segunda-feira, 17 de março de 2014

Audiência sobre Direitos Autorais tem discursos acalorados


De um lado representantes do Ecad, do outro, artistas que querem quebra do monopólio do escritório

17 de março de 2014 | 15h 12


Lobão é contra as mudanças na lei - Ed Ferreira/ Estadão
Ed Ferreira/ Estadão
Lobão é contra as mudanças na lei
A temperatura já estava alta antes mesmo do início das falas no Supremo Tribunal Federal. Habitavam o auditório da Casa os dois lados de uma batalha de ânimos nem sempre equilibrados pela administração dos direitos autorais dos músicos, administradas desde 1973 pelo Escritório Central de Arrecadação e Distribuição chamado Ecad. De um lado, políticos e artistas que querem a manutenção da lei sancionada em agosto do ano passado, quebrando o monopólio do escritório, que até então não era fiscalizado. De outro, representantes do Ecad e de associações de músicos que querem a derrubada das modificações da lei para que o Ecad volte a ter sua autonomia na gestão do dinheiro dos artistas. O Ecad move duas ações de inconstitucionalidade no STF para reverter as mudanças sancionadas por Dilma. Antes que o tema seja votado, o ministro Luiz Fux pediu uma audiência pública para ouvir os argumentos dos dois lados.
O senador Humberto Costa (PT-PE), relator das mudanças da lei que foram sancionadas em agosto de 2013 pela presidente Dilma, começou as exposições depois de uma breve abertura do juiz Fux, reforçando as teses que o levaram a defender a quebra de exclusividade que chamou de "monopólio" do Ecad. "Uma CPI (de 2010) mostrou que havia pessoas que não eram titulares beneficiadas, associações de músicos excluídas de forma arbitrária pelo Ecad, créditos arrecadados e retirados de forma ilegal." Cada expositor, 24 ao total, tem o direito de falar por 10 minutos.
Logo depois de Costa, o compositor mineiro Fernando Brant, presidente da União Brasileira dos Compositores, associada ao Ecad, veio com um discurso mais pesado a favor do escritório: "Fico assustado com a variedade de inimigos dos direitos autorais... Eles usam as armadilhas criadas pelo chamado quarto poder, a mídia audiovisual, usando de mentiras, armadilhas de advogados dos mais caros... A CPI (de 2010, que detectou irregularidades na gestão) só funcionou na imprensa.." Sobre a formação do grupo Procure Saber por artistas que queriam as mudanças da lei, Brant disparou. "O Senado aprovou esta lei em uma semana. (Os senadores) se curvaram diante de poderosos artistas desinformados que vieram a Brasília tirar fotos com políticos."  Ele se referia ao grupo liderado por Paula Lavigne (que estava presente no STF) e a associados como Caetano Veloso, Roberto Carlos (que deixou o coletivo no final de 2013), Gilberto Gil e Chico Buarque, entre outros. "Eles não sabem o que apoiaram. Venderam a eles gato por lebre", disse Brant.
A mudança mais questionada da lei que entra em vigor neste ano é a fiscalização do escritório, que deve ser feita agora por um grupo de artistas e técnicos do Ministério da Cultura. O Ecad diz que a prática caracteriza "invasão de privacidade." Os artistas falam em "transparência" das arrecadações que lhe dizem respeito.
Discursos. A deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ), relatora da lei que provocou as mudanças na gestão, sucedeu Brant com a mesma determinação do lado oposto. "Queria saber por que esse esperneio? O que é monstruoso na lei? Multar o órgão que não paga o autor é monstruoso? Dar acesso à informação aos autores é monstruoso? Impedir que 400 mil autores não sejam excluídos de seus direitos é monstruoso?" Segundo a deputada, esse é o montante de compositores brasileiros que ficam hoje sem receber nenhum tostão em direitos por causa da política do Ecad. Ela falou ainda contra a taxa de administração do escritório, que recebia 25% das arrecadações antes das modificações e que passara a receber 15%.
O rebate no mesmo tom veio de Roberto Correia de Mello, advogado e diretor da Associação Brasileira de Música e Artes, Abramus, associada ao Ecad. "Enquanto arrecadávamos pouco, ninguém ligava. Mas depois que o sistema melhora, todos querem participar." Mello voltou a citar a arbtitrariedade do Estado na interferência dos negócios do escritório. "O governo quer ter acesso à senha dos repertórios dos artistas, quer a senha da conta bancária dos artistas, acabar com o sigilo financeiro dos usuários do Ecad. Mas o poder judiciário certamente não vai permitir que isso ocorra", disse, dirigindo-se ao ministro Fux.
Um discurso surpreendentemente dramatizado foi feito pelo diretor teatral Aderbal Freire Filho, da Sbat (Sociedade Brasileira de Produtores Teatrais). "Quem levantou esta questão de direitos autorais no Brasil fui eu, Chiquinha Gonzaga." Depois de falar como se fosse a pianista e compositora do início do século 20, a primeira a defender o pagamento de direitos aos autores, pulou de personagem. "Eu sou João do Rio, muito conhecido como cronista, mas também escrevo peças de teatro." E assim seguia. "Sou Manoel Bandeira, me associei à Sbat para fazer traduções..." "Eu sou Raquel de Queiroz, eu sou Dias Gomes, eu sou Gianfranceso Guarnieri." Ao final de seus 10 minutos, falou enfim como Aderbal. "Não quis argumentar com teses, por isso emprestei minha voz a essas pessoas. Somos vítimas de um sistema injusto que essa lei começa a corrigir." Terminou e foi aplaudido pela primeira vez.
O clima mudou com a chegada de Lobão ao microfone. O cantor é contra as mudanças na lei, dizendo que os músicos estão "entregando o galinheiro à raposa" quando se refere à fiscalização do Ecad sendo feita pelo Estado. "Essa lei em pontos sombrios e autoritários. E para a estupefência de nossos usuários, esse Procure Saber é a minoria... A celeridade com a qual essa lei foi votada no Senado é suspeita. Em menos de uma semana colocaram o Roberto Carlos (em Brasília) posando com a Dilma. Isso é uma palhaçada. Por que me negaram informação se também sou usuário?" Lobão passou a atacar o governo Dilma. "Vão entregar o Ecad para ser cuidado por um dos governos mais corruptos da história? De que o governo tem cuidado bem? Da Petrobrás? Eu peço ao Supremo que olhe por nós porque a coisa está calamitosa." Encerrou e também foi aplaudido por parte do auditório.
O músico Roberto Frejat veio na sequência falando de novo pelas mudanças. Citou vários pontos de fraqueza do escritório, mas reforçou principalmente o que considera como um ponto vulnerável. "Descobriram que um motorista de ônibus (Milton Coitinho), que nunca havia ouvido falar em Ecad, recebia direito como se fosse autor. A UBC reconheceu que houve fraude interna mas jamais corrigiu o erro. O nome dele ainda está lá como autor de uma série de músicas."
Paula Lavigne foi ao microfone para fazer um discurso de improviso. "Sou representante dos artistas que mais arrecadam direitos no País, eles não são suspeitos." Sobre a transparência do Ecad, disse: "Há 16 anos a senhora Gloria Braga (superintendente do escritório) manda no Ecad. Mas eu nunca tinha visto a cara dela, é a primeira vez." Para rebater as acusações de que o grupo que preside, Procure Saber, representa uma minoria, leu uma lista com mais de 30 nomes de artistas brasileiros, incluindo Ivete Sangalo Titás, Seu Jorge, Mano Brown, Sandy, Vanessa da Mata e Zezé Di Camargo, além dos já conhecidos ligados ao grupo, Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil. Sobre a fala de Lobão, que disse que o Procure Saber não informou os artistas de que queria as mudanças, disse. "Nós avsamos todo mundo. Por que essa desqualificação?" E emendou: "Dominguinhos morreu cheio de contas a pagar." 
"Já antecipo que esse será um caso muito difícil de ser julgado", disse aos jornalistas o ministro Fux, no intervalo da sessão. "A classe está muito dividida." As fitas com as gravações de todos os depoimentos serão entregues aos outros juízes da Corte para que ela seja votada. Não há prazo para que isso ocorra. 

http://www.estadao.com.br/noticias/arte-e-lazer,audiencia-sobre-direitos-autorais-tem-discursos-acalorados,1141839,0.htm

STF promove audiência pública para debater nova lei que regula o ECAD



Paula Lavigne se irrita em audiência sobre mudança no Ecad e pede justiça

O STF (Supremo Tribunal Federal) discutiu na tarde desta segunda-feira (17), com políticos, artistas, empresários e compositores, a Lei 12.853/2013, que determina novas regras para a arrecadação e distribuição de direitos autorais de obras musicais.

Em nome do grupo Procure Saber, a produtora musical Paula Lavigne se irritou com os comentários do advogado Sylvio Capanema de Souza sobre a união dos músicos a favor das mudanças no Ecad. Segundo ela, o advogado tratou a associação como  um "bando de bobos e desinformados". "A turma que se reuniu são os que mais arrecadam. Queremos ver justiça. Depois da lei aprovada, tudo começou a andar de algum jeito. Estranho, não?", questionou Paula, visivelmente irritada.

Pouco antes de ler uma lista com os nomes de todos os músicos que aprovam as mudanças --entre eles Gilberto Gil, Ivete Sangalo, Péricles e CPM22-- ela afirmou que, com o sistema antigo do Ecad, somente as editoras musicais ganhavam. "Você pensa que era o Roberto Carlos? Não, só as editoras ganhavam".

Paula reclamou ainda da inexistência de um programa social para os músicos brasileiros. "Caetano e Gil ficam muito felizes com a aposentadoria que têm. Dominguinhos morreu cheio de contas para pagar. Se não fossem as músicas deles, eles não ganhariam o dinheiro", disse ela.

"Deixa minha canção em paz"

O músico e compositor Roberto Menescal foi contra a mudança no Ecad durante a audiência aberta. Para ele, a culpa de não se ter uma fiscalização adequada é dos próprios compositores. "Temos que nos precaver sobre a nossa música, sobre a nossa criação. Acredito que o Estado tem que ditar regras. Mas na minha canção? Deixa ela em paz".

Menescal afirmou ainda que ficou triste ao ver uma briga entre músicos sobre o assunto. "Presenciei a briga. A coisa vai ficando acirrada e eu não queria que isso ficasse assim. Queria que fosse melhor levado e que chegássemos a uma conclusão benéfica para todos", afirmou.

"Entregar o galinheiro às raposas"

Lobão também participou da audiência pública e criticou a intervenção estatal consequente da fiscalização do MinC (Ministério da Cultura) no que se refere à arrecadação e distribuição dos valores oriundos dos direitos autorais. Segundo ele, tal mudança seria "entregar o galinheiro às raposas".

"Por melhores intenções que essa lei tenha, ela traz pontos sombrios e de traços autoritários", afirmou. "Temos que avaliar as lacunas, inclusive no que se refere aos direitos e deveres. O Ecad é um órgão longe de ser perfeito, mas entregar sua fiscalização a este governo que é um dos mais corruptos da história? Peço ao Supremo que olhe por nós [artistas], porque a situação é calamitosa e desproporcional."

O presidente da União Brasileira de Compositores, Fernando Brant --parceiro de Milton Nascimento, Lô Borges e Wagner Tiso em diversas canções--, abriu a consulta popular, após a análise do relator do projeto de lei, o senador Humberto Costa, com um discurso crítico à nova Lei, chamando-a de "farsa" e citando o interesse de "poderosos da empresas de comunicação em massa".

"Fico assustado na variedade de inimigos dos direitos autorais. Hoje e sempre sofremos na mão do audiovisual. Para não pagar o que achamos justos, apostaram na demora da decisão do judiciário e na mentira".

Segundo Brant, a lei foi aprovada rapidamente, sem o debate necessário, sob a pressão de "dezenas de famosos artistas desinformados, tirando fotos com a presidente da República. Muito estranho, não?", ironizou. "Recusamos o paternalismo estatal". O tom crítico se seguiu com a superintendente executiva do Ecad, Gloria Braga, que rechaçou a possibilidade do órgão ser fiscalizado pelo próprio governo. "As associações são os próprios órgãos que fiscalizam o Ecad".

Como representante do Gap (Grupo de Ação Parlamentar Pró-Música), o músico Frejat foi na direção oposta em sua argumentação, ao defender a Lei em vigor. Ele criticou como, ao longo dos anos, o Ecad se tornou uma máquina jurídica obscura, cuja função de arrecadação e distribuição não tem sido legalmente bem executada. "Há autores insatisfeitos com o que recebem e usuários insatisfeitos com o que pagam. O dinheiro existe, e se encontra nesse meio do caminho".

O músico comentou ainda a questão de alterações bruscas realizadas pelo Ecad nas pontuações de pagamentos dos direitos autoriais sem a ocorrência de assembleias gerais para que tais decisões sejam tomadas. "Sou autor há 30 anos e nunca recebi um convite para participar de uma votação", disse. "A Lei 12.853/2013 é uma conquista para nós. Entidades que deveriam estar nos protegendo e nos representando estão aqui por terem entrado com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade. É uma grande contradição."

Com relação à intervenção do Estado tão amplamente criticada pela oposição, Frejat fez questão de destacar que o Ecad nasceu regulado pelo Estado quando foi criado em 1973 junto ao CNDA (Conselho Nacional de Direito Autoral), tendo sido extinto junto ao Ministério da Cultura durante o governo do Presidente Fernando Collor de Mello.

A lei

NOVA LEI

1) As associações de compositores e intérpretes que compõem o Ecad terão que se habilitar junto ao Ministério da Cultura, comprovando que têm condições de administrar os direitos de forma eficaz e transparente.

2) A taxa de administração de 25% cobrada pelo Ecad e pelas associações de gestão coletiva será diminuída gradualmente e não poderá ultrapassar 15% do valor arrecadado a título de pagamento de direitos.

3) Emissoras de rádio e TV serão obrigadas a tornar pública a relação completa das obras que utilizou e o pagamento deverá espelhar a realidade da execução das músicas. Hoje, essa distribuição se dá por amostragem.

4) Criação de um cadastro unificado de obras que evite o falseamento de dados e a duplicidade de títulos. O autor poderá acompanhar a gestão do seu direito pela internet.

5) As associações que compõem o Ecad só poderão ser dirigidas por titulares dos direitos autorais, ou seja, compositores e intérpretes. Eles terão mandato fixo de três anos, com direito a uma reeleição.

A nova lei, que havia sido aprovada pelo Senado em julho de 2013, com a participação maciça de artistas brasileiros como Fernanda Abreu, Roberto Carlos e Jair Rodrigues -- incluindo os artistas do grupo "Procure Saber", que posteriormente entraram na discussão sobre as biografias não autorizadas -- , estabelece que o Ecad passe a ser fiscalizado por um órgão específico e preste satisfações precisas sobre a distribuição dos recursos.

O texto determina que a taxa de administração de 25% sejá diminuída gradualmente até chegar a 15% do valor arrecadado a título de pagamento de direitos.

Além disso, as emissoras de TV e rádio têm o prazo de dez dias para enviar relatório com a lista de músicas utilizadas. A transparência na gestão dos valores pagos também é um dos destaques do texto. O autor passará a ter acesso, através da internet, ao custo das obras e o valor que será distribuído por cada música.

A lei ainda prevê multa a dirigentes das entidades e associações que não prestarem satisfações ou divulgarem informações falsas: de 10 a 30% do valor que deveria ser originariamente pago.

O encontro acontece após o Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), órgão responsável pela administração dos direitos autorais, questionar no Supremo a validade da lei. Através de uma Adi (Ação Direta de Inconstitucionalidade), o órgão afirma que a nova lei "fere princípios constitucionais, ao conceder ao Estado poder para interferir na gestão de uma atividade de direito privado".

Entenda o caso

Com relatoria do senador Humberto Costa, a lei 12.853/2013 é resultado de CPI realizada em 2012 que investigou supostas irregularidades na arrecadação e distribuição de direitos por execução de músicas por parte do Ecad.

O relatório final da CPI pedia o indiciamento de 15 pessoas por apropriação indevida de verbas, cobranças excessivas, dentre outras acusações, além de novas regras para que haja mais transparência nas atividades do escritório e um órgão que seja ligado ao Ministério da Justiça para fazer a fiscalização do Ecad.

Em nota divulgada à época, o Ecad afirmou que não identificou "qualquer irregularidade na arrecadação e distribuição de direitos autorais que justifique o indiciamento de dirigentes" e que acusações de abuso de ordem econômica e cartel "já foram afastadas pelo MPF, manifestando-se pelo arquivamento do processo por inaplicabilidade do direito concorrencial".

Criado em 1973 como uma instituição privada formada por diversas associações da indústria musical, o órgão já foi alvo de outras quatro CPIs: uma da Câmara dos Deputados (entre 1995/96), e três em assembleias legislativa estaduais --em São Paulo (2009), em Mato Grosso do Sul (2005) e no Rio de Janeiro (2011).

http://musica.uol.com.br/noticias/redacao/2014/03/17/parceiro-de-milton-diz-que-artistas-desinformados-apoiaram-lei-do-ecad.htm

Neoconservadores atravessaram a tempestade



14/3/2014, [*] Robert Parry, Consortium News
“Neocons Have Weathered the Storm”
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


George W. Bush - "Missão Cumprida" no Iraque...
Em meados da década passada, nuvens de tempestade acumulavam-se sobre os neoconservadores norte-americanos: a “mudança de regime” que tentaram n Iraque era um desastre; a “Missão Cumprida” do presidente George W. Bush era piada que se ouvia pelas ruas; a imprensa começava a publicar opiniões sobre o “lado obscuro” da atuação deles na “guerra ao terror”; e o público estava farto de sangue e dinheiro desperdiçados.

Seria de esperar que os neoconservadores tivessem sido banidos para os confins mais distantes da política norte-americana, para tão longe que não se ouviria outra vez falar deles. Pois nada disso. Em vez de sumir, os neoconservadores provaram que são capazes de permanecer no poder e, agora, reemergem como arquitetos da estratégia dos EUA para a Ucrânia.

Os neoconservadores trabalharam nas coxias e instigaram o golpe de 22 de fevereiro/2014 que derrubou presidente democraticamente eleito, com a ajuda de milícias neofascistas; os neoconservadores arrastaram a Washington oficial para um frenesi de apoio bipartidário ao governo do golpe; e agora trabalham a favor de uma nova Guerra Fria, caso o povo da Crimeia decida separar-se da Ucrânia e unir-se à Rússia.

Há algumas semanas, a maioria dos norte-americanos sequer havia ouvido falar de Ucrânia e muito menos sabia que a Crimeia fosse parte da Ucrânia. Mas, de repente, o Congresso dos EUA, normalmente sempre obcecado com o déficit, já está mandando bilhões de dólares para ajudar o golpe em Kiev, como se o futuro da Ucrânia fosse a questão mais importante que o povo norte-americano tivesse de enfrentar.

Até jornalistas e comentaristas que de início resistiram ao estouro da manada comandado pelos neoconservadores já se “alinharam”, aparentemente por medo de serem rotulados como “apologistas” do presidente Vladimir Putin da Rússia. De fato, já é quase impossível encontrar político ou “especialista” midiático que não se tenha alinhado ao lado dos neoconservadores em sua posição de beligerância na questão da Ucrânia.

Pois os céus parecem ainda mais abertos para eles. Os neoconservadores podem esperar, que aparecerão ainda mais poderosos, à medida que o presidente Barack Obama vá se tornando “pato manco” e, com ele, também suas iniciativas diplomáticas para a Síria e para o Irã (em parte porque a crise da Síria distanciou muito os presidentes Obama e Putin), e a Democrata (mas com clara tendência neoconservadora) Hillary Clinton já conseguiu espantar, de medo, qualquer oposição de peso à sua indicação como candidata à presidência para 2016, e até seus rivais Republicanos já se beneficiam das bênçãos dos neoconservadores.

Hillary Clinton, candidata à presidência dos EUA em 2016 pelo Partido Democrata
De fato, essa virada surpreendente dificilmente seria prevista, depois que os neoconservadores arrastaram os EUA para a catastrófica guerra no Iraque e aquele horrível morticínio, que incluiu a morte e a incapacitação de dezenas de milhares de soldados norte-americanos e o desperdício de talvez $1 trilhão de dólares dos contribuintes norte-americanos.

Na eleição de 2006 para o Congresso, os candidatos do “Velho Grande Partido” [orig. Grand Old PartyGOP (os Republicanos)] levaram uma surra, porque Bush e os Republicanos estavam associados, muitos deles, com os neoconservadores. Na eleição de 2008, a senadora Hillary Clinton, neoconservadorista, que havia votado a favor da Guerra do Iraque, perdeu a indicação como candidata Democrata para o senador Barack Obama, que se opusera à invasão do Iraque. Na sequência, na eleição geral, Obama derrotou o porta-estandarte dos neoconservadores, John McCain, e chegou à Casa Branca.

Naquele momento, parecia que os neoconservadores enfrentavam sérios problemas. De fato, vários deles tiveram de limpar as gavetas de deixar o governo, para procurar emprego em think tanks, institutos ou fundações e em outras organizações não governamentais (ONGs) amigas de neoconservadores.

Ainda mais significativo: a grande estratégia neoconservadora parecia ter caído em descrédito. Muitos norte-americanos viam o sonho dos neoconservadores, de mais “mudança de regime” no Oriente Médio – em países que se opunham a Israel, principalmente Síria e Irã – como nada além de um pesadelo sem fim de morte e destruição.

Depois de assumir o governo, o presidente Obama falou a favor do fim das guerras de Bush e de os norte-americanos cuidarem melhor de “construir a nação em casa”. O grande público pareceu concordar. Até alguns Republicanos de direita estavam começando a repensar a defesa que os neoconservadores faziam de um Império Norte-Americano, e a reconhecer o impacto devastador daquele projeto sobre a República Norte-americana.

O revide

Mas os neoconservadores de modo algum estavam derrotados. Eles se haviam posicionado muito espertamente.

Ainda controlavam as operações pagas pelo governo norte-americano, como o Fundo Nacional para a Democracia [orig. National Endowment for Democracy (NED)]; ainda mantinham posições proeminentes nos think-tanks, institutos e fundações, do Instituto das Empresas Norte-americanas [orig. American Enterprise Institute] ao Conselho de Relações Exteriores [orig. Council on Foreign Relations] e à Brookings Institution; tinham aliados poderosos no Congresso, como os senadores McCain, Lindsey Graham e Joe Lieberman; e dominavam todos os programas de entrevistas e “análises” da televisão comercial e as colunas assinadas em jornais da imprensa-empresa, especialmente no Washington Post, o jornal da capital.

John McCain (R-Arizona) e Lindsey Graham (D-Carolina do Sul)
Desde o final dos anos 1970s e início dos 1980s, quando pela primeira vez emergiram como força notável em Washington, os neoconservadores tornaram-se “fonte interna”. Eram, simultaneamente, admirados e temidos por sua ferocidade discursiva, mas – mais importante para sua sobrevivência de longo prazo – haviam assegurado livre acesso ao dinheiro do governo, inclusive ao dinheiro grosso do Fundo Nacional para a Democracia [orig. National Endowment for Democracy (NED)], cujo orçamento passou a ser superior a $100 milhões durante os anos Bush.

O Fundo Nacional para a Democracia [orig. National Endowment for Democracy (NED)], fundado em 1983, é mais conhecido por investir na “construção da democracia” em outros países (quer dizer: em campanhas de desestabilização estilo CIA, conforme o ponto de vista do leitor), mas grande parte do dinheiro do Fundo Nacional para a Democracia [orig. National Endowment for Democracy (NED)] vai, na realidade, para ONGs em Washington, o que implica que viraram linha de sobrevivência para operadores neoconservadores que se viram ameaçados de desemprego com a chegada de Obama.

Enquanto defensores ideológicos de outros movimentos fracassados tiveram de voltar para casa ou mudar de profissão, os neoconservadores encontraram meios financeiros de sobrevivência (do Fundo Nacional para a Democracia [orig.National Endowment for Democracy (NED)] e de outras muitas fontes), e o barco de propaganda ideológica deles pôde atravessar os dias de mau tempo.

Barack Obama
E, apesar da oposição de Obama à obsessão dos neoconservadores com guerras sem fim, ele não os excluiu de seu governo. Neoconservadores que se haviam implantado fundo no governo dos EUA como “funcionários civis” ou “oficiais de carreira do serviço diplomático” permaneceram como “força de retaguarda”, procurando novos aliados e aproveitando o tempo.

Obama criou esse problema de “força de retaguarda” com a fatídica decisão, tomada em novembro de 2008, de encampar a tendenciosa ideia de “uma equipe de rivais”, que incluiu manter o agente Republicano (e aliado dos neoconservadores), Robert Gates, no Departamento de Defesa, e pôr a Democrata-mas-com-tendências-a-falcão-Republicano Hillary Clinton, também aliada dos neoconservadores, no Departamento de Estado. Os neoconservadores, provavelmente, quase nem acreditaram na própria sorte!

De volta às boas graças do poder

Longe de terem sido marginalizados e afastados – como com certeza mereciam ser, depois do fiasco da Guerra do Iraque – neoconservadores chaves continuaram a ser alvo da mais alta e distinta consideração. Como se lê em suas memórias Duty, Gates deixou que o teórico militarista neoconservador Frederick Kagan o persuadisse a apoiar a “avançada” de mais 30 mil soldados norte-americanos, enviados para a Guerra do Afeganistão, em 2009.

Robert Gates
Gates escreveu que:

(...) uma importante estação do meu “pilgrim’s progress” [1] do ceticismo até o apoio a enviar mais soldados para o Afeganistão, foi um ensaio do historiador Fred Kagan, que me enviou um rascunho antes de o ensaio ser publicado.

O secretário da Defesa, na sequência, colaborou com remanescentes do alto comando de Bush, inclusive com o general favorito dos neoconservadores, David Petraeus, e com a Secretária de Estado Clinton, para empurrar Obama para cordas políticas, nas quais ele sentiu que não teria escolha senão acolher a recomendação dos dois para a “avançada”.

Obama, como se sabe, arrependeu-se da decisão quase imediatamente depois de tomá-la. A “avançada” afegã, como, antes, a “avançada” na Guerra do Iraque, custou a vida de mais mil e tantos soldados norte-americanos, mas, feitas as contas, nada mudou na direção estratégica da guerra.

Robert Kagan
No Departamento de Estado de Clinton, outros neoconservadores foram postos em cargos influentes. O irmão de Frederick Kagan, Robert, neoconservador do governo Reagan e cofundador do projeto neoconservador Projeto para um Novo Século Norte-Americano [orig.Project for the New American Century], foi nomeado conselheiro do Foreign Affairs Policy BoardE a secretária Clinton também nomeou a esposa de Robert Kagan, Victoria Nuland, ao cargo de porta-voz do Departamento de Estado.

Embora a tal “equipe de rivais” de Obama tenha na sequência deixado a cena (Gates, em meados de 2011; Petraeus num escândalo sexual no final de 2012; e Clinton no início de 2013), todos esses três garantiram aos conservadores tempo crucialmente importante para respirar, reagrupar-se e se reorganizar. Assim, quando o senador John Kerry substituiu Clinton como Secretário de Estado (com a considerável ajuda de seu amigo neoconservador John McCain), os neoconservadores do Departamento de Estado estavam outra vez posicionados para retorno com muito poder.

Nuland foi promovida a secretária de Estado assistente para Assuntos Europeus, e assumiu como missão principal derrubar o governo da Ucrânia, que se tornara alvo preferencial dos neoconservadore porque mantém laços próximos com a Rússia, cujo presidente Putin estava dificultando as estratégias de “mudança de regime” dos neoconservadores na área que eles mais valorizam, o Oriente Médio. Pior ainda: Putin estava ajudando Obama a evitar guerras na Síria e no Irã.

Assim, como o presidente do Fundo Nacional para a Democracia [orig. National Endowment for Democracy (NED)Carl Gershman escreveu noWashington Post em setembro de 2013, a Ucrânia tornou-se “o maior prêmio”; mas acrescentou que alvo ainda mais sumarento, além da Ucrânia, era Putin, o qual, Gershman acrescentou, “pode descobrir-se no lado perdedor, não na região próxima, mas dentro da própria Rússia”.


Em outras palavras, o objetivo final no jogo da Ucrânia não é só “mudança de regime” em Kiev, mas “mudança de regime” em Moscou. Se conseguir livrar-se de Putin, homem de pensamento independente e vontade firme, os neoconservadores, ao que parece, deliram com conseguir pôr um de seus delegados (talvez uma versão russa de Ahmed Chalabi) no Kremlin.

Isso feito, então os neoconservadores poderão avançar, sem empecilhos, na direção de seu plano original de “mudança de regime” no Oriente Médio, com guerras contra a Síria e o Irã.

Fato tão perigoso – e ensandecido – como essa visão dos neoconservadores (que levanta o espectro de possível confronto nuclear entre EUA e Rússia), os neoconservadores parecem estar claramente de volta ao controle da política exterior dos EUA. E em posição na qual quase não podem perder, se se consideram os seus exclusivos interesses, tome a crise da Ucrânia o rumo que tomar.

Vladimir Putin
Se Putin recuar ante os “ultimatos” dos EUA sobre Ucrânia e Crimeia, os neoconservadores poderão bater no peito e declarar que os mesmos ultimatos devem ser feitos aos outros alvos dos neoconservadores, isto é., Síria e Irã. E se esses países não se submeterem, não haverá escolha, além de deixar que os EUA ponham-se a bombardeá-los, com mais “choque e pavor”.

Por outro lado, se Putin não recuar e a Crimeia decidir separar-se da Ucrânia e voltar a ser parte da Rússia (país com o qual a Crimeia mantém laços antigos, desde os 1700s de Catarina, a Grande), nesse caso os neoconservadores surfarão a onda do ultraje da Washington oficial, e exigirá que Obama extinga qualquer via para qualquer futura cooperação com Putin – o que deixará aberta a via para os EUA escalarem no confronto com Síria e Irã.

Ainda que Obama consiga se manter à tona, e contorne as exigências dos neoconservadores por mais dois anos, sua estratégia conciliatória, de colaboração com Putin para resolver as questões com Síria e Irã estará já morta, ao final de seu mandato. Os neoconservadores bem podem esperar que suas próprias velas voltem a inflar-se, quando, seja uma Hillary Clinton presidente, seja algum outro Republicano (que precisará do apoio dos neoconservadores) chegue à Casa Branca em 2017.

Mas os neoconservadores já podem começar a comemorar. Conseguiram atravessar a tempestade.


Nota dos tradutores
[1] Referência a The Pilgrim’s Progress from This World to That Which Is to Come; Delivered under the Similitude of a Dream [O Avanço do Peregrino, desse mundo até o próximo; apresentado sob a forma de um sonho] é uma alegoria cristã do caminho de vida do cristão, escrita por John Bunyan e publicada em 1678. A teologia Protestante explícita de The Pilgrim's Progress tornou-o muito popular. Em 2004 e 2008, um espetáculo musical (letras e músicas de Kenneth Wright), foi apresentado no Life House Theater, em Redlands, Califórnia.
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[*] Robert Parry é um jornalista investigativo norte-americano.Recebeu Prêmio George Polk de Reportagem Nacional em 1984 por seu trabalho na Associated Press sobre o caso Irã-Contras quando descobriu envolvimento de Oliver North. Trabalhou como correspondente em Washington para a Newsweek. Em 1995 fundou oConsorctiumNews, um espaço de noticiário liberal online dedicado ao jornalismo investigativo. De 2000 a 2004, trabalhou para agência Bloomberg. Parry escreveu vários livros, incluindo Lost History: Contras, Cocaine, the Press & “Project Truth” (1999) e Secrecy & Privilege: Rise of the Bush Dynasty from Watergate to Iraq (2004). 

http://redecastorphoto.blogspot.com.br/

Crimeia – mais uma crise produzida artificialmente

14/3/2014, [*] Neil ClarkRussia Today
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Sergey Lavrov, Ministro de Relações Exteriores da Rússia
O ministro russo de Relações Exteriores, Sergey Lavrov, disse que a crise Ucrânia/Crimeia foi “produzida artificialmente, por motivos puramente geoestratégicos”. Acertou.

É importante entender que não se trata de caso único, mas apenas de mais uma numa longa sequência de “crises” ou deliberadamente infladas ou artificialmente criadas pelas potências ocidentais, para promover seus próprios interesses geoestratégicos.

O secretário de Relações Exteriores da Grã-Bretanha, William Hague, disse que a Crimeia é (seria) a “maior crise na Europa no século 21”. Mas não é a primeira vez que políticos ocidentais falaram em tons tão alarmistas em anos recentes.

Há exatamente 15 anos, em março de 1999, foi a “crise” do Kosovo – com líderes ocidentais a “declarar” que, a menos que a OTAN empreendesse ação militar urgente, milhares de albaneses kosovares seriam mortos por forças sérvias, as quais, como estávamos sendo “informados”, estavam engajadas em brutal guerra de genocídio.

Tony Blair
Dia 23/3/1999, o primeiro-ministro britânico Tony Blair disse, na Câmara dos Comuns:

Temos de agir para salvar de uma catástrofe humanitária milhares de homens, mulheres e crianças inocentes, da morte, da barbárie e da limpeza étnica, praticadas por uma ditadura brutal.

Também foi “crise” artificialmente criada, porque o que acontecia no Kosovo era conflito de baixa intensidade entre forças iugoslavas e combatentes do Exército de Libertação do Kosovo [Kosovo Liberation Army, KLA] apoiados pelo ocidente.

O serviço do KLA era atacar forças iugoslavas, provocar resposta violenta de Belgrado, que pudesse ser usada como pretexto para a intervenção pela OTAN que destruísse um país socialista independente que resistira contra a globalização. Era indispensável criar uma “crise”, para justificar a ação militar da OTAN.

Quatro anos depois, foi a “crise” das Armas de Destruição em Massa do Iraque. Era preciso fazer alguma coisa contra armas mortais de Saddam que nos “ameaçariam” mortalmente, todos nós – disseram os líderes ocidentais. Não podíamos esperar, sequer, que os inspetores de armas da ONU concluíssem sua inspeção.

Se não agirmos agora, voltaremos ao que já aconteceu antes e, claro, a coisa toda recomeça e ele prossegue no desenvolvimento daquelas armas e são armas perigosas, particularmente se caírem em mãos de terroristas que nós sabemos que querem usar aquelas armas se puserem as mãos nelas  – disse Blair.

Crianças nasceram deformadas pelo bombardeio com urânio
empobrecido no Iraque
Dia 28/4/2003, quando ainda não se viam nem sinal de armas de destruição em massa de Saddam, Blair disse:

Antes de começarem a gritar sobre a ausência de Armas de Destruição em Massa, sugiro que esperem um pouco mais.

Já se passaram 11 anos, e ainda estamos esperando.

Na década passada, foi a “crise” nuclear do Irã. Ouvimos repetidamente a elite ocidental a repetir que a República Islâmica estaria desenvolvendo armas nucleares que seriam clara ameaça não só contra o Oriente Médio, mas para o mundo inteiro. Dar conta da “ameaça” nuclear iraniana seria a nossa mais urgente prioridade. Em janeiro de 2011, o secretário britânico de Defesa, Liam Fox alertou que o Irã já teria armas nucleares ao final de 2012.

Mas até 2013 já se foi, e o Irã ainda não tem as tais armas nucleares.

Depois, foi a “crise” da Líbia em 2011. Contaram-nos que forças do coronel Gaddafi estariam massacrando gente inocente e estavam a um passo de lançar ataque genocida contra civis em Benghazi. Mais uma vez, teríamos de lidar com mais essa “crise” urgentíssima.

Simplesmente não podemos parar e deixar um ditador cujo povo o rejeitou matar o próprio povo indiscriminadamente– declarou o primeiro-ministro David Cameron, vivendo um dos seus grandes dias de Tony Blair.

Barack Obama
Confrontados com essa repressão brutal e a crescente crise humanitária, ordenei que naves de guerra dirijam-se ao Mediterrâneo. Aliados europeus declararam-se dispostos a enviar recursos para deter a matança – disse o presidente Barack Obama, dia 28/3/2011.

Como no caso da “crise” no Kosovo e da “crise” das armas de destruição em massa no Iraque, a resposta ocidental à “crise” na Líbia foi também um ataque militar.

Em agosto de 2013, mais uma “crise” – o ocidente a declarar que o governo sírio teria usado armas químicas mortais contra o próprio povo. Mais uma vez a conversa foi que teríamos de agir com rapidez e firmeza para enfrentar mais aquela “crise”. Só a diplomacia russa e a opinião pública nos países ocidentais conseguiram impedir um ataque militar, pelos EUA ou liderado pelos EUA, contra a Síria.

E agora, em março de 2014, a nova “crise” é a “invasão” de Putin na Ucrânia e a ameaça que a Rússia faz contra uma Ucrânia independente e “democrática”, embora governada fascistas. E essa, não esquecer, é “a maior crise na Europa no século 21”.

Gareth Porter
De fato, nenhum dos eventos acima foi realmente crise alguma – incluindo a Crimeia. Não havia genocídio no Kosovo. O Iraque jamais teve armas de destruição em massa. O Irã não tem programa algum de produção de armas atômicas: foram, todas essas, “Crises Manufaturadas” [Manufactured Crisis]”, para usar o título do novo livro do jornalista-investigador Gareth Porter.  

A forças de Gaddafi não estavam massacrando civis na Líbia – nem Gaddafi algum dia ameaçou massacrar civis em Benghazi. As forças líbias faziam lá exatamente o que forças iugoslavas faziam em 1999: combatiam uma guerra contra insurgentes inflados e pagos pelo ocidente.

Na Síria, todas as provas – além da lógica mais elementar – sugerem que foram os rebeldes, não o governo sírio, que lançaram o ataque químico em Ghouta – para tentar conseguir um ataque de intervenção militar por exércitos ocidentais. E, claro, não há nem houve qualquer “invasão” russa na Ucrânia.

Mas – e aqui está o ponto mais importante – as respostas ocidentais a essas “crises” criadas artificialmente, elas, sim, geraram crises reais. A “crise” do Kosovo foi “enfrentada” com 78 dias de bombardeio brutal na Iugoslávia, que destruiu toda a infraestrutura do país e deixou milhares de mortos e feridos; e, porque a OTAN usou bombas de urânio baixo-enriquecido, levou a um pico no número de casos de câncer. Os direitos humanos, sim, também foram gravemente feridos.

Em nenhum local [na Europa] há tal nível de medo entre tantas minorias, depois que foram atacadas simplesmente pelo que são– lia-se no relatório sobre o Kosovo, distribuído pelo Minority Rights Group International em 2006.

A "crise" no Iraque assassinou milhares de famílias
A “crise” das armas de destruição em massa do Iraque levou à invasão ilegal, da qual o Iraque ainda não se recuperou, nem dá sinais de conseguir recuperar-se ainda por muito tempo – com mais de 1 milhão de mortos e o país assolado por violento conflito sectário. O ano passado foi o mais mortífero no Iraque desde 2008, com mais de 7 mil mortos. Em 2002-3 os neoconservadores não paravam de falar da “crise” das armas de destruição em massa no Iraque e de como seria necessária ação urgente. Agora, que a crise é real no Iraque, estão calados.

A “crise” nuclear iraniana levou a sanções draconianas impostas ao país – o que levou o povo iraniano a ter de enfrentar dificuldades extremas – (como noticiado por Russia Today) e a aumento acentuado no preço do petróleo também para a Europa, exatamente algo de que não precisávamos em tempos de forte recessão. Milhões de pessoas sofreram desnecessariamente por causa de medidas tomadas para enfrentar uma “crise” que, para começar, nunca existiu.

A Líbia antes e depois do "bombardeio humanitário" dos EUA-OTAN
(clique na imagem para aumentar)
A “crise” líbia de 2011 levou a um assalto brutal, pela OTAN, contra o país, que provocou milhares de mortes; a agora a Líbia, como o Irã, é país destroçado, ainda afligido por vasto conflito. Também nesse caso, os que não paravam de falar sobre uma “crise humanitária” na Líbia em 2011 mantêm-se hoje estranhamente silenciosos.

A “crise” gerada por um ataque de armas químicas que jamais aconteceu quase levou à eclosão de grande guerra regional e, pode-se supor, teria levado a uma IIIª Guerra Mundial, mas, na sua obsessão por derrubar o governo Baathista, o ocidente e seus aliados regionais ainda apoiam os rebeldes violentos e, assim prolongam o sofrimento da guerra para milhões de sírios.

Agora, outra vez estão em ação os inventores seriais de “crises”, dessa vez tentando convencer-nos de que um referendo na Crimeia e a possibilidade de que a Crimeia, cuja população é formada de quase 60% de russos étnicos, volte à Rússia, seria uma grave “crise”.

E mais uma vez os passos que nos propõem – sanções contra a Rússia – só levarão a mais crises e a crises mais graves que a “crise” inventada: as sanções serão desastrosas para as economias ocidentais, especialmente para as economias europeias.

Sergey Aksyonov, PM da Crimeia, anuncia o resultado do Referendo de 16/3/2013 -
95,7% da população da Crimeia participou da votação
Ao mesmo tempo em que as elites ocidentais esperam que percamos o sono por causa de crises artificialmente criadas, como a da Crimeia, as verdadeiras crises, as crises reais que afetam a vida de milhões de pessoas comuns no ocidente e por todo o mundo são ignoradas por aquelas mesmas elites. O aquecimento global. O número recorde de desemprego entre os jovens. A distância sempre crescente entre ricos e pobres. A queda rápida no padrão de vida das pessoas comuns em todo o ocidente. Essas são as crises que governos seriamente democráticos deveriam estar enfrentando. Em vez de enfrentá-las, a elite ocidental prefere inventar crises novas.

A história recente ensina que sempre que governos ocidentais e a imprensa-empresa que sempre lhes é servil só fazem falar de uma “crise” internacional e alertar que “algo tem de ser feito”, o melhor a fazer é nada. Absolutamente nada.

Concentremo-nos em enfrentar as crises reais – a destruição do meio ambiente, o crescimento da pobreza, da desigualdade e do desemprego. E não nos deixemos enganar pelas “crises” artificiais, em direção às quais as elites ocidentais tentam desviar nossa atenção.



[*] Neil Clark é jornalista, escritor, radialista e blogueiro. Escreve para vários jornais e revistas no Reino Unido e outros países, incluindo The GuardianMorning StarDaily ExpressSunday ExpressMail on SundayDaily MailDaily TelegraphNew StatesmanThe SpectatorThe Week e The American Conservative. É comentarista regular da Rússia Today BBC TV e as rádios Sky News,Press TV e Voz da Rússia. É co-fundador da Campaign For Public Ownership (twitter @PublicOwnership). Seus trabalhos podem ser encontrado no premiado blog de Neil Clark. Tweets sobre política internacional em: @ NeilClark66 


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