Morais: é um acinte usar a tevê e o rádio para defender interesses empresariais
Em CartaCapital:
Ele fundou um estilo de jornalismo. O de hoje imita seu gangsterismo. Não sua inteligênciapor Nirlando Beirão
Enquanto
o escritor e jornalista Fernando Morais, 69 anos, dava esta entrevista a
CartaCapital, chegou à casa dele um reparte da novíssima edição de
Chatô, a biografia do magnata das comunicações Francisco de Assis
Chateaubriand Bandeira de Mello (1892-1968). “É por causa do filme”,
comentou.
O Chatô de Morais, publicado em 1994 pela Companhia das
Letras, inspirou o filme dirigido por Guilherme Fontes – mais do que
isso uma atormentada saga cinematográfica que se prolongou por 20 anos
até seu recente lançamento. Aqui, Fernando Morais traça um revelador
retrato da mídia nativa, a de antes e a de hoje.
Carta Capital: O que mudou na imprensa desde os tempos de Assis Chateaubriand?Fernando
Morais: Na essência, não mudou nada. A mídia – e, para não ficar
repetindo isso o tempo todo, ressalvo as exceções que nós conhecemos –
continua sendo um instrumento exclusivamente dos interesses econômicos e
políticos do dono.
O que não seria muito grave no caso de jornal
e revista, porque são propriedade privada – e aí seria outra discussão.
Mas é um acinte que isso aconteça em veículos eletrônicos, o rádio e a
televisão, que são concessão pública.
Qual é a diferença que a
gente vê entre os impérios midiáticos de hoje e o do Chatô? A
personalidade do Chateaubriand. O caráter diabólico que ele tinha. Ao
mesmo tempo que era capaz do pior gangsterismo, ele deixou o legado do
melhor museu de arte do Hemisfério Sul, o Masp.
CC: Gangsterismo? Por exemplo.FM:
Mandou capar a tiros um sujeito com quem ele tinha uma dívida. Era
Oscar Flues, grande importador de máquinas de São Paulo. Oscar vendeu a
dívida para o Getúlio (Vargas) quando Chatô estava preso, por ter
aderido à Revolução de 1932.
Getúlio comprou a dívida e tomou um
jornal de Chateaubriand. Tão logo foi solto, Chatô despachou o Amâncio
para São Paulo, com o retratinho do Flues na mão, e, bom capanga dos
anos 30, o Amâncio ficou de tocaia, chapéu enfiado na cabeça. O Oscar
morava no casarão que é hoje a sede do Iate Clube de Santos, em
Higienópolis.
Parou o carro, o filho desceu para abrir os
portões, o Amâncio abriu a porta, enfiou o revólver entre as pernas do
Oscar, atirou duas vezes e foi embora. Uma barbaridade. Não havia
nenhuma razão nobre ou política para aquilo.
CC: Então, Chateaubriand estava do lado dos paulistas em 1932. Tinha aquele discurso de defesa da democracia?FM:
Em parte por isso, mas o que pesava mesmo era a relação freudiana com o
Getúlio. Do dia em que se conheceram até a hora em que ficou sabendo
que Getúlio tinha dado um tiro no coração, a relação foi de amor e ódio,
amor e ódio, o tempo todo. Eram personalidades vibrantes, magnéticas,
como não existem mais.
Insisto: o sujeito que mandava capar um
credor montou o maior museu do Hemisfério Sul. Que é propriedade
pública, não é dos filhos do Chatô. Não é do Gilberto, não é da Terezoca
e dos filhos da Terezoca. É meu, é seu. Sua empregada, o porteiro do
prédio podem ir lá ver um raro Rembrandt. Nenhum magnata da mídia atual é
capaz de oferecer ao País uma coisa da importância do Masp, sem falar
dos aeroclubes que Chateaubriand espalhou pelo Brasil.
Obrigava
os milionários a doar aviões. Porque achava que um país deste tamanho
você só iria conquistar pelo ar, não adiantava construir estrada de
ferro ou rodovia que fosse de São Paulo para Manaus. Mas não era um
santo.
CC: Interessante esse tema: herança. O que a gente vê por aí, nos veículos da grande imprensa, é o que Mino Carta
chama de sucessão por direito divino. Famílias da oligarquia que vão
ficando no comando. Quase sempre depredando o patrimônio que herdaram.FM:
É o que a gente está vendo aí. O Chateaubriand inventou uma coisa
maluca, deixou todos os veículos que tinha para um condomínio de
empregados. Todos eram funcionários. Mas a diferença principal do
Chateaubriand para os atuais donos de jornais me veio à cabeça com a
leitura deste livro do Fernando Henrique Cardoso, Diários da
Presidência.
Nele, Fernando Henrique conta, não sem certa
empáfia, que dois jornalistas da Folha escreveram no jornal – não dá
para entender se artigo ou reportagem – textos que o deixaram indignado.
Passou a mão no telefone e ligou para o senhor Frias (Octávio Frias).
Reclamou, disse que era inadmissível. O senhor Frias respondeu: “Não se
preocupe, presidente. Pode dormir em paz que eu vou obrigar os dois a
engolir os artigos”. No dia seguinte, os dois tiveram de escrever um
mea-culpa, “desculpa, não foi bem assim”.
CC: E com o Chatô, como era?FM:
Esse tipo de ameaça o Chateaubriand sofreu várias e várias vezes. Por
parte do presidente da República, de ministros, de militares. Respondia
sempre da mesma maneira: para poder mandar aqui dentro dos meus jornais,
de minhas revistas, tem de se responsabilizar pela folha de pagamento
no final do mês.
Se o senhor quiser assumir a folha de pagamento,
pode demitir repórter, contratar, mudar texto. E o que valia para fora
valia para dentro também. Lembro o caso do David Nasser, que era o
monstro sagrado de O Cruzeiro, revista que vendia 700 mil exemplares
quando o Brasil tinha 30 milhões de habitantes e 50% de analfabetos, e
não havia assinatura, você tinha de ir à banca. Um dia, o David fez um
artigo contra o Juscelino, então presidente.
O Chatô estava se
arrumando para uma festa, tirando alfinete de uma camisa de smoking
novinha em folha – a cena é muito engraçada, aconteceu no escritório
dele no O Jornal. Chega o David e o Chatô diz: “Que merda é essa, David,
de falar mal do Juscelino na sua coluna?” O David respondeu: “Mas,
doutor Assis, é minha coluna, tem meu nome lá em cima, é minha opinião”.
Chateaubriand respondeu: “Se quiser ter opinião, monta um jornal só
para você; na minha revista você defende a minha opinião”.
CC: É a noção que a mídia hegemônica ainda tem hoje de liberdade de imprensa, não é? FM:
Essa clareza, essa sinceridade do Chateaubriand não existe mais. Se o
presidente da República reclamava, como fez o Fernando Henrique, ele
dizia: “Se quiser mexer nos meus editoriais, tem de pagar a conta no fim
do mês”. O mesmo valia para a redação. Rubem Braga trabalhava em Belo
Horizonte para o Estado de Minas e escrevia crônicas semanais.
Numa
delas desceu o cacete na Igreja da Espanha, que estava apoiando
Francisco Franco. Estamos falando, portanto, de 1936, 1937, durante a
Guerra Civil. Aí, dom Antonio dos Santos Cabral, o rígido arcebispo de
Belo Horizonte, fez uma homília, a ser distribuída em todas as suas
paróquias, dizendo que os Diários Associados eram inimigos da família
católica e que as pessoas não tinham mais que assinar o Estado de Minas.
Imagina a força da Igreja em Minas Gerais 80 anos atrás.
Chatô
soube disso, passou a mão no telefone, ligou para o Gegê (Geraldo
Teixeira da Costa, diretor do jornal). Disse: “Senhor Gegê, descobri que
dom Cabral, quando moço, estuprou a irmã várias vezes. Quero uma
reportagem enorme sobre isso”. Passa um dia, dois, cinco, uma semana,
duas semanas depois. Chatô, furioso, ligou cobrando a matéria.
Gegê,
constrangido, argumentou: “Doutor Assis, botei o melhor repórter, mas
tem aí um problema. Descobrimos que dom Cabral é filho único, não tem
irmã”. Resposta do Chateaubriand: “Isso não é problema meu nem seu,
senhor Gegê. Isso é um problema do dom Cabral. Ele que explique depois”.
CC: Se a verdade atrapalhar o que se quer dizer, esqueça-se a verdade. Ainda se pratica muito isso.FM:
Muito, muito. E com mais hipocrisia. É o avesso do que deveria ser o
jornalismo. Tenho 50 casos como este, a propósito do Chatô. Acho que, se
o livro fez sucesso e o filme faz sucesso, é porque o Guilherme
(Fontes, o diretor) soube ler o personagem.
Que na verdade não é
só um, são vários. Dá para fazer Chatô II, Chatô III, Chatô, a Volta.
Não tinha limites no usufruto do poder. Mas não buscava enriquecer. Não
tinha muito dinheiro. Uma casa boa em São Paulo, outra na Rio – só.
Achava que dinheiro era coisa de pobre.
CC: Nos anos 30, 40, havia mais debate na imprensa, não havia? Não era essa tirania do pensamento único.FM:
Pelo menos não era monolítico. Em todos os estados havia jornais locais
que não eram tão grandes quanto os jornalões, mas que faziam oposição,
crítica, deboche. E havia também muita imprensa operária, de sindicato.
Não existe mais, ou pelo menos a gente não tem acesso.
O direito
de emitir opiniões estava à disposição de quem quer que seja. Mas aí
começam os grandes impérios da mídia, e o do Chateaubriand é o primeiro.
Era tão maquiavélico que em cada lugar tinha um jornal sério e um
jornal de escândalo, de polícia. Em São Paulo, Diário de S. Paulo e
Diário da Noite. No Rio, O Jornal e Diário da Noite. Em Minas, Estado de
Minas e Diário da Tarde.
Um jornal de sangue e um jornalão de
opinião. Tinha uma revista nacional, O Cruzeiro, que, proporcionalmente,
tinha uma tiragem dez vezes maior do que qualquer uma hoje. Tinha rádio
bombando, a televisão começando.
CC: Era um homem inteligente, não é? Faz contraste gritante com os chatôzinhos de hoje.FM:
Diabolicamente inteligente. Falava mal quatro idiomas, o único que
falava bem era o alemão, cantava Noite Feliz em alemão no dia do Natal.
Um sujeito sofisticado, você vê pelos 11 mil artigos que escreveu ao
longo da vida. Um personagem 100% brasileiro, com fumaças de
genialidade, esse lado dele incontrolável, sedutor, sua paixão pelo
poder.
Antes da eleição do Dutra (general Eurico Gaspar), em
1945, Adhemar de Barros foi ao escritório de Chatô, no Rio, querendo
convencê-lo a ser candidato à Presidência. Ele respondeu: “Não tem a
menor graça, o bom não é ser presidente, o bom é que, para o cara ser
presidente, ele tem de bater naquela porta, pedir para entrar, tirar o
chapéu, sentar aqui e perguntar se pode ser candidato à Presidência”.
CC: A porta a bater mudou de endereço, mas continua existindo, não é?FM:
É, nisso ele deixou uma herança ruim para nós. Boa parte desses maus
costumes da nossa mídia vem de lá. Depois de assistir ao filme de
Guilherme Fontes, um crítico afirmou: “Isso não é sobre o Chateaubriand,
o Brasil dos anos 50, é o Brasil de hoje”. Você apenas troca as
figuras, o enredo é o mesmo.
CC: Um nordestino que teve a ousadia de peitar a plutocracia paulista.FM: Peitou, não – humilhou. Você pode imaginar o doutor Julinho Mesquita botando um chapéu de cangaceiro por imposição do Chatô?
CC: A tal Ordem do Jagunço, que ele inventou...FM:
É, se botou no Churchill, por que é que não iria botar num Mesquita? Os
Ermírio de Moraes penaram na mão dele. Certa vez, Chatô entrou no
estúdio e invadiu uma novela – não tinha videotape, era ao vivo – para
ameaçar: “O senhor Ermírio de Moraes, eu preciso educar esse sujeito com
surras de rabo-de-tatu”. Fazia o diabo. O que fez com o conde Chiquinho
Matarazzo...
CC: Em 1964, a mídia, inclusive o
Chateaubriand, se juntou e entrou no golpe, com a solitária exceção da
Última Hora do Samuel Wainer. Hoje, ela continua flertando com o golpe.
Mas tem o mesmo poder dos anos 60?FM: Toda ela aderiu
ao golpe. Em relação aos dias de hoje, tenho uma opinião um pouco herege
para uma pessoa de minha idade e de minha formação. Sou um jornalista
do papel, meu mundo era o Jornal da Tarde – sonho de todo grande
jornalista, assim como foi a Realidade e, antes, o Jornal do Brasil.
Estou
convencido de que jornal e revista no formato de hoje acabaram.
Televisão volta a ser um eletrodoméstico, uma tela, o conteúdo vai estar
no seu celular. Veja o Jornal Nacional, a audiência da Globo – está
desabando. O Boni disse um dia desses: “Esses caras perderam o juízo”.
Não vejo em que o jornalismo que se faz no Brasil possa seduzir as novas
gerações.
Se tivesse de escolher uma epígrafe para esta
entrevista, seria um versinho profético do Gilberto Gil, de 1967, na
música chamada Domingou: O jornal de manhã chega cedo/ mas não traz o
que eu quero saber/ As notícias que leio/ já sabia mesmo antes de ler.
http://www.conversaafiada.com.br/pig/pig-imita-gangsterismo-de-chato