domingo, 26 de maio de 2013

A droga de cada um


Denis Russo Burgierman - Super Interessante



Todo mundo tem a sua droga. A da minha mãe, por exemplo, é a endorfina, nome que é uma abreviação de “endo-morfina”, ou “morfina interior”. A endorfina é um opióide, ou seja, uma droga da mesma classe do ópio e da heroína. Os opióides agem como desentupidores nas sinapses do cérebro: eles abrem os caminhos pelos quais a dopamina flui. E a dopamina é a mãe de todas as recompensas: aquela sensação gostosa, aconchegante, de bem estar, que chamamos de prazer. É a dopamina que nos dá aquele gosto doce que acaba formando hábitos. É ela, também, que, quando algo sai do controle, causa a dependência.

Minha mãe busca a dopamina dela de maneira saudável, correndo pelas ruas e pelos parques de São Paulo, subindo em pódios com medalhas douradas no pescoço – exercício físico faz o corpo produzir endorfina. Há quem busque o prazer em outras coisas.

Glutões produzem dopamina quando se empanturram. Yogues produzem quando respiram profundamente. Jogadores vão em busca dela na emoção das apostas do bingo ou do carteado. Futebol, chope, sexo, novela, dança, festa, trabalho, cinema – tudo aquilo que tem o potencial de dar prazer pode estimular a produção de dopamina.

Inclusive drogas, como álcool, tabaco, nicotina, açúcar, maconha, cocaína, heroína.
Ontem participei da entrevista com o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, no programa Roda Viva, da TV Cultura. Laranjeira é um médico-político, bem conectado com o poder, recebedor de farto financiamento público, com larga experiência em dependência, defensor radical da Guerra Contra as Drogas. Colegas de Laranjeira no mundo acadêmico já haviam me advertido que a droga dele é o poder. É a sensação de mandar nos outros aquilo que ativa seu sistema dopamínico.

A entrevista foi bem frustrante para mim. Laranjeira tomou a palavra e falou sem parar, sem dar atenção às perguntas que lhe faziam. Citou uma série de dados inventados, como a informação de que todos os países desenvolvidos estão abandonando as políticas de redução de danos – basicamente o contrário da realidade, já que há uma clara tendência pela adoção global da filosofia da redução de danos, até mesmo nos Estados Unidos, onde pelo menos o discurso já mudou.

Num dos intervalos do programa, uma das entrevistadoras, a especialista em segurança pública Ilona Szabo, deu uma bronca no entrevistado fora do ar, criticando a forma irresponsável como ele manipulava os dados. Laranjeira virou agressivamente sua cadeira para ela, aumentou o volume da voz, e brandiu o argumento da autoridade: “cresça e apareça, menina. Quem é você? Eu tenho 30 anos de experiência nisso”. Ilona respondeu tranquila: “eu trabalho com gente que tem o dobro de sua idade e que teve a humildade de mudar de ideia. Você pode mudar também.”

Aos 34 anos, Ilona é coordenadora do secretariado da Comissão Global de Políticas sobre Drogas, o órgão internacional cujo presidente é Fernando Henrique Cardoso (81 anos) e que tem entre seus membros gente como o ex-presidente do banco central americano Paul Volcker (85) e o ex-secretário de Estado dos EUA George Schultz (92), braços direito e esquerdo do ex-presidente Ronald Reagan, principal comandante da Guerra Contra as Drogas na década de 80. O objetivo da Comissão é acabar com a guerra e buscar soluções mais pacíficas e racionais para evitar que nosso apetite natural por dopamina nos destrua.
Nos anos 1980 e 90, FHC, Volcker, Schultz e Reagan eram generais da Guerra Contra as Drogas.

Laranjeira, naquele tempo, era um soldado raso, talvez um jovem oficial dedicado a dar alguma sustentação científica para a ofensiva militar. Hoje os generais não apenas estão cansados de lutar mas pedem desculpas pelos erros do passado: eles reconhecem que a guerra foi um equívoco.

Mas o soldado Laranjeira quer continuar lutando. Afinal, ele não está preocupado em saber se a guerra dá certo ou não. O que ele quer é poder – e, consequentemente, dopamina. No fundo, ele sabe que a guerra é inútil, mas sabe também que, se ela acabar, ele perde poder. Ele é dependente de poder.



Pelo menos serviu para eu ganhar uma caricatura do Paulo Caruso

O torturador ofendido




O pastor Átila Brandão, destacado agente da repressão na ditadura, tenta calar um jornalista que lembra seu passado 

Nas manhãs de sábado, o pastor Átila Brandão, líder máximo da Igreja Batista Caminho das Árvores, faz uma exaltada pregação na TV Aratu, retransmissora do SBT na Bahia. É uma mistura de ignorância, oportunismo e preconceito. Exemplo: o ser humano é inteligente por falar e não por pensar. Outro: o anticristo será um homossexual nascido de uma prostituta. Não se assuste, o pastor tem a solução contra o mal. Além do apego ao Evangelho e à Bíblia, Brandão acredita-se destinado a presidir o Brasil.
Infelizmente, a estratégia para derrotar o coisa-ruim via Palácio do Planalto corre sérios riscos. Atualmente, torturador de palavras e consciências, Brandão destacou-se nos anos 70 por outro tipo de barbárie, bem mais grave. Teve passagem marcante pelo aparato de repressão da ditadura.

Denunciado pelo ex-deputado e jornalista Emiliano José, o pastor perdeu a fleuma religiosa e ressuscitou seu velho estilo, consagrado nos anos de chumbo. Então oficial da Polícia Militar da Bahia, Brandão comandou espancamentos contra estudantes em Salvador entre 1968 e 1973. Em um prazo de três meses, o evangélico fez um boletim de ocorrência, registrou uma queixa-crime e abriu duas ações judiciais contra José. Seu objetivo principal é censurar o jornalista por causa do artigo intitulado “A premonição de Yaiá”. Publicado em fevereiro passado no jornal A Tarde e disponível na internet, o texto trata de uma história assustadora.

Com base em um depoimento gravado, o ex-deputado relata um momento na vida de Maria Helena Rocha Afonso, conhecida como Dona Yaiá, mãe do preso político Renato Afonso de Carvalho, ex-militante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário. Segundo Dona Yaiá, em 1971, após sentir terrível angústia no peito, decidiu por conta própria pegar um táxi e visitar o filho, então com 23 anos, preso no quartel da PM dos Dendezeiros, na chamada cidade baixa. Carvalho havia sido preso no Rio de Janeiro em fevereiro daquele mesmo ano por agentes da repressão e levado ao quartel da Polícia do Exército da Rua Barão de Mesquita, um dos mais cruéis centros de torturas do regime. Por dois dias, ficou pendurado em um pau de arara. Foi espancado e submetido a choques elétricos e afogamentos. Depois, enfrentou um fuzilamento simulado. Como, ainda assim, não entregou ninguém, seu assassinato parecia iminente.

Graças a um pedido do pai, Orlando de Carvalho, e da interferência de Dom Eugênio Salles, à época arcebispo do Rio de Janeiro, o militante foi salvo e transferido a Salvador. Sob custódia da PM baiana, achou que a fase das torturas havia passado. Engano absoluto. O militante do PCBR, hoje um respeitado professor de História na capital da Bahia, reencontrou no quartel dos Dendezeiros um velho desafeto, o capitão Átila Brandão.

Três anos antes, em 1968, Carvalho havia integrado um movimento para expulsar Brandão da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia onde ambos estudavam. Em companhia de outros militantes do movimento estudantil baiano, acusava o policial militar de ser um dos muitos agentes infiltrados pela ditadura no campus, estratégia comum naqueles tempos. Diversos estudantes identificaram o então tenente Brandão como comandante de tropas da PM que durante manifestações de rua contra o regime liderava com brutalidade desmedida a repressão aos manifestantes.

À frente de uma equipe de torturadores, Brandão encontrou Carvalho em um dos porões do quartel, mas não quis conversa sobre o passado. Assim que o viu, disparou socos, chutes e xingamentos, tática normalmente usada antes das sessões de choques elétricos e afogamentos. O PM queria saber se o estudante conhecia um grupo de militantes do PCBR preso no Paraná pelo Exército. Quando estava prestes a montar o pau de arara e ligar a máquina de eletrochoques, o oficial foi interrompido por um soldado. Dona Yaiá havia passado pelas sentinelas e, resoluta, estava no corredor em frente ao porão onde o filho era torturado.

Segue o relato de Dona Yaiá, reportado por José, sobre a premonição naquele fevereiro de 1971: “Soube que o soldado entrou, cochichou no ouvido de Átila, e ele, irritado, mandou parar tudo, juntar o pau de arara e o resto, e se retirou. Cessou a tortura. Quando Renato saiu da sala, eu o abracei, perguntei-lhe se estava tudo bem, ele disse sim, mas pediu para que avisasse o advogado Jaime Guimarães. Queriam voltar a torturá-lo. Fiz o que Renato pediu. Não voltou a ser torturado”.

Brandão nega tudo, apesar das evidências. Entre elas, o documento número 45/69 da agência baiana do antigo Serviço Nacional de Informações datado de 13 de outubro de 1969, em que ele é citado reiteradas vezes como agente da repressão. O nome do ex-PM está na ficha montada pelo SNI sobre Rosalindo Souza, militante do PCdoB, morto e desaparecido na Guerrilha do Araguaia, em 1973. Assim como Carvalho, o guerrilheiro estava entre os estudantes que pediram a expulsão do policial militar da Faculdade de Direito em 1968.

O pastor reagiu à divulgação do artigo, à repercussão na Bahia e, claro, às ameaças a suas antigas pretensões eleitorais. Em 2006, foi candidato ao governo pelo PSC, partido do deputado Marco Feliciano, de São Paulo, com quem divide as mesmas opiniões homofóbicas. Em 2012, apoiou ACM Neto à prefeitura de Salvador e ganhou, como prêmio, a nomeação de um filho, Átila Brandão de Oliveira Júnior, para o cargo de assessor especial da subchefia de gabinete do prefeito do DEM. Júnior era diretor da Faculdade Batista Brasileira, um dos negócios do pai.

Nas ações judiciais, Brandão acusa o jornalista de “pau mandado” e “papagaio de pirata”. Para calá-lo, pediu uma indenização de 2 milhões de reais e a retirada do artigo “A premonição de Yaiá” do site do ex-deputado, com multa diária de 10 mil reais, no caso de desobediência. Em 13 de maio, a juíza Marielza Brandão Franco, em decisão liminar, mandou retirar o texto, a esta altura reproduzido em centenas de sites pela internet, da página de José e reduziu a multa diária a 200 reais. “Esta é a primeira tentativa clara de cercear minha liberdade em 35 anos de carreira jornalística”, lamenta o ex-deputado.

Enquanto aguarda a decisão final do Tribunal de Justiça sobre as ações, o jornalista coleciona apoios de entidades de defesa de direitos humanos e reúne novos documentos sobre a participação do ex-capitão da PM na repressão durante a ditadura. Brandão deverá ser um dos primeiros convocados pela Comissão Estadual da Verdade, a ser instalada nos próximos dias, em Salvador, pelo governador petista Jaques Wagner. Também deverá ser convidado a falar na Comissão da Verdade da Assembleia Legislativa, também instalada recentemente. 

Em 25 de abril, em depoimento ao Grupo Tortura Nunca Mais da Bahia, Carvalho havia confirmado a exatidão do conteúdo tanto do relato da mãe, Dona Yaiá, quanto do artigo do ex-deputado. Na terça-feira 21, a CartaCapital o professor afirmou ter reconhecido o capitão Brandão no instante em que ele entrou na sala onde o haviam colocado para ser torturado, no quartel dos Dendezeiros. “Ele também me reconheceu, da Faculdade de Direito, tanto que me chamou de Renato, e não de ‘Joel’, meu nome de guerra no PCBR.”
No fim do ano passado, em um evento para empresários evangélicos, Brandão confessou a uma plateia na qual estava o deputado federal Anthony Garotinho que antes de ser cristão era um advogado corrupto e corruptor, além de cidadão “pronto para matar alguém”. Portava sempre uma pistola calibre 45 com dois carregadores cheios de balas. O pastor não respondeu aos pedidos de entrevista da revista. Segundo uma secretária da Igreja do Caminho das Árvores, ele estava em viagem.