios recebem”, afirma.

A Casa de Dom Inácio tem área de descanso com vistas para um mirante, livraria, lanchonete, farmácia e sala de banho de cristal. Além da cirurgia, os visitantes também podem participar do banho de cachoeira, uma bica d’água natural a aproximadamente um quilômetro do prédio principal. A instituição mantém a Casa da Sopa, que distribui cesta básica, roupas e brinquedos. O gerente financeiro da casa, Hamilton Pereira, secretário de Finanças do município e ex-prefeito de Abadiânia, afirma que os gastos mensais da instituição giram em torno de R$ 90 mil. “Às vezes ele tem de tirar do próprio bolso para pagar as contas”, afirma Pereira.
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VENDA
O médico não cobra pelo atendimento nem pelas cirurgias.Apenas pelo
medicamento passiflora – a caixa com 175 comprimidos custa R$ 50
Atualmente, a Casa de Dom Inácio emprega mais pessoas que a prefeitura local, que tem 436 funcionários. “Essa parte da cidade só existe porque João de Deus está aqui”, garante o ex-prefeito. O turismo espiritual inchou a região. O comércio está voltado para atender às necessidades dos visitantes, que precisam de roupa e calçados brancos para vestir durante a estadia, de um ambiente harmonioso nas pousadas e de alimentação especial. Dona do restaurante Alquimia, a administradora paulista Moema Vilar, 34 anos, frequenta a casa desde 2007, quando veio com o namorado, vítima de câncer na coluna. Viu o companheiro sobreviver mais dois anos e meio – ele morreu em 2009, aos 33 anos, com 11 pontos de metástase no corpo e pouca dor – e decidiu morar no município em outubro do ano passado. “Abri o restaurante porque preciso viver. Mas não estou aqui para ficar rica. Se fosse esse o objetivo voltaria ao meu antigo emprego na avenida Paulista”, afirma. O comerciante Falciney Claudino de Castro, também com 34 anos, tem uma loja de acessórios de cristais e roupas brancas. “Tem muita gente que compra o armário completo aqui”, diz. “Não sei o que será de Abadiânia quando João de Deus morrer. A economia da cidade vai para o buraco”, afirma o prefeito Itamar Vieira Gomes. 

João de Deus, por sua vez, diz que está pronto para viver pelo menos mais 30 anos. “Eu quero chegar aos 100”, garante. Apesar de realizar curas, ele tem problema de coração. Já colocou três stents e, atualmente, tem tido febre. Nada que altere sua disposição. O médium tem viajado a São Paulo, a fim de atender o ex-presidente Lula. “Mas não vou falar dele. Já viu médico falando de paciente?”, diz. Sobre Lula, apenas garante que o novo amigo será presidente do Brasil novamente e afirma que está orando por seu restabelecimento.
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DEVOÇÃO
A figura de João de Deus está nas paredes da Casa de Dom Inácio,
ao lado da imagem de Jesus Cristo, Nossa Senhora e alguns santos
Para quem crê na força de João, o poder de sua oração tem dimensões concretas. Caso da alemã Beate Obermeier, 45 anos, que chegou ao interior de Goiás pouco antes do Natal com a filha Lisa-Marie, 12 anos, numa cadeira de rodas. Há seis anos, a menina entrou em coma e quando voltou, acordou sem falar, ouvir, comer ou conseguir segurar o próprio pescoço. Em duas semanas de tratamento, passou a comer, a ouvir e até a desenhar. “Só temos a agradecer aos espíritos de luz que encontramos aqui”, diz Beate. Para a mãe que assiste à melhora da filha, não há dúvidas. Mas João de Deus sabe que, para cada Beate, há milhares de incrédulos. Para esses, tem uma resposta pronta: “Não sou eu que curo. Quem cura é Deus. Muitos não acreditam, poucos acreditam, e um número expressivo tem dúvidas. Mas recorro à manifestação de Santo Inácio de Loyola: ‘Para quem acredita, nenhuma palavra é necessária; para quem não acredita, nenhuma palavra é possível.”
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DEPENDÊNCIA
Abadiânia, perdida no cerrado goiano, orbita em torno da figura de João de Deus.

“Não sei o que será da cidade quando ele morrer”,
afirma o prefeito Itamar Vieira Gomes
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Colaborou Juliana Dal Piva

Peregrinos do crack



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NA NOITE
Alemãozinho espera para fazer programa no largo do
Arouche. Abaixo, acende o cachimbo em um quarto de hotel
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"Eu só vou deixar vocês registrarem isso porque quero que as pessoas vejam que a gente é humano." Após a advertência à equipe de ISTOÉ, Alemãozinho, 27 anos, acende o cachimbo em um hotel do centro de São Paulo que lhe custa R$ 5 a hora. O quarto é um espaço simples, com cerca de 15 metros quadrados. A pia faz as vezes de banheiro e o colchão da cama é coberto apenas por uma capa branca encardida pelo uso. Uma sacada precária dá vista para a rua dos Gusmões, no centro de São Paulo. Com as primeiras tragadas, vem uma fumaça densa e branca, de cheiro forte, que se mistura com o odor de mofo do ambiente. Em poucos segundos, a feição do jovem muda. Ele fica tenso, se levanta e começa a andar de um lado para outro, incomodado por um barulho que só ele ouve. Alguns minutos depois de apagar o cachimbo, se aquieta e volta ao normal. O cérebro doente e viciado na sensação de prazer do crack não lhe impõe mais limites: o que tiver de dinheiro vira “pedra”. “Já gastei R$ 5 mil em um fim de semana”, diz. 

Alemãozinho é um dos usuários que frequentavam a região da Cracolândia, no centro de São Paulo. Com a operação policial iniciada em 3 de janeiro, os dois principais pontos de venda de crack que ali existiam (um sobrado na alameda Dino Bueno conhecido como “buraco” e o comércio de pedra da rua Helvétia) foram desmontados. Isso forçou as centenas de dependentes químicos que circulavam pelo local a se tornar peregrinos pelas ruas do centro da capital paulista.
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MIGRAÇÃO
Expulsos do “buraco”, dependentes e o cão Zé Negão
elegeram a porta da missão batista como nova casa
Por dois dias, Alemãozinho se deixou acompanhar pela equipe de ISTOÉ. O apelido faz alusão à pele branca, ao cabelo castanho-claro e aos traços europeizados. Paranaense, ele veio para São Paulo há três anos para trabalhar como instalador de som. À época, já era dependente de crack. Sua história e rotina reforçam a inconsistência da estratégia adotada pelo governo de São Paulo de eleger a força como tônica para a intervenção. Com o início da operação policial, Alemãozinho, assim como centenas de dependentes de crack, mudou a rota, mas não largou o vício. Trocou a região da Luz pela de Campos Elíseos, onde tem encontrado a droga com facilidade na rua Apa, a dez quarteirões do ponto desmontado pela polícia. “Não tem essa de acabar com o crack não, moça. O traficante aparece onde o usuário está”, afirma ele, que diz querer parar, só não sabe como.

Ao caminhar pelo centro de São Paulo, é fácil confirmar a tese de Alemãozinho. Não se veem mais os grandes aglomerados com centenas de dependentes, que deram nome e fama à Cracolândia, mas há dezenas de grupos menores reunidos em torno de um cachimbo, muitas vezes, na cara da polícia. Nesse movimento de dispersão sobrou até para um cachorro, um rottweiler preto apelidado de Zé Negão, que se mudou para a porta da missão batista Cristolândia, onde usuários podem comer e ser encaminhados a centros de recuperação. Zé Negão morava no “buraco” e passava os dias cheirando fumaça de crack. Expulso do lugar, vive agora dias de abstinência e tem atacado até mesmo quem lhe dá comida. Se para o cão falta a droga, para as pessoas a realidade é bem diferente. Basta ter dinheiro para conseguir a “pedra”, que continua custando os R$ 10 de outrora.

Manter o vício é o desafio de cada dia de todo dependente químico. Comida e roupas se conseguem por doações, mas “pedra” só com dinheiro. Foi para bancar o vício que Alemãozinho virou michê. Ainda faz um bico ou outro como instalador de som nos fins de semana (quando ganha R$ 150 por dia de trabalho), mas confessa: “A droga atrapalhou muito os contatos.” Restando o corpo como ganha-pão, tem uma briga cotidiana para amainar os efeitos do crack, droga conhecida por consumir os viciados física e intelectualmente. Tem obsessão por escovar os dentes e, sempre que pode, come em restaurantes para não perder muito peso. Tem um predileto, na rua Jaguaribe, já na Vila Buarque (bairro de classe média), onde paga R$ 9,50 pelo prato de filé de frango com batatas fritas. Gosta de lá porque o tempero se parece com o da casa de sua mãe, uma contadora, que também deixou para trás, em Curitiba.
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ROTINA
Alemãozinho caminha sem rumo
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aproveita para pegar roupas em um centro de doação 
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come num restaurante
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sem dinheiro, dorme na rua
O resultado do esforço é que Alemãozinho foge à imagem clássica do usuário de “pedra” sujo, cadavérico, coberto por uma manta e arrastando-se feito um bicho pelas vielas soturnas do centro de São Paulo. Quando o encontramos pela primeira vez, recém-saído do banho, ele trajava calça branca, camisa de malha preta e tênis All Star marrom-escuro. “Eu tenho de estar bem-vestido, moça. Se minha aparência não estiver boa, não tem programa, e se não tem programa, não tem dinheiro para a pedra.” 

Orgulho da vida que leva, ele não tem. Sente saudade dos três filhos que deixou no Sul com a ex-mulher, bancária, mas não pensa em voltar. Sua vida agora é ser michê para pagar o crack. Ganha de R$ 30 a R$ 80 por programa, mas mantém o sonho de vencer o vício e constituir nova família em São Paulo. Ele diz que já teve moto, carro, conta no banco, loja própria e apartamento. Agora só vive com uma mochila preta que leva às costas em suas andanças. Perdeu até os documentos. O mínimo de conforto que lhe restou é garantido por duas “coroas”, mulheres mais velhas que conheceu sendo michê.
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TRABALHO
Catar metal em sacos de lixo do bairro vizinho é
a forma encontrada por Carioca para bancar o vício
Discreto, Alemãozinho evita as aglomerações das “bocas”. Opta por dormir em hotéis quando lhe sobra dinheiro. Conhece vários pela região da Luz e da Barra Funda, onde paga R$ 30 para ter colchão, roupa de cama limpa, café da manhã e intimidade para dar suas “baforadas”. Se não tem, fica pela rua mesmo. O policiamento reforçado dos últimos dias não lhe causa problema. Como bem lembra, é difícil a polícia mexer com ele, já que é branco e costuma estar de banho tomado e roupa trocada.

Já Carioca, um mulato de 39 anos, sem os dentes da frente, é uma das vítimas preferenciais das forças policiais. Indignado, ele mostra um machucado na perna direita. “Marca da botada que tomei no fim de semana de um polícia”, diz. Desde o início da operação policial, Carioca começou a andar com Mineiro, um negro de estatura mediana, 34 anos, aparência saudável e sorriso fácil. Mineiro saiu de Belo Horizonte há dois anos, depois que seu filho mais novo (hoje com 4 anos) o viu fumando crack na sala de casa. “Fiquei com vergonha e resolvi ir embora”, diz. Da família, guarda apenas a boa lembrança e os nomes dos três filhos do último casamento tatuados na mão esquerda.

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FORÇA
A polícia expulsa os dependentes da Cracolândia munida com balas de borracha
Do mesmo modo que Alemãozinho, Mineiro e Carioca não gostam de “andar no fluxo” – definição para as aglomerações de viciados. Embalados por algumas “baforadas” e cachaça barata, a dupla sai para o “corre”. Um toma conta de um carrinho de supermercado, enquanto o outro abre, meticulosamente, os sacos pretos de lixo depositados em frente aos prédios de classe média do bairro de Santa Cecília. Por dia, percorrem um perímetro de cerca de dois quilômetros em torno da rua Apa em busca de latinhas e metal, que vendem a R$ 2,30 o quilo em um ferro-velho da região. O que conseguem, usam para o crack. “Eu trabalho pra fumar e só não paro porque não consigo”, afirma Carioca. 

Parar com a droga é um desejo manifestado constantemente pelos usuários. Para Carioca, ia ser mais fácil se voltasse para o Rio de Janeiro “Mas tem de comprar a passagem e me pôr no ônibus, tia. Se der o dinheiro, vira tudo pedra”, admite. Mineiro não quer voltar. Em São Paulo, conheceu Patrícia, “a primeira namorada branca da sua vida”. Há três meses, com muita tosse e perdendo peso, ela foi internada em um hospital e descobriu ter tuberculose e HIV. Depois do diagnóstico, a moça voltou para a casa dos pais, deixando Mineiro sozinho na rua mais uma vez. E ele, que diz ter cursado três anos de teologia em Belo Horizonte, gasta agora seu tempo tentando desvendar o que considera um sinal de Deus. “Nunca usei camisinha com ela”, afirma. “Peguei meus exames hoje e não estou nem com tuberculose nem com HIV. O que isso quer dizer?”, pergunta ele, buscando com os olhos encontrar alguma esperança escondida entre as luzes das viaturas e a fumaça do cachimbo.  
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