Revoltas árabes – passado e presente
Joseph Massad |
18/11/2011, Joseph Massad, Al-Jazeera, Qatar
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu
Joseph Massad é professor associado de Política e História Intelectual Árabe Moderna na Columbia University NY, USA
Os movimentos de contestação que hoje se vêem, contra ditaduras árabes patrocinadas pelo ocidente, não são novidade, de modo algum, na moderna história árabe. Houve levantes populares contra o colonialismo europeu na região desde o início na Argélia em 1830 e no Egito em 1882. As revoltas na Síria nos anos 1920s contra o império francês, e especialmente na Palestina de 1936 a 1939, contra o império britânico e o colonialismo sionista, foram revoltas de grandes massas, pelos padrões globais. A Revolta Palestina, de fato, inspiraria outras no mundo colonizado e permaneceu como inspiração para os árabes ao longo do século 20 e até hoje.
Arafat viajou para Oslo no começo da década de 1970 com financiamento dos países do Golfo Pérsico |
A resistência anticolonial que se opôs a regimes árabes impostos pelas potências colonialistas continuou na Jordânia, no Egito, Bahrain, Iraque, Iêmen do Norte e Iêmen do Sul, Omã, Marrocos e Sudão. A massiva revolta anticolonial na Argélia levaria afinal à independência do país, em 1962, com o fim das colônias francesas. Com a independência da Argélia, caiu um das duas colônias europeias implantadas no mundo árabe. Mas a outra lá permaneceu: a Palestina. No front colonial territorial, grande parte do Golfo Árabe permaneceu sob ocupação dos britânicos até os anos 1960s e início dos 1970s.
Depois da Guerra de 1967
Contra a melancolia que invadiu o mundo árabe depois da derrota na invasão israelense de 1967 – Israel invadiu e ocupou territórios simultaneamente de três países árabes, além de invadir e ocupar todo o território palestino – o ressurgimento da guerrilha revolucionária contra Israel, a potência colonial de então, na Batalha de Karamah em março de 1968, trouxe renovadas esperanças a dezenas de milhões de árabes e renovadas preocupações para as ditaduras árabes neocoloniais (em todas as avaliações, o papel de Arafat sempre foi muito exagerado). A revolução palestina serviu de inspiração para muitos, mas também coincidiu com esforços revolucionários não só em praticamente todo o Terceiro Mundo, como, também, nos países árabes –, os quais, por sua vez, também inspiraram diretamente os palestinos.
Depois de junho de 1967, as melhores notícias de movimentos revolucionários anticoloniais no mundo árabe viriam da Península Arábica. Em novembro de 1967, os revolucionários do Iêmen do Sul aplicaram terrível derrota aos britânicos e libertaram seu país do jugo colonial que reinava em Aden desde 1838. O Iêmen do Sul seria convertido, pouco depois, em República Popular Democrática do Iêmen e duraria 22 anos – até o sul ser diluído na ‘unificação’ do país promovida pelo Iêmen do Norte e seus aliados sauditas.
No vizinho Omã, a luta em curso pela independência entrou em nova fase, com ativa resistência guerrilheira sob o comando da Frente Popular para a Libertação de Omã e do Golfo da Arábia [ing. People’s Front for the Liberation of Oman and the Arabian Gulf (PFLOAG)], que surgiu em setembro de 1968, resultado da unificação de vários grupos guerrilheiros de Omã que combatiam contra o governo do sultão Said bin Taymur apoiado pelos britânicos. O PFLOAG logo conquistou território em Dhofar, a partir de onde continuou a luta pela libertação do país. Mas a verdade é que havia vários movimentos de independência em todo o Golfo, inclusive no Bahrain, onde sempre houve ativo movimento operário, estudantil e de feministas militantes, todos unidos contra o império britânico e seus serviçais locais.
A repressão
Mas a aliança EUA-Reino Unido-Sauditas-Israel estava decidida a esmagar todos os grupos revolucionários que conseguisse esmagar, e a cooptar os que não conseguisse esmagar.
O esforço contrarrevolucionário começou no Golfo. No Bahrain, ninho de trabalhadores organizados e de agitação anticolonial há décadas, jamais deixou de haver núcleos de resistência contra a dominação britânica e a família reinante aliada no país ao colonialismo britânico. Os britânicos, então já expulsos do Iêmen do Sul, e com seu governo-cliente em Omã sob crescente ameaça, transferiram o comando militar britânico para o Bahrain – movimento que foi imediatamente acompanhado por massivos investimentos de capital britânico no Bahrain (e também em Dubai).
Como seria de esperar, esses desenvolvimento fizeram aumentar a repressão contra o povo no Bahrain e contra o movimento local de libertação nacional. Nesse contexto, o Xá do Irã ameaçou ‘anexar’ o Bahrain e convertê-lo em uma “14ª província” iraniana. Essas ambições territoriais logo seriam contidas pelos aliados ocidentais e pela ONU, em 1970. O Xá desistiu de suas ambições territoriais, em troca de quantidades gigantes de capitais iranianos aplicados nos estados árabes emergentes do Golfo, inclusive nos Emirados Árabes Unidos. O ocidente agradeceu a atitude magnânima do Xá e continuou a recompensá-lo regiamente, em termos políticos e diplomáticos.
No front jordaniano, o exército do rei Hussein conseguiu neutralizar os sucessos dos guerrilheiros palestinos e os derrotou, em setembro de 1970, numa operação gigantesca de massacre e matança. Em julho de 1971, os guerrilheiros da OLP seriam afinal expulsos da Jordânia. Mas os guerrilheiros da OLP continuaram a manter importante base de operações no Líbano – de onde continuaram a operar contra Israel e contra os ditadores árabes.
No Sudão, o partido comunista continuou a crescer no final dos anos 1960s, até o golpe comandado por Ja’far al-Numeiri, em 1969. No início, o novo governo não teve meios para marginalizar completamente os comunistas. Só o fez em 1971, com o governo já mais estabilizado. Uma tentativa de golpe contra o governo autoritário de al-Numeiri fracassou. Como reação, Numeiri executou todos os principais líderes do partido comunista – o que marcou o fim do maior partido comunista que jamais houvera no mundo árabe. A ditadura de Numeiri se manteria até 1985. Em 1989, Omar al-Bashir, candidato apoiado pelos sauditas, comandou um golpe de estado contra Numeiri; no poder, seguiu os mesmos passos que o antecessor.
Só a Frente Popular para a Libertação de Omã e do Golfo da Arábia [ing. People’s Front for the Liberation of Oman and the Arabian Gulf (PFLOAG) [1]]continuou avançando no início dos anos 70s, e a aliança EUA-britânicos-sauditas- israelenses foi forçada a mobilizar esforço militar massivo para derrotá-los. O Xá do Irã e o rei da Jordânia foram então subcontratados para essa missão. Despacharam seus exércitos para Omã e, assessorados e aconselhados pelos britânicos, afinal conseguiram derrotar os guerrilheiros e garantir o trono para o sultão Qabus, filho do sultão Said, que, em 1970, derrubara o governo de seu pai, em golpe organizado pelos britânicos.
Com a derrota dos guerrilheiros de Omã, em 1976, a Organização de Libertação da Palestina, OLP, permaneceu como o único grupo revolucionário que sobreviveu ao massacre, ao lado de um Iêmen do Sul muito pobre e enfraquecido que, afinal, seria engolido pelo Iêmen do Norte apoiado pelos sauditas, em 1990.
Cooptação
Jorrou muito dinheiro saudita e de outros países do Golfo nos cofres da OLP, para garantir que a revolução palestina, parcialmente esmagada na Jordânia, jamais voltasse a erguer-se em armas contra outro regime árabe. O dinheiro do Golfo faria da OLP o grupo de libertação nacional financiado pelos regimes mais reacionários que jamais houve no Terceiro Mundo.
A estrada de Arafat até Oslo começou depois da guerra de 1973 e do financiamento massivo que passou a receber das ditaduras árabes ricas em petróleo, de Gaddafi a Saddam Hussein, e de todas as monarquias do Golfo. Essa domesticação da OLP é que levou as ditaduras árabes a reconhecerem a OLP, em 1974, como única representação legítima do povo palestino; a domesticação também é a principal razão pela qual aqueles mesmos regimes apoiaram o reconhecimento da OLP pela ONU, no mesmo ano.
De fato, a aliança reacionária que Arafat firmou com ditadores árabes foi tão ampla e incluiu tal extremos, que informações recolhidas por alguns dos serviços de inteligência da OLP sobre dissidentes árabes chegaram a ser partilhadas com ditadores árabes. Entre os serviços que colaboraram está a unidade da inteligência da OLP comandada por Abu Za’im, a qual, em dezembro de 1979, entregou o dissidente saudita Nasir Sa’id ao serviço secreto saudita, atendendo pedido do embaixador saudita no Líbano. Said nunca mais foi visto; acredita-se que tenha sido assassinado por autoridades sauditas. No front diplomático e de solidariedade, quando a Frente Polisario[2] declarou a independência do Saara Ocidental em 1976, Arafat recusou-se a reconhecer o novo estado, para não ferir a aliança que o ligava ao rei Hassan II.
Os novos levantes
Dado que, do ponto de vista dos EUA e das potências imperialistas, os grupos revolucionários palestinos eram os únicos ainda não completamente domesticados (embora já estivessem suficientemente domesticados pelas próprias ditaduras árabes), o novo desafio passaria a ser o próprio povo palestino, que, em 1987, levantou-se contra a ocupação israelense.
Foi a segunda maior revolta palestina em meio século; para muitos, teria sido a fonte original de inspiração para os levantes que se veem hoje em todo o mundo árabe. Não por acaso, aquele levante de palestinos em 1987 passou a ser, do ponto de vista das potências imperiais e de seus lacaios árabes locais, o movimento popular que mais urgente e mais completamente teria de ser esmagado. Os israelenses fizeram o máximo que puderam para esmagar aIntifada, mas fracassaram. E quando a OLP integrou-se à Intifada (porque de nenhum modo admitiria que surgisse qualquer novo movimento palestino e popular que ameaçasse o lugar da OLP no papel de representante oficial do povo palestino), israelenses e norte-americanos intensificaram seus esforços para cooptar definitivamente a OLP e definitivamente neutralizar o risco de alguma outra organização não controlada vir a impedir o bom andamento das políticas de EUA-Israel na região.
Nesse contexto é que foram assinados os Acordos de Oslo, quando a OLP foi formal e definitivamente convertida, de ameaça às ditaduras árabes, ao patrocinador imperial de todas elas e de ameaça à ocupação israelense, em agente deles todos, disfarçada sob a máscara de uma ‘Autoridade Palestina’. O disfarce, nesse caso, ajudou a implantar a ocupação israelense nos territórios palestinos, numa nada-santa aliança com ditadores do Golfo e com os EUA. Desde então, os fuzis da OLP/Autoridade Palestina sempre estiveram apontados, como até hoje, sempre, contra o povo palestino.
Hoje, a aliança EUA-britânicos-sauditas- israelenses segue a mesmíssima aliança na região que a mesmíssima aliança já seguiu no final dos anos 1960s e início dos 1970s, mantendo a mesma estratégia já usada para cooptar a OLP no início dos anos 1990s: estão esmagando os levantes populares que conseguem esmagar e cooptando os que não consigam esmagar.
Há avanços notáveis, nos últimos meses, no caminho da completa cooptação dos levantes na Tunísia e no Egito, embora não tenham conseguido nem silenciar nem desmobilizar as populações. No Bahrain, por outro lado, o levante popular foi rapidamente esmagado; e também no Iêmen.
Mas na Líbia e na Síria, o eixo imperial (EUA-britânicos-sauditas- israelenses) conseguiu sequestrar as revoltas populares, e já as controla completamente.
Embora os sírios – como os líbios, antes dos sírios – continuem a manter nas ruas um levante popular contra uma ditadura brutal e continuem a exigir democracia e justiça social, o movimento popular sírio fatalmente fracassará, se os sírios não derrubarem, além da ditadura de hoje, também o eixo EUA-britânicos-sauditas- israelenses que já sequestrou a luta democrática dos sírios. Dado que parece altamente improvável que os levantes sírios consigam derrubar o eixo ocidental, nada se pode esperar como resultado dos levantes populares na Síria, além de uma nova (e talvez seja eleita!) ditadura brutal.
Os palestinos
O que nos traz de volta à cena palestina.
A Intifada ou levante popular de 1987 foi a primeira revolta popular massiva, não armada, a acontecer em décadas. No começo do colapso da União Soviética, pouco antes da invasão dos EUA no Golfo, os EUA decidiram cooptar o levante dos palestinos, oferecendo benefícios políticos e financeiros a uma classe de burocratas da Ooganização para a Libertação da Palestina que, em seguida, venderia a luta dos palestinos. Assim, em 1993, em Oslo, Arafat neutralizou o levante popular e foi jantar com líderes israelenses e norte-americanos, deixando os palestinos, como antes, sob ocupação.
Assim como os levantes palestinos sempre foram fonte de preocupação para as ditaduras árabes desde 1968 e sempre serviram de fonte de inspiração para outros povos árabes, hoje é a vez de a Autoridade Palestina preocupar-se com a influência que os levantes árabes possam ter sobre os palestinos da Cisjordânia. A Autoridade Palestina teme que os palestinos revoltem-se contra a persistente colaboração que há hoje entre a Autoridade Palestina e a ocupação israelense e seus patrocinadores norte-americanos.
Quando os israelenses, no final dos anos 1970s, fracassaram no intento de criar um corpo político de colaboracionistas palestinos (para isso foram criadas as infames “Ligas de Vilas [ing. Village Leagues]), a Autoridade Palestina converteu-se, não num conjunto de novas “Ligas Urbanas”, como diziam muitos palestinos em tom crítico, mas numa verdadeira “Liga Nacional” de colaboracionistas a serviço da ocupação israelense.
A recente proposta da Autoridade Palestina, que requereu reconhecimento oficial à ONU e à Unesco, é tentativa de resolver o impasse em que estão presos o seu inexistente “processo de paz” e as negociações hoje estagnadas com Israel, antes que os palestinos novamente se rebelem, sobretudo agora, quando já se vê bem claramente quem são os reais beneficiários dos Acordos de Oslo.
A Autoridade Palestina só tinha dois caminhos à frente, antes de ver completamente exposto o colapso completo do chamado “processo de paz”: (I) a autodissolução, que implicaria reconhecer e abandonar o papel de braço local da ocupação israelense; ou (II) continuar a colaborar com Israel e EUA, buscando, para isso, cada dia mais, se autoproteger sob o manto do reconhecimento oficial por instituições internacionais, o que lhe permitirá preservar o poder e as vantagens de que gozam os membros do governo da Cisjordânia. Escolheu o segundo caminho, sob o disfarce do apoio à independência nacional dos palestinos.
Ainda não se pode avaliar se a Autoridade Palestina conseguirá entrincheirar-se efetivamente sob o abrigo de ONU e Unesco. O que já se sabe é que, seja o plano da Autoridade Palestina bem sucedido ou fracasse, nada de fato mudará, e as consequências podem ser desastrosas para o povo palestino – que, enquanto a Autoridade Palestina estiver no governo na Cisjordânia, continuará a ser colônia no projeto colonial de Israel.
Como tenho dito, o desacordo entre Israel, Autoridade Palestina e EUA diz respeito só (I) à dimensão dos vários bantustões desconectados que a Autoridade Palestina receberá para “governar ; e (II) à quantidade de violência, repressão e armas que a polícia da Autoridade Palestina receberá para usar contra o povo palestino (desde que se comprometa a jamais usá-las contra Israel). Se Israel mostrar alguma flexibilidade nesses pontos, então os bantustões desconectados serão reconhecidos como “estado palestino soberano”; e nenhum colono judeu ilegal será obrigado a devolver as terras que roubou aos palestinos, nem será obrigado a retornar ao bairro do Brooklyn, New York, de onde emigraram muitos dos colonos que hoje vivem de roubar terras palestinas. Esse é o acordo que mais interessa à Autoridade Palestina, que tenta vendê-lo a Israel e aos EUA.
Para conseguir convencer EUA e Israel, a Autoridade Palestina tem dito que há risco de os palestinos da Cisjordânia rebelarem-se contra a própria Autoridade Palestina, o que seria péssimo para Israel e EUA. Até agora, nem EUA nem Israel acreditaram nos “argumentos” da Autoridade Palestina.
A luta continua
Quanto ao contexto árabe mais amplo, os que chamam de “despertar árabe” o que se desenrolou ano passado no mundo árabe não ignoram apenas a longa história dos árabes em todo o século 20, mas usam, além disso, argumentos ocidentalistas racistas para depreciar os árabes, mostrando-os como gente que convive há décadas com ditaduras e, afinal, começa a acordar do torpor “étnico”.
Em todo o mundo árabe, os povos levantaram-se contra a tirania local e colonial a cada dez anos, desde a Primeira Guerra Mundial. E sempre lá estavam, contra os povos árabes, as potências coloniais europeias e o herdeiro delas, os EUA, sempre interpostos e sempre aliados a ditadores locais e respectivas famílias (em muitos casos, selecionando a dedo o ditador, caso a caso, e pondo-o no trono).
O patrocínio de EUA-Europa a todas as tentativas contrarrevolucionárias no mundo árabe hoje é, de fato, continuação de uma longeva tradição imperial. Mas a resistência dos povos árabes contra o imperialismo e os ditadores locais também é tradição longeva. Os levantes populares que começaram na Tunísia em dezembro de 2010 continuam ativos, apesar dos duros contragolpes que todos sofreram. Não implica dizer que nada mudou ou que nada está mudando significativamente. Mas implica dizer que muitas das mudanças são reversíveis, que a contrarrevolução já está conseguindo revertê-las e que continua a trabalhar duro para conseguir que mais avanços regridam cada vez mais.
É absolutamente necessário que todos os combatentes da resistência mantenham-se vigilantes em sua luta por mudança democrática e justiça social, sobretudo em tempos, como hoje, em que as forças imperiais estão fortemente mobilizadas em todo o mundo. Os povos árabes podem ter perdido algumas batalhas contra o imperialismo. Mas sua guerra contra o imperialismo e em busca de democracia e justiça social continua, em todo o mundo árabe.
Notas dos tradutores
[2] “Polisário” ("link" em inglês) é acrônimo de Frente Popular de Liberación de Saguía el Hamra y Río de Oro (em espanhol). É membro da Internacional Socialista.
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