quinta-feira, 1 de setembro de 2011

LETÍCIA E OS MACHISTAS RIDÍCULOS

 



 
Eu já estava saindo de casa pra dar aula quando fiquei sabendo de uma fraude que me deixou indignada. E minha revolta continua. Ontem a Rádio Globo — sabe, não uma estaçãozinha qualquer, mas uma que pertence ao maior grupo de mídia do país — entrevistou a Letícia Fernandes, autora do blog Cem Homens em um Ano. Até aí, zuzo bem. Afinal, Letícia, comprovando meus prognósticos (eu sabia que seu blog iria bombar), nos últimos dias conversou com vários grandes portais. Semana passada ela foi entrevistada pelo Globo, e seu blog teve 400 mil acessos num único dia. É algo que parece muito legal, mas não é. Depois eu falo nisso. Mas então. O problema é que a Letícia entrevistada pela Rádio Globo... não era a Letícia. Era uma moça não muito esperta se passando pela Letícia. Na realidade, o problema tampouco é esse. O problema é o machismo explícito do entrevistador. E não só dele. Tive o trabalho de fazer a transcrição da entrevista. É possível também escutá-la aqui, já que a verdadeira Letícia a salvou no seu tumblr.

Antonio Carlos: Vou conversar aqui com uma pessoa que anda causando uma polêmica muito grande. Ela é jornalista – baiana, né? Ela quer transar com cem homens em um ano! Que loucura, né? Bater recorde e se tornar a nova Bruna Surfistinha. É, tem maluco pra tudo, né? Bom, vou ler aqui a notícia pra vocês: a jornalista baiana que atende pelo nome de Letícia Fernandes quer bater um recorde, transar com cem homens em um ano. Segundo ela, que já está sendo chamada de nova Bruna Surfistinha, dois homens com os quais ela já transou brocharam. Mas será que isso é uma brincadeira ou é sério mesmo? Vamos conversar com ela pra saber qual é o objetivo da nossa Letícia Fernandes. Acorda Leticia Fernandes! (Narração: Show do Antonio Carlos! Vamos acordar!) Alô Letícia Fernandes, aqui é o Antonio Carlos da Rádio Globo, bom dia, como é que cê vai? Tudo bem?

Falsa Letícia: Bom dia, Antonio Carlos. Nossa, que coisa boa falar com você, viu?

AC: O prazer é meu. Mas vem cá, isso é verdade mesmo? Cê quer transar com cem homens em um ano?

Falsa Letícia: Pois é... Isso foi uma ideia que surgiu através do meu blog.

AC: Mas por que isso? É pra bater um recorde, entrar no livro dos recordes?

Falsa Letícia: Na realidade, eu assim, andava muito insatisfeita com minhas últimas, é, peripécias sexuais, e aí eu resolvi atingir essa meta. Na realidade eu coloquei numa lista de resolução para o ano de 2011 que eu daria muito.

AC: Ô Letícia, veja bem, a nossa querida Jussara, carioca Juju aqui, ela tá querendo um homem, não consegue um homem pra transar com ela, cê vai conseguir cem homens, cê acha que consegue com facilidade isso, minha amiga?

Falsa Letícia: Ó, olha só, deixa eu lhe falar. A meta é difícil atingir, mas eu já tô indo pruma boa percentagem, né? Já tô no 28.

AC: 28 homens, é? Ora...

Terceira voz (de mulher): Qual é a idade dela?

AC: Qual é a sua idade, Letícia?

Falsa Letícia: Eu tenho trinta.

AC: Trinta anos... Tá tudo no lugar?
 
Falsa Letícia: Tá tudo no lugar!

Terceira voz: E ela cobra?

AC: Que cobra? E o cara vai pagar pra transar?!

Terceira voz: Faturar um dinheiro.

AC: Não, não, é de graça.

Falsa Letícia: Não, não, não cobro não, isso é uma meta.

AC: E vc transa onde? Na sua casa mesmo?

Falsa Letícia: Olha, depende, né, de onde eu conheço o rapaz, né. Às vezes eu conheço na night, e da night a gente vai prum motel, né.

AC: Mas vem cá, vc chega e, vc que toma a iniciativa? Ô vem cá meu filho, eu queria transar com vc?

Falsa Letícia: Deixa eu te falar. Às vezes eu tenho que dar em cima. Mas eu confesso que na maioria das vezes os caras tão vindo em cima também.
Terceira voz: Mas ô Antônio Carlos, como é que ela vai provar que já deu pra cem?

AC: Tá fotografando, ô Letícia?

Falsa Letícia: Olha, isso eu não vou revelar a fonte não, viu. Mas quem quiser ler mais sobre as minhas transas, né, pode ir lá no meu blog: cem homens ponto com.

AC: Como é que é? Cem homens? (juntos) Cem homens ponto com.
 
Falsa Letícia: E ali tem tudo escrito. E mais alguma coisa.

AC: E tem o endereço, pra quem quiser transar com você, né, Letícia? A pessoa pode combinar com você pra transar com vc?
Falsa Letícia: Ah, entre no meu blog, e ali tem lá os comentários, pode também deixar o telefone, que eu também vou ligar de volta.

AC: Tá legal. Letícia, que quer transar com... Tem maluco pra tudo, hein? Que loucura! Juju, e vc nenhum, hein?

Falsa Letícia: Juju, vou te mandar uns então. (Risos)
 
Semana passada a chamada do portal Globo pra matéria referia-se a Letícia como “a nova Bruna Surfistinha”. E agora o apresentador da rádio reforça a ideia. Este é o primeiro ponto machista: Bruna Surfistinha foi (é?) uma garota de programa. Prostitutas fazem sexo em troca de dinheiro. Letícia Fernandes (que obviamente é um pseudônimo, e pra se jogar aos leões dessa forma, só mesmo com pseudônimo) não é prostituta.
 
Sei que é difícil acreditar, mas algumas mulheres gostam de sexo. Algumas até fazem sexo por prazer, sem esperar nenhum bem material em troca. Algumas são livres, não devem satisfação a ninguém, e preferem ter vários parceiros. E agora prepare-se, pois vou fazer uma grande revelação neste espaço: transar não gasta. A vagina é um órgão elástico. Lavou, tá nova. A gente tá no século 21 já? Porque eu consigo conceber esse tipo de mentalidade lá pelos idos de 1850, mas hoje... Seguinte: quando o sexo é consentido, homens têm direito de transar com quem quiserem, quantas vezes quiserem. E é uma grande celebração prum homem contar pros amigos que transou com um monte de mulheres. Quanto maior o número de parceiras, melhor.
 
Mais experiente ele estará (pra quê?), diz a nossa sociedade. Mais másculo. Mais viril. Mais garanhão. A gente quase se sente na obrigação de erguer um monumento pra ele, que ele merece. E ninguém nunca jamais vai perguntar pra ele “Ele cobra?”, ou compará-lo a um garoto de programa.

Aí uma mulher decide fazer algo parecido... e o mundo desaba. Porque mulher não pode, entende? Mulher é mulher, homem é homem, é assim que as coisas são. A gente não fala mais que mulher tem que casar virgem, mas a gente diz que ela tem que “se valorizar”, se “dar o respeito”. Porque entregar sexo assim de bandeja sem cobrar, opa, isso é se desvalorizar! (Se bem que a gente não acha que prostituta se valoriza, acha?). Existe algum termo na nossa língua que elogie uma mulher com vários parceiros sexuais? Não existe.
 
Porque não existe a menor intenção de elogiar uma mulher promíscua (e quantos parceiros são necessários pra ser promíscua?). Mas expressões pra condenar, insultar, apedrejar uma mulher promíscua existem aos montes: piranha, galinha, vagabunda, vadia, biscate, p*ta, prostituta... A lista dá algumas voltas no quarteirão. E volta sempre pro mesmo ponto: mulher, você não tem liberdade pra decidir com quem, quando, onde, com quantos você vai transar. Ou melhor, até tem, mas reserve uma enorme dose de paciência pras "verdades" que vai ouvir dos guardiões da moral e dos bons costumes (que, ironicamente, são os mesmos que mandam um rapaz pra zona se ele ainda for virgem aos 15 anos).

Eu tenho muito nojo desses moralistas de plantão. E desconfio que o apresentador do programa não se acha machista. Dizer “Que loucura! Tem louco pra tudo! Quer bater recorde? Tá tudo no lugar?” não é machismo não, imagina. É só impressão. O pessoal da mídia é tão liberal, né? O público é que é conservador. Aham.

Faz uns dez dias, os mascus abriram um novo perfil no orkut pra mim. Agora tem lá duas Lola Aronovich, ambas com as minhas fotos. Eles estão lá falando besteiras em meu nome. Claro que não gosto, mas haters gonna hate. Trolls são trolls. Mascus são covardes anônimos. Não é o caso de uma Rádio Globo, que ontem trollou a Letícia. Não precisava nem da Letícia Fake falando por ela pra ser ridículo. Bastava o que o apresentador disse da Letícia. Horas depois, a Rádio Globo tirou a entrevista do site e divulgou uma nota absurda, em que basicamente tira o corpo fora. Porque a gente sabe: a mídia não erra, a mídia é enganada. Ser mídia é nunca ter que dizer you're sorry. Eu, que sou uma só e tenho um mero blog, consigo falar com a Letícia hiper facilmente — mando um email, um tweet, uma DM, ou deixo um comentário no seu blog. Não dá pra acreditar que uma estação de rádio seja tão incompetente que não consiga fazer o mesmo.

Não sei se cabe um processo aí. Não sei como funciona. Letícia não é uma pessoa, é um pseudônimo. Pode processar a Globo, que a ridicularizou numa entrevista? Pra isso, ela teria que divulgar seu nome? Olha, ninguém merece. É terrível não ter mais o menor controle do que falam de você, ou por você. Meu bloguinho nunca teve nem terá 400 mil acessos num dia, mas já teve 83 mil (naquela ameaça de processo do Tas). E não é bonito. Você não faz mais nada na vida naquela semana. Você vive só praquilo. E, por mais que você receba muito apoio e carinho, você também ganha toneladas de ofensas. Não é brinquedo.

Apesar de eu divulgar e torcer pelo Cem Homens, não tenho certeza que o que Letícia faz é feminismo. Sei que, com o blog, ela tem descoberto muitas coisas, analisado seus preconceitos, empatizado mais com mulheres e homossexuais. Mas não sei se é feminismo. O que eu sei é que o que andam fazendo com ela é machismo. Eu posso discordar da Letícia em vários pontos. Mas sei disso: pra ser chamada de p*ta, não precisa nem transar. Basta ser mulher. Os machistinhas aí não estão sendo babacas apenas com a Letícia, mas com todas as mulheres que insistem em ter sua liberdade sexual respeitada. E se vocês não sabem, fiquem sabendo: mexeu com uma, mexeu com todas!
 
 

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